Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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05/06/2010 (Nº 32) A razão e o sagrado: suas contribuições filosóficas para a dessacralização da natureza
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revista educação ambiental em ação 32

A razão e o sagrado: suas contribuições filosóficas para a dessacralização da natureza

 

Renato Pirani Ghilardi

Biológo -(UNESP/Botucatu - 1995), mestrado em Geociências (Geologia Sedimentar USP/1999) e doutorado em Geociências (Geologia Sedimentar USP - 2004). Professor assistente da UNESP - Bauru - SP.

 

Flávio Roberto Chaddad

 

Engenheiro Agrônomo - pela Unesp/Botucatu, esp. em Educação Ambiental pelo Instituto de Biociências da Unesp/Botucatu e Mestre em Educação pela PUC-Campinas.

 

Luiz Américo Abrão

Eng. Agronômo pela FAEF/Garça (SP) (2006).

 

 

RESUMO

 

Este trabalho tem como objetivo mostrar como se efetuou, historicamente, através das idéias dos filósofos Pitágoras, Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Francis Bacon, Descartes e Newton, a cisão entre os dois modos de conhecimento, o racional e o sensorial e como foi construída a religião cristã, de onde se originaram seus principais elementos, a imortalidade da alma e a existência de Deus, que fundamentaram uma religião tipicamente antropocêntrica, contributiva para uma visão utilitarista da natureza. Entende-se que estas duas categorias são essenciais para se entender como a natureza passou a ser dessacralizada completamente pelo ser humano e como foram criadas as bases filosóficas para a houvesse a dominação dos homens sobre outros homens, postas em práticas com o advento do capitalismo.

 

Palavras-chave: Razão; Cristianismo; Dessacralização da Natureza; Filosofia Ambiental.

 

1. Introdução

 

Hoje vive-se uma crise ambiental que abarca toda a Terra, uma crise que abrange o que Guattari (2001) denominou como as três ecologias: o homem em sua subjetividade, em suas relações sociais e a natureza. Mas onde se situa a origem da crise do paradigma atual? Será que ela é apenas um mero produto do modo de produção capitalista ou, então, tem as suas origens construídas durante todo processo histórico, ou seja, no como o homem foi e vem conhecendo e transformando a sua realidade imediata? Tentando aprofundar a discussão a respeito das origens da situação ambiental vigente, este texto tem como objetivo analisar as idéias criadas e aceitas culturalmente pela sociedade ocidental que deram sustentação para que a crise da modernidade, herdada pela pós-modernidade, se manifestasse de maneira tão vigorosa e desproporcional, abarcando o mundo como um todo. Para isso, este estudo centrou-se em duas categorias de análise: no como se deu à cisão entre o conhecer racional e o sensorial, que atingiu se ápice através do cogito cartesiano, e quais foram às contribuições filosóficas, as idéias sobre Deus e imortalidade da alma, responsáveis para a edificação do cristianismo.

 

2. Dos filósofos hilozoístas a Parmênides: o ser invariável, a existência da alma e a origem da dicotomia entre o conhecimento racional do sensorial

 

Apesar de já solidificada, no século VI a.C, a prática da dominação, exploração e expropriação dos homens, haja vista que todas as sociedades antigas ocidentais tinham na prática do escravismo a sua base de sustentação, ainda permanecia acesa, com as idéias dos primeiros filósofos gregos, conhecidos como pré-socráticos, uma concepção orgânica de universo, de natureza. A natureza ainda não havia sido dessacralizada por completo. Estes primeiros sábios da escola de Mileto eram chamados de hilozoístas, ou seja, aqueles que pensam que a matéria é viva. Essa denominação, estabelecida pelos gregos dos séculos subseqüentes derivava do fato de que esses sábios não viam distinção alguma entre o animado e o inanimado, entre a razão e a matéria, entre os conhecimentos obtidos através dos sentidos dos obtidos através do pensamento. Eles consideravam todas as formas de existência como manifestações da physis, da matéria, dotadas de vida (CAPRA, 2003).

Segundo Aristóteles (1996), estes primeiros filósofos gregos consideravam como princípio de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Para eles, a matéria está em constante fluxo, em constante transformação. Portanto, não havia nada de metafísico ou de extraordinário no que definiria e separaria os seres humanos dos outros seres ou da natureza. Tudo seria formado da mesma matéria, da physis, estando em constante fluxo e transformação. Além desta cosmovisão, de que todos os seres são formados da mesma matéria e de que estão em constante fluxo e transformação, outra característica que estes pensadores atribuíram ao universo é de que ele é Uno, de que todos os seres estão integrados. Segundo Nietzsche (1996a), Tales de Mileto, o mais fecundo pensador desta escola, percebeu que não é o homem e sim a água a realidade de todas as coisas. Desta forma, utilizando-se do ciclo da água, Tales contemplou a unidade de tudo que é e, quando quis se comunicar, falou da água.

Com Pitágoras de Samos há um golpe no modo de conhecer destes primeiros filósofos, pois ele enfatizava o conhecimento racional, obtido através da inteligência, em detrimento aos sentidos. Também, aparece, pela primeira vez, uma concepção religiosa que enfatiza a existência de um deus racional - Apolo - e a imortalidade da alma. Esta concepção, originária da religião órfica, dá um novo conteúdo ao culto de Apolo. É um primeiro rompimento com toda a concepção religiosa vigente naquela época, o que fez surgir os primeiros elementos que contribuíram, sobremaneira, para a edificação do cristianismo e, conseqüentemente, da escolástica. Com relação a sua cosmovisão, ele afirma que o Universo está escrito na linguagem dos números, sendo determinado por eles, conforme afirma: “Devemos descobrir o número que existe nas coisas” (RUSSELL, 2001). Esta visão de universo, ou seja, mecanicista ou determinada, foi à base para o desenvolvimento e edificação do cientificismo do século XVI e XVII, que teve como principais representantes Bacon, Descartes e Newton. Por isto, Pitágoras rompe com o pensamento dos primeiros filósofos pré-socráticos, para quem o mundo era um eterno vir a ser, um mundo em constante evolução aberto ao aparecimento do novo, de imprevistos. Por sua vez, a visão orgânica de universo será ainda retomada por Heráclito de Éfeso, com sua teoria da realidade expressa na unidade dos contrários e no movimento, no devir.

Como o último dos filósofos Jônicos, que também pode ser considerado como um pensador dono de uma concepção organicista do mundo, situa-se Heráclito de Éfeso. Seu princípio fundamental era o fogo, um símbolo para o contínuo fluxo e a permanente mudança em todas as coisas. Ele acreditava num mundo em perpétua mudança, de um eterno “vir a ser”. Heráclito ensinava que todas as transformações no mundo derivam da interação dinâmica e cíclica dos opostos, vendo qualquer par de opostos como uma unidade. A essa unidade, que contém e transcendem todas as forças opostas, ele denominava como Logos (CAPRA, 2003).

Segundo Hegel (1996), ele diz que tudo flui e nada persiste, nem permanece o mesmo. Ele compara as coisas com a corrente de um rio – que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente, o rio corre e toca-se outra água. Assim, ele afirma, desta forma, que tudo é devir. Este devir é o princípio. As determinações absolutamente opostas estão ligadas numa unidade, nelas temos o ser e o não ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer de todas as coisas. O ser não é, por isso é o não ser, e o não ser é, por isso é o ser, isto é a verdade da identidade de ambos. Nesta unidade está o princípio de toda a vida. Neste sentido, Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito de Éfeso, percebiam que todas as coisas têm as suas origens na matéria, na natureza. Tudo, para eles, era manifestação da natureza, da physis. Desta forma, nada existiria de extraordinário, de metafísico, na constituição dos seres humanos que não fosse devido a uma profunda integração e interação entre o homem e a natureza. Não havia, portanto, para eles, a separação entre o conhecimento obtido através da razão com o conhecimento obtido pela percepção, ambos atuariam juntos, sem nenhuma imposição de um sobre o outro, fornecendo uma verdadeira leitura da realidade. Outros pontos importantes, afirmados por eles, é o de que o universo é Uno, estando todas as coisas integradas, e de que esta matéria está em constante fluxo, se destruindo e se construindo constantemente, originando o novo, o inesperado, conforme afirmava Heráclito de Éfeso (NIETZSCHE, 1996a).

Segundo Nietzsche (1996a), enquanto em todas as palavras de Heráclito ainda exprimem a majestade da verdade, mas da verdade apreendida na intuição, também através dos órgãos do sentido, não da verdade galgada somente pela escada de corda da lógica, enquanto ele em um êxtase sibilino vê, mas não espia, conhece, mas não calcula, aparece seu contemporâneo Parmênides, da escola eleática, como um par, igualmente como o tipo de um profeta da verdade, mas como que formado de gelo, não de fogo, vertendo em torno de si uma luz fria e penetrante. Esta escola além de também sobrevalorizar o conhecimento racional em detrimento a percepção sensorial, como Pitágoras, pressupunha, agora, um princípio Divino posicionado acima de todos os deuses e de todos os homens. Note-se que até aquele momento não havia declaradamente uma separação gritante entre estas duas formas do conhecer, entre o pensamento e a percepção dos sentidos, entre razão e matéria. Além disso, esse princípio que foi inicialmente identificado com a unidade do universo, o Ser, único e invariável, passou a ser encarado como um Deus pessoal e inteligente, onipotente e onipresente, situado acima do mundo e que o dirigia. A partir desta invariabilidade do Todo, Parmênides considerava impossível a mudança encarando aquelas que presumimos perceber no mundo como simples ilusões do sentido. Esta separação entre as duas formas de conhecer, entre razão e sentidos, veio se aprofundando e atingiu seu auge a partir do cogito cartesiano, com a máxima: Penso, logo existo!, que se verá mais a frente. Outra questão importante, que também veio a luz a partir da escola eleática, foi a edificação de um Ser Divino, posicionado acima dos deuses e homens, que mais tarde, com o cristianismo, contribuiu, ainda mais, para a dessacralização da natureza e para a divisão entre homem e natureza. Em suma, esta religião, que é uma das bases culturais da civilização ocidental, pressupõem que o homem seja possuidor de alma e o representante de Deus na Terra, sua imagem e semelhança. Aquela, a natureza, seria a desalmada, apenas o meio que o homem tinha de manter sua parte imperfeita, seu corpo, funcionando durante seu transcurso na Terra. Desses pensamentos é que originaram, respectivamente, o domínio da razão sobre a percepção dos sentidos e também, através da edificação do cristianismo, a separação entre homem e a natureza, característica marcante da filosofia ocidental (CAPRA, 2003).

Nietzsche (1996a) afirma que, em sua visão, Heráclito descobria que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser, daí concluía ele que o vir-a-ser não poderia ser injusto. Porém, Parmênides teve uma visão completamente diferente. Seu método era o seguinte: ele tomava alguns opostos, por exemplo, leve e pesado, e lhes atribuía valores de positividade e negatividade. Entre o ser (positivo) e o não ser (negativo). Mas como explicar então o vir-a-ser? Estes pólos não deveriam repelir-se constantemente como contraditórios, fazendo assim todo o vir-a-ser impossível? Para isso, ele lança mão de uma tendência mística dos contraditórios em atraírem-se, simbolizando aquela oposição pelo nome de Afrodite, através da conhecida relação mútua e empírica entre o masculino e o feminino. O poder de Afrodite é ligar os contraditórios, o ser e o não ser. Um desejo une os elementos que conflitam e se odeiam: o resultado é o vir-a-ser.  

Segundo Nietzsche (1996a), Parmênides repentinamente sentiu pesar sobre sua vida um monstruoso pecado lógico. Ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam qualidades negativas, não seres em geral, ou seja, havia suposto que A = não A, o que somente a mais completa perversidade do pensamento poderia formar. Ele, então, mergulha no banho frio de suas terríveis abstrações. O que é verdadeiro precisa estar presente eterno, dele não pode ser dito “ele era”, “ele será”. O ser não poderia vir-a-ser, pois de que ele teria vindo? Do não ser? Mas o não ser não é e não pode produzir nada. Do ser? Isto seria senão produzir-se a si mesmo. O mesmo acontece com o perecer, ele é igualmente impossível, como o vir-a-ser, com toda mutação, como todo aumento, com toda diminuição.

A partir disto, ele afirma que o ser é imóvel, pois para onde ele devia movimentar-se? Ele não pode ser infinitamente grande ou infinitamente pequeno, pois ele é acabado e um infinito dado por acabado é uma contradição. Assim, limitado, acabado, imóvel, em equilíbrio, em todos os pontos igualmentes perfeitos como uma esfera, ele paira, mas não em um espaço, pois caso contrário este espaço seria um segundo ser. Desta forma, só existe a Unidade eterna (NIETZSCHE, 1996a). Voltando-se, agora, os olhos para o vir a ser, ele dizia: “não siga os olhos estúpidos, não siga o ouvido ruidoso ou a língua, mas examine tudo somente com a força do pensamento”. Sobre este fato, Nietzsche (1996a) afirma:

 

Com isto, ele operava a primeira crítica do aparelho do conhecimento, extremamente importante e funesta em suas conseqüências. Se bem que ainda muito insuficiente. Através disso ele repentinamente separou os sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a razão, como se fossem duas faculdades inteiramente distintas, desintegrou o próprio intelecto e animou aquela divisão completamente entre corpo e razão que, especialmente desde Platão, pesa sobre a filosofia como uma maldição. Todas as percepções dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões; e sua ilusão fundamental é simular que o não ser é, que o vir a ser tem um ser. Toda aquela multiplicidade e variedade do mundo conhecido pela experiência, a troca de suas qualidades, a ordenação de seus altos e baixos, foram postas de lado impiedosamente como uma ilusão e pura aparência; não há nada para aprender dela, está perdido todo o trabalho que se tem com este mundo mentiroso, nulo e alcançado através dos sentidos. Quem pensa desta maneira, como o fez Parmênides, suprime a possibilidade de ser um investigador da natureza, seu interesse pelo fenômeno caí, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna fraude dos sentidos (p.132).

 

Com a divisão entre o como se conhece, entre a razão e a percepção, que tem sua origem na matéria, não demorou muito para que antropocentricamente se aprofundasse, sobremaneira, a desvalorização do mundo sensível, corporal, da res extensa, ou seja, do corpo e da natureza, em prol da razão, da lógica, que era a maneira ideal de se chegar à verdade, à essência do Todo. Além disso, esta concepção do Ser, um divino situado acima do mundo, invariável, imóvel e em equilíbrio, mais tarde se transformou em um Deus inteligente, onipotente, onisciente, onipresente, criador de todos os seres, e do homem a sua imagem e semelhança. Estes fatos que, mais tarde, deram a luz ao cogito cartesiano e cristianismo, respectivamente, acirraram ainda mais a separação entre homem e natureza. Além disso, a questão que envolve a concepção de um universo, já pré-determinado ou estático, escrito em linguagem matemática, conforme Pitágoras, contribuiu, sobremaneira, para a edificação da ciência moderna nos séculos XVI e XVII que fez uso deste postulado, principalmente, com figuras como Bacon, Descartes e Newton.

 

3. Sócrates, Platão e Aristóteles: a fundamentação do cristianismo e a hierarquização dos seres com base no conhecimento

 

À medida que a idéia de uma divisão entre razão e matéria tomava corpo, os filósofos voltaram sua atenção para o mundo “espiritual”, para o interior do ser humano, ou seja, para a razão, pondo de lado o material, passando a se concentrar na alma humana e nos problemas da ética, como se um, a inteligência, não dependesse do outro, o corpo material (CAPRA, 2003). Mas, esta incursão pela “alma” humana não se diferenciava em quase nada das idéias de dois dos primeiros filósofos que foram aqui comentados: Pitágoras de Samos e Parmênides.

Segundo Chauí (2005), Sócrates, um dos maiores mais influentes filósofos do mundo, mantém a separação entre opinião e verdade, entre aparência e realidade e, por fim, entre percepção sensorial e pensamento. Para ele, a alma era diferente do corpo. Ela era a consciência de si, das coisas, do bem e do mal, da justiça e da verdade. Era a inteligência como reflexão. Note-se que a alma para Sócrates estava ligada diretamente com a inteligência, e este pressuposto será mantido por São Tomás de Aquino e por Descartes. Navarro (2002) diz que, para ele, o objeto da ciência não é o sensível, o particular, mas sim o inteligível, que é o universal. Desta forma, ele afirma que não se atinge o universal pela experiência sensível, mas pela dialética que utiliza tão somente a razão como o instrumento. O particular é objeto de opinião e está, portanto, sujeito ao erro. Outra questão importante em Sócrates que, originária de Pitágoras, mais tarde também estava na origem, na base, do cristianismo, foi à busca pela perfeição moral, pela busca da virtude. Este bem, mais à frente, com a edificação do cristianismo, irá se igualar a tudo que for metafísico, ao que for imaterial, enquanto o mal seria igualado ao material e, conseqüentemente, a natureza (RUSSELL, 2001). Sócrates reconheceu a existência de uma lei natural, independente do arbítrio humano, uma lei universal, expressão da vontade divina proclamada pela voz interna da consciência, pelo daimon interior. Além, deste deus interior, que foi a viga mestra de toda a sua ação inspirada pela filosofia, Sócrates professou também a imortalidade da alma. Com efeito, para ele, a alma tem natureza divina, é imortal e eterna. Sócrates ensinava que certamente a alma do homem participa, mais do que qualquer outra coisa humana, do divino e o que o homem tem de maior e melhor é a alma e que foi Deus quem lha infundiu. A crítica que se faz ao sistema filosófico socrático é que ele equivale o bem ao que for imaterial ou sobrenatural e o mal ao que for material, reafirma a separação entre conhecimento sensível do racional, ou seja, ele enfatiza o conhecimento racional, e mantém as idéias sobre a imortalidade da alma e sobre existência de Deus, originadas a partir de Pitágoras Samos e Parmênides. Estas idéias Socráticas, mais à frente, foram utilizadas para a construção do cristianismo, uma religião tipicamente antropocêntrica, que viria, algum tempo depois, após receber outras influências, ajudar a dessacralizar ainda mais a natureza. Assim, com esta teoria, alguns historiadores arbitram que o humanismo de Sócrates devia se classificar de humanismo pré-cristão (NAVARRO, 2002).

Platão também dividia o conhecimento entre sensível e inteligível. Para ele, indo ao encontro de Parmênides, o devir incessante impossibilita o conhecimento, uma vez que este exige que encontremos essências, seres cuja natureza permanece sempre idêntica no espaço e no tempo, sempre igual a si mesma, garantindo a necessidade de sua realidade e a universalidade de seu conhecimento. Segundo Platão, Parmênides não estava inteiramente equivocado. Ao exigir identidade, imobilidade, perenidade e unidade do ser, foi o primeiro ao aproximar-se do inteligível, isto é, das formas (eide) incorpóreas e imateriais, imutáveis e idênticas, ou seja, do mundo das idéias, conhecidas exclusivamente pela inteligência. A identidade, imobilidade, perenidade e unidade das formas imateriais é a marca das idéias, ou do mundo puramente inteligível que só alcançamos pelo pensamento e jamais pelos sentidos ou pelas sensações. O engano de Parmênides, entretanto, esteve em supor que havia uma única forma inteligível, uma única idéia ou essência, o ser, quando, na verdade, para Platão, existe uma pluralidade de essências, que são as idéias, conhecidas exclusivamente pelo pensamento e obtidas a partir da dialética. O mundo das idéias de Platão irá influenciar muito a idealização do Reino dos Céus propalado por Jesus Cristo e, mais tarde, pelo Cristianismo (CHAUÍ, 2005).

Com relação as questões que envolvem a existência de Deus e a existência de uma alma imortal, Platão acreditava que uma nação devia ter um cimento moral. Os membros da comunidade devem compor uma unidade. Assim, ele acreditava que uma nação não podia ser forte, a menos que acreditasse em um Deus. Uma simples força cósmica, uma causa primeira, ou um élan vital, que não seja uma pessoa, mal poderia inspirar esperança, devoção ou sacrifício. Não poderia oferecer conforto aos corações aflitos, nem coragem às almas em conflito. Mas um Deus vivo pode fazer tudo isso e incitar ou obrigar, pelo medo, o individualista moderar um pouco a sua ganância, a controlar um pouco sua paixão. Ainda mais se a crença em Deus se acrescentar a crença na imortalidade pessoal: a esperança de uma outra vida nos dá coragem para enfrentar a nossa morte e suportar a morte dos entes queridos; estaremos duplamente armados se lutarmos com fé (DURANT, 1996). Em se tratando da alma, Platão acreditava que ela era anterior ao corpo e antes de aprisionar-se nele pertenceu ao mundo das idéias. A alma superior é imortal e retornará à esfera das idéias após a morte do corpo, que mais a frente, com a edificação do cristianismo, tornou-se o reino de Deus (NAVARRO, 2002).

 Até este momento temos a separação gritante entre o conhecimento racional do conhecimento sensível. A ênfase dada por estes filósofos no conhecimento racional, em detrimento ao conhecimento sensível, da natureza ou da res extensa, a partir de Parmênides, irá atingir seu ápice com o cogito cartesiano, como se verá mais adiante. Outros dois filósofos importantes, Aristóteles e São Tomás de Aquino, não separam estas duas formas de conhecer, atentando que para se obter o conhecimento inteligível é necessário o conhecimento sensível. Porém, depositam no conhecimento racional, na abstração, a única maneira de se chegar à verdade. O que se busca em Aristóteles e São Tomás de Aquino, neste trabalho, é que um hierarquiza os seres tendo como base a noção de como se conhece e o outro, respectivamente, irá apropriar-se desta hierarquização, tendo como base, agora, as criaturas mais perto ou mais distantes de Deus pela perfeição e pela existência da alma. No caso de São Tomás de Aquino há ainda o pressuposto que liga a alma imortal ao conhecimento inteligível, como acontece também em Sócrates. Por sua vez, as questões referentes à existência de Deus e de uma alma imortal até aqui estão já consolidadas, prontas para serem utilizadas como objetos primordiais para a edificação do cristianismo. Assim, a questão referente à imortalidade da alma e da existência de Deus, tendo sua origem em Pitágoras de Samos, recebeu influência significativa de Sócrates e de Platão e vai adquirir uma influência maior ainda com a edificação do cristianismo, da escolástica e, por fim, do cartesianismo. Assim, esta ênfase dada a esta forma de conhecer, o racional, não levando em conta outras formas de conhecer, que atuam em conjunto e contribuem para a manutenção da vida na Terra, e da edificação do cristianismo, que recebeu as idéias de imortalidade da alma e de Deus destes filósofos gregos, vão causar, mais adiante, com a edificação do cristianismo e do sistema filosófico cartesiano, a dessacralização da natureza, principalmente, por estas formas de conhecer estarem fundamentadas em valores antropocêntricos, em valores que afirmam a razão como a única forma de se chegar à verdade, da criação dos homens a imagem e semelhança de Deus e da existência da alma como prolongamento da vida junto ao Divino iluminado segundo a teologia cristã. Mas, em primeiro lugar, é necessário, antes de adentrar no cerne do cristianismo, estudar Aristóteles e entender quais são os pressupostos de sua filosofia que mais tarde foram utilizados para a construção da escolástica, principalmente, por São Tomás de Aquino, e que contribuíram, ainda mais, para a dessacralização da natureza. 

Na física aristotélica o mundo é incriado. A divindade suprema ou Deus é o motor imóvel do universo, o pensamento que pensa a si mesmo e que nada cria, movendo o mundo como causa final, sem conhecê-lo, como o amado atrai o amante. A alma não é mais do que a forma do corpo organizado, devendo nascer e morrer com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural. É uma filosofia tipicamente materialista. Assim, esta filosofia aristotélica ignorava totalmente as noções de Deus criador e providente, bem como as de alma imortal, queda e redenção do homem, todas fundamentais a doutrina cristã (MATTOS, 2000). Mas o que importa aqui, neste trabalho, para se entender como os postulados de Aristóteles, mais tarde, foram utilizados por São Tomás de Aquino e ajudaram ainda mais a dessacralizar a natureza, é compreender seu tratado “Da Alma”. Segundo Aristóteles (2006), o princípio que dá a vida aos seres inanimados e animados possui faculdades. Algumas criaturas animadas possuem todas as faculdades, outras algumas e outras, ainda, apenas uma. As faculdades são a Alma Nutritiva, a Alma Sensitiva e a Alma Intelectiva. Através destes três tipos de alma é que se estabelece uma hierarquia de seres, que mais tarde, em São Tomás de Aquino, vão exercer uma grande influência. Assim, conforme Aristóteles (2008), os vegetais tem alma nutritiva, que é o principio mais básico e elementar da vida, responsáveis pelas funções biológicas como nutrição, crescimento e geração, portanto, ocupam o nível inferior desta escala. Os animais ocupam um nível superior, pois possuem, além da alma nutritiva, a alma sensitiva, com os  cinco sentidos que Aristóteles, no capítulo II da Alma, faz uma exposição deles. Depois de investigar as almas nutritiva e sensitiva, faz uma investigação acerca da alma Intelectiva (intelecto). Assim, desta faculdade somente o homem é dotado, somente ele tem a capacidade de conhecer. Aristóteles caracteriza o intelecto como “aquela parte da alma que permite o conhecer e o pensar”. O objeto, atingido pelos sentidos, é também atingido pela inteligência, a qual abstrai nele a noção de ser. Desta forma, a vista vê a cor, e a inteligência diz que é a cor. Uma vê a casa, a outra diz que é a casa, e assim por diante. Esta hierarquização, baseada no conhecimento, se transformará a partir de São Tomás e será construída a partir do grau de proximidade com o divino pela perfeição e existência de alma.  

 

4. O cristianismo e a escolástica: a visão utilitarista da natureza

 

A partir da edificação do cristianismo, baseado em uma série de outros sistemas filosóficos, é que houve, de uma vez, a translocação dos valores místicos dos bens naturais para uma entidade única, absoluta, onipotente, onipresente e onisciente, Deus (ALMEIDA et al, 1993). Mas quais as influências filosóficas contribuíram para a edificação deste sistema? Em que pontos ele representou um dos marcos fundadores para a dessacralização da natureza que, após este sistema, de uma vez por todas, passou a ser um bem de utilidade para o homem? Ou seja, a forma do ser humano manter sua parte imperfeita funcionando durante seu trajeto na terra, em busca de uma verdadeira existência, dada pela alma, no “Reino dos Céus” e junto ao divino? Pode-se dizer que o cristianismo, que veio dominar o ocidente, é uma mistura da cultura grega, desde a sua antiguidade, da religião dos judeus e cultura oriental. Ele recebeu, por parte dos gregos antigos, principalmente, de Pitágoras, Parmênides, Sócrates e Platão, os elementos responsáveis pela existência da alma imortal, que viveria uma existência extra-sensível, no Reino dos Céus, junto à Deus. Também recebeu alguns princípios éticos de Sócrates e Platão, como o qual enfatiza a virtude, os bens imateriais em detrimento aos bens mundanos, aos bens materiais, como bem supremo a ser atingido pelo ser humano. Deste modo, é que Platão tornou-se o guia que desviava os seus olhos da realidade material e sensual para o mundo imaterial (JAEGER, 2002). Esta visão, que também liga a virtude a sobrenaturalidade, ou seja, ao culto da alma e a um poder supremo, Deus, passou a amaldiçoar a beleza e o prazer como abjetos e nocivos. Desta forma, oficialmente, o cristianismo conserva a estranha noção que o prazer é pecaminoso. Mais a frente, também, esta religião, chegou a igualar a distinção entre espírito e matéria com a antítese do bem e do mal, como se um (razão e o espírito) não dependesse do outro (matéria), e como se o ser humano, dotado de virtude sobre-humana, não dependesse da natureza, o mal personificado (RUSSELL, 2001). Outra questão importante, originada a partir do cristianismo, é a que torna a natureza apenas um objeto de utilidade para o ser humano durante sua passagem na terra, cuja finalidade, para os justos, é viver a eternidade junto ao divino no Reino dos Céus. Tem-se, como reflexo destas teorias, a falta de apreço à res extensa, ao corpo, a natureza. O ser humano deixa, de uma vez por todas, de comungar com o natural e passa a comungar com o que existe em suposição, com algo metafísico que sonha um dia alcançar, ou seja, uma vida em outro mundo, no “Reino dos Céus”, junto a um divino onipotente, onisciente e onipresente, Deus. Desta forma, ele transloca valores dos bens naturais para esta entidade. Esquece-se, portanto, que a verdadeira vida está na terra, neste mundo, e que a natureza não é algo apenas que serve para manter seu corpo funcionando, durante seu trajeto neste mundo em busca de uma vida no reino dos céus, mas, sim, é uma extensão do seu próprio corpo, que dela necessita para sobreviver, como afirmava Spinoza quando enfatizava que necessitaríamos também de uma filosofia do corpo, não apenas da mente (DELEUZE, 2002). Outra filosofia a influenciar o cristianismo foi a doutrina cínica de Diógines, que, por sua vez, é uma ramificação da doutrina de Sócrates. Ela também manda o ser humano a se afastar dos bens mundanos, na Terra, e concentrar-se na virtude, no sobrenatural, como único bem digno de se ter. Por sua vez, dentre o mais influente movimento filosófico que participou, sobremaneira, da criação do cristianismo, está o estoicismo. O fundador do estoicismo foi um mercador fenício chamado de Zenão, portanto, dai então o seu lado oriental. O estoicismo pregava a coragem diante o perigo e do sofrimento e a indiferença diante às circunstâncias materiais. Neste sentido, para este movimento filosófico os bens materiais têm pouco valor. Ao rejeitar os “falsos” atrativos dos bens externos, um homem se torna perfeitamente livre, pois a sua virtude, a única que importa, não pode ser atingida por pressões exteriores. Além disso, os estóicos haviam ensinado que o princípio divino e causa do mundo era o Logos, que penetrava tudo o que existe. Este Logos, que Sócrates em parte pré-anunciou, a lei universal, que mais tarde foi trabalhada por São Tomás de Aquino e que foi tida como a base para a edificação do cientificismo dos séculos XVI e XVII, tomou a forma humana em Cristo, como diz o quarto evangelho, pois Cristo surge aí como poder criador do verbo pelo qual o mundo foi feito (JAEGER, 2002). A postura estóica advinda desta doutrina, uma das bases do cristianismo, será muito criticada negativamente por Nietzsche, no seu livro “O Anticristo”. Neste processo de translocação de valores místicos dos bens naturais para uma entidade única, Deus, e da aceitação das circunstâncias adversas pelos homens, através do estoicismo, outras posturas são adquiridas através do judaísmo, o último pilar religioso a influenciar o cristianismo. Assim, o cristianismo irá compartilhar do judaísmo a visão que deus tem seus favoritos, a visão de história em que o mundo foi criado por Deus e se encaminha para um fim divino e adere, tal qual o judaísmo, a idéia essencialmente neoplatônica da existência de um outro mundo, através da teoria das idéias ou mundo das idéias. Outro ponto importante desta religião, também, consistia do julgamento final do homem após sua morte, do futuro acerto de contas, quando os justos iriam para o céu e os maus arderiam no inferno. O elemento recompensa tornou o cristianismo universalmente conhecido (RUSSELL, 2001). Além de dessacralizar a natureza, através da translocação de valores dos bens naturais para um entidade única e onipotente, de tornar a natureza apenas um meio do ser humano se realizar na terra até sua passagem para um outro mundo, o Reino dos Céus, ele também tornou o homem subserviente às adversidades da vida, impostas ao homem pela má sorte ou pelos “fortes”, como afirma Nietzsche em “O Anticristo” (1996b): “A oposição da moral e do cristianismo ao mundo e à política é uma pseudo-oposição que oculta uma básica conveniência: a moral é o meio no qual os padres fundamentam o seu poder, tiranizam as massas e arregimentam as manadas” (p.12).

Com a unificação do cristianismo com a filosofia aristotélica tem-se a origem da escolástica. Entronizada na Idade Média, principalmente, por São Tomás de Aquino, essa filosofia teológica coloca a natureza à disposição do homem, tornando-o hierarquicamente superior (ALMEIDA et al, 1993). Mas em que consiste essa filosofia e como ela colaborou para que o homem seja hierarquicamente superior à natureza? Pode-se dizer que São Tomás de Aquino operou uma transformação na distinção aristotélica entre essência e existência. Segundo Mattos (2000), nos “Segundos Analíticos”, Aristóteles distingue entre as questões “o que é um ser?” E “esse ser existe?”. A resposta à primeira pergunta constitui a definição de uma essência, mas, para Aristóteles, uma definição não implica jamais a existência, lógica ou empírica, do definido. Tomás de Aquino, ao contrário, interpreta aquela distinção como ontológica, real. Assim, Tomás de Aquino conclui que a definição de uma essência não implica sua existência e, portanto, elas não existem por si mesmas, e sim devido a uma outra realidade. A distinção real entre essência e existência torna-se, assim, o fundamento metafísico da contigência das criaturas humanas e permite introduzir no peripatetismo a idéia de criação. Deus seria, assim, criador de todas as coisas e fundamento de suas existências contingentes. Torna-se perfeitamente concebível pela razão que o mundo seja um conjunto de criaturas contingentes cuja existência é dada por Deus, criadas a partir do nada e escalonadas segundo graus diversos de perfeição e participação na essência e existência divinas, como sugeriu Aristóteles (2006) em seu tratado “Da alma”. No ápice da hierarquia das criaturas encontram-se os anjos e, para explicá-los, a distinção tomista entre essência e existência revela-se particularmente eficiente. Conforme os textos bíblicos, os anjos seriam puros espíritos, o que – interpretado aristotelicamente, sem o principio tomista da distinção ontológica entre essência e existência – levaria à conclusão de que são puras formas e, portanto, incriados, eternos. A distinção ontológica entre essência e existência permite reinterpretar o princípio aristotélico segundo o qual a forma dá a existência: São Tomás de Aquino pode então afirmar que é por intermédio da forma que Deus proporciona existência aos anjos, que seriam, assim, seres contingentes. Os anjos seriam criaturas como as demais, embora incorpóreas e possuidoras da mais alta perfeição entre as criaturas. Na hierarquia descendente das criaturas, o homem aparece como um ser dotado de duplo compromisso. Por sua alma, pertence à série dos seres imateriais, mas não é uma inteligência pura, como a dos anjos, pois se encontra essencialmente ligada a um corpo. A alma humana é assim um horizonte onde se tocam o mundo dos corpos e os dos espíritos. Por esta dupla natureza é que o homem pode conhecer, já que é alma, mas não pode ter contato direto com o inteligível, porque também é corpo (MATTOS, 2000). Em um último nível hierárquico estaria, a desalmada, natureza. Representaria, mais uma vez, o meio do ser humano manter sua parte imperfeita – o corpo - funcionado durante seu transcurso sobre este mundo, enquanto que alma aguardaria o momento de sua passagem para um outro mundo, o Reino dos Céus, junto ao Divino. Neste sistema, ou seja, no cristianismo da Idade Média ou a Escolástica, está embutida a idéia de que o homem transcende a natureza. Tem-se, portanto, explicitada a relação utilitarista da natureza, pois a natureza estaria ali apenas para servir o homem, imagem e semelhança de Deus (TOZONI-REIS, 2004). Outra questão que adveio da escolástica foi a das leis universais, também presentes em Sócrates, que regulam o funcionamento do mundo que foi a base para o cientificismo do século XVI e XVII. A convicção fundamental da ciência é que o mundo funciona de acordo com leis e princípios regulares e constantes e, portanto, previsíveis. Essa base é oriunda da visão cristã de que o mundo foi criado de forma ordenada por um único Deus (WHITE, 1967).

 

5. A ciência: o último pilar da dessacralização da natureza

 

Com a revolução científica, nos séculos XVI e XVII, instituiu-se uma feição mecanicista à natureza, despojando-a completamente de qualquer vestígio de sacralidade. Nomes como Bacon, Newton e, principalmente, Descartes conferem ao universo uma ótica cibernética, mecanicista, onde engrenagens funcionam harmonicamente. O cientificismo cartesiano atesta valor a natureza como bem de utilidade. Separa o corpo da mente, razão da emoção e, por conseguinte, homem de natureza. A partir de então, consolida-se no paradigma dominante a antropocentrização do mundo. Mas em que consistia as principais idéias destes filósofos-cientistas? Como elas influenciaram o modo de conduta do ser humano até os dias de hoje? Como elas reafirmaram a razão em detrimento ao conhecimento sensorial, como a razão foi utilizada por eles, e como se mantive nestes sistemas, principalmente, no cartesianismo, questões como a imortalidade da alma e da existência de Deus?

Todos os cientistas que fizeram parte deste grande movimento, o cientificismo do século XVI e XVII, acreditavam que o mundo estava baseado em leis universais, imutáveis, dadas por Deus, e expressas em linguagem matemática. Assim, Galileu (1987) afirmava: “O universo está escrito em linguagem matemática” (p.43), e todos também concordavam com esta assertiva. Como se viu, durante toda discussão que se realizou neste trabalho, esta idéia não é original, está presente em Pitágoras de Samos, em Sócrates, na doutrina dos estóicos e no cristianismo e, conseqüentemente, na escolástica. Este último movimento filosófico religioso, cuja principal figura foi Tomás de Aquino, preparou o solo fértil por onde a ciência iria germinar. Assim, estes cientistas, principalmente, Bacon, Descartes e Newton, mantiveram este postulado. Porém, as suas abordagens da ciência foram decisivas para que na natureza, a desalmada em épocas anteriores, se cravasse o último pilar que veio a dessacralizá-la por completo.

O primeiro cientista que contribuiu para, mais uma vez, enfatizar a razão sobre a realidade sensorial, foi Francis Bacon, pai do indutismo. Com Bacon o objetivo da ciência foi o de retirar dela, da natureza, aquele conhecimento que pudesse ser usado para dominá-la e controlá-la, não para admirá-la e entendê-la. Os termos em que Bacon defendeu esse novo método empírico de investigação eram não só apaixonados mas, com freqüência, francamente rancorosos. A natureza, na opinião dele, tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada a servir” e “escravizada”. Devia ser “reduzida à obediência”, e o objetivo dos cientistas era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”. Muitas dessas imagens violentas parecem ter sido inspiradas pelos julgamentos de bruxas que eram freqüentemente realizados no tempo de Bacon. Como chanceler da coroa no reinado de Jaime I, Bacon estava intimamente familiarizado com tais denúncias e libelos; e, como a natureza era vista como fêmea, a mãe nutritiva, não deve casar surpresa o fato de ele ter transferido as metáforas usadas no tribunal para os seus escritos científicos. De fato, sua idéia da natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos de bruxas do começo do século XVII (CAPRA, 1999).

Outro cientista conhecido como fundador da filosofia moderna foi René Descartes (2000). Este filósofo enfatizava a razão em detrimento aos sentidos e igualava a existência da alma com a inteligência, como o fez Sócrates e São Tomás de Aquino. Também, para compor seu sistema filosófico, acredita que o mundo está regido por leis invariáveis, dadas por Deus, e escritas em linguagem matemática, conforme afirma na quinta parte de seu livro “Discurso do Método”: 

 

Permaneci sempre firme na resolução de não supor nenhum outro princípio que não fosse o de que me servi para demonstrar a existência de Deus e alam, bem como na de não aceitar como verdadeiro nada que não me parecesse tão claro e tão certo como me pareciam antes das demonstrações dos geômetras. Ouso dizer, todavia, que não só encontrei o meio de me satisfazer, em pouco tempo, no tocante às principais dificuldades geralmente abordadas pela filosofia, como também observei que certas leis por Deus estabelecidas de tal forma na natureza e cujas noções por Ele impressas em nossas almas são tais que, depois de refletir bastante a respeito delas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo que existe e se faz no mundo (p.47).

 

Seu método analítico de raciocínio é provavelmente a maior contribuição de Descartes a ciência. Porém, a ênfase dada ao método cartesiano levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência – a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes. O que a ciência, neste momento, vem contradizer, principalmente, quando se baseia na física quântica e no funcionamento dos sistemas vivos. Aliando este método ao seu cogito: “Penso, logo existo”, Descartes (2000) atribuiu a existência dos seres humanos a uma alma intelectiva. A natureza, a flora e a fauna, as desprovidas de inteligência e desalmadas, foram tratadas como máquinas animadas, em sua linguagem, automatas, destituída de sentimentos e de inteligência. Segundo afirma Capra (1999), em sua tentativa de constituir uma ciência natural completa, Descartes estendeu sua concepção mecanicista da matéria aos organismos vivos. Plantas e animais passaram a ser consideradas simples máquinas e o ser humano, mais uma vez, apesar de sua parte imperfeita, o seu corpo, era habitado por uma alma racional que estava ligada ao corpo através de uma glândula pineal, no centro do cérebro. Descartes privilegiou a mente me relação à matéria, a res extensa ou natureza, levando a conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente diferentes. Ele afirmou que “não há nada no conceito de corpo que pertença a mente, e nada na idéia de mente que pertença ao corpo”. Assim, a divisão cartesiana entre matéria e mente teve um efeito profundo sobre o pensamento ocidental. Uma importante crítica ao sistema cartesiano ou de Descartes é feita, de forma poética, por Milan Kundera (1995), no capítulo sétimo, O sorriso de karenin, do livro “A insustentável Leveza do Ser”:

 

Uma novilha se aproxima de Tereza, pára, e olha para ela longamente com grandes olhos castanhos. Tereza a conhece. Chama-se Marketa. Gostaria de ter dado um nome a cada uma das novilhas mas não pode, são muitas. Há uns trinta anos certamente teria sido assim, todas as vacas do lugar teriam um nome (se o nome é sinal da alma, posso dizer que elas tinham uma, apesar de desagradar Descartes). Mas a aldeia tornou-se uma grande usina cooperativa e as vacas passam a vida em dois metros quadrados de estábulo. Não tem mais nome, são apenas machinae animatae. O mundo deu razão a Descartes. Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um tronco, acariciando a cabeça de Karenin (cachorro), e pensando no desvio da humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel de Turin. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo. É este Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se afastando do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da natureza”, prossegue sua marcha para frente (p.292).

 

Com isso, plantas e animais passaram a serem considerados como simples máquinas animadas, dessacralizados por completo, e o ser humano era tido como que habitado por uma alma racional que estava ligado ao corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro. No que dizia respeito ao corpo humano, era indistinguível de um animal máquina, mas permanecia salvo por possuir alma e inteligência. A ênfase dada ao racional por René Descartes, através de sua célebre máxima: “Cogito, ergo sun” encorajou eficazmente os indivíduos ocidentais a equipararem as suas identidades com suas mentes racionais e não com os seus organismos totais. Na medida em que nos retiramos para nossas mentes, esquecemos de como “pensar” com nossos corpos, de que modo usá-los como agentes de conhecimento (CAPRA, 1999). Por outro lado, este modo de pensar, também habilitou industrias gigantescas a venderem produtos, especialmente para mulheres, que proporcionam o corpo ideal. É preciso notar aqui, que a busca pelo corpo ideal pelas mulheres e, principalmente, pelos jovens em academias de ginásticas, na maioria das vezes, é feita através de métodos artificiais, como, por exemplo, com cirurgias plásticas ou com o uso de anabolizantes. Não há uma filosofia do corpo que complemente uma filosofia da mente, que perceba que tudo, igualmente como a natureza, tem que obedecer a um processo orgânico. Segundo Hinkelammert (2000), a divisão entre corpo e matéria também contribuiu decisivamente para que os seres humanos se reconhecessem como egos isolados dentro de seus corpos, o que trouxe sérias implicações éticas para outros dois dos três registros ecológicos que compõem o que se entende por meio ambiente: as relações sociais e a subjetividade. Para este sujeito atomizado e transcendental, o do penso logo existo, filosofia esta que também encerra uma das bases do liberalismo econômico, não há relações que impliquem tornar o outro pessoal (homem/natureza), tudo se reduz em uma ética da coisificação, num mundo onde os “objetos”, as máquinas animadas, homem e natureza, têm que ser dominados, explorados e expropriados, para satisfazer sua parte imperfeita, o seu corpo, durante seu trajeto sobre o planeta terra. Assim, agindo desta maneira, o ambiente passa a ser tido como algo fora ou externo ao ser humano e ele, o ser humano, desta forma, desliga-se do seu meio ambiente, do outro e da natureza, e se esquece de comungar e cooperar com uma rica variedade de organismos vivos de que necessita para sobreviver. 

Um outro nome importantíssimo para a revolução cientificista foi Newton. Na mecânica newtoniana todos os fenômenos físicos estão reduzidos ao movimento de partículas materiais causado por atração mútua. Na concepção newtoniana, Deus criou as partículas materiais, as forças entre elas, e as leis fundamentais do movimento. Todo o Universo foi posto em movimento desse modo e continuou funcionando, desde então, como uma máquina, governado por leis imutáveis, estabelecidas por Deus. A concepção mecanicista da natureza está, pois, intimamente relacionada com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dada origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer parte do sistema podia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza, desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse conhecido em todos os seus detalhes (CAPRA, 1999).  

 Na esteira da física newtoniana, Locke desenvolveu uma enorme concepção atomística da sociedade, descrevendo-a em termos de seu componente básico: o ser humano. Assim, como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos de seus átomos, ou moléculas, também Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade a comportamento dos seus indivíduos. Segundo Capra (1999), quando Locke aplicou sua teoria da natureza humana aos fenômenos sociais, foi guiado pela crença de que existem leis da natureza que governam a sociedade humana, leis semelhantes às que governam o universo físico. Tal como os átomos de uma gás estabelecem um estado de equilíbrio, também os indivíduos humanos se estabilizariam numa sociedade num “estado de natureza”. Assim, segundo Locke essas leis naturais incluiriam a liberdade e a igualdade entre todos os indivíduos, como o direito à propriedade, que representava os frutos do trabalho de cada um, formando a base de como ficou conhecido o sistema liberal ou liberalismo econômico. É necessário entender este sistema filosófico e econômico como uma base para a realização da classe burguesa, que queria angariar o poder político, para a realização de suas atividades mercantis. Conforme Russell (2001), o liberalismo, que foi um produto das classes médias em ascensão, em cujas mãos se desenvolviam o comércio e a industria, opunha-se às arraigadas tradições de privilégios, tanto da aristocracia como da monarquia. Desta forma, afastando o poder da aristocracia e das monarquias sobre a política e a economia e calcado num individuo atomizado, que se realizaria no mercado, cujas bases eram supostas “leis naturais”, implícitas na sociedade, que regeriam como uma “mão invisível” a economia e o bem estar de todos, daí então sua máxima “Laissez faire, laissez passer,deixe fazer, deixe passar”, o liberalismo caiu como uma luva para a realização da burguesia mercantil. As idéias de Locke como a do individualismo, direito à propriedade, mercados livres e governo representativo foram essenciais para o desenvolvimento do liberalismo e, com ele, agravou-se ainda mais a exploração e expropriação do homem e da natureza.

Neste sentido, a dessacralização da natureza originada, principalmente, com o cristianismo, e a ética egocêntrica advinda do sistema filosófico cartesiano, juntamente com a física social de Locke, baseada no sistema newtoniano, irá solidificar o terreno onde se desenvolverá, ainda mais, o sistema de produção capitalista. Desta forma, esta é uma lógica antropocêntrica, legitimadora de um contrato excludente – homem x homem e todos os homens x natureza. Ela centrou-se no homem e na potencialização desses valores – tendo como pano de fundo a autonomia e o poder de um pseudo-sujeito evadido do seu meio ambiente – originados num escopo individualizado, não integrado, que se mescla a uma prática de conhecimento objetivo. Em poucas palavras, o homem, principalmente, a partir do sistema cartesiano, vem construindo sua emancipação às custas da depleção da natureza e do outro. Portanto, ao se considerar como imagem e semelhança de Deus, o seu representante na Terra, distinto da natureza, e possuidor de alma e razão, o homem criou um amplo espaço para subjugar a natureza: a diferença, a desalmada e o irracional (FERREIRA, 2000). 

 

6. Considerações finais

 

Através destas discussões, empreendidas neste trabalho, compreende-se que as origens da dessacralização da natureza, atribuídas a ênfase na razão e no cristianismo, têm as suas origens na história, no como o homem conhece e transforma sua realidade imediata, e influenciam decisivamente as atitudes, idéias e comportamentos, dos seres humanos no presente. Ou seja, constituem os pilares, juntamente com o sistema de produção capitalista, da crise ambiental vigente.

 

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Ilustrações: Silvana Santos