PINTURAS PARIETAIS, IDENTIDADES E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: acerca das ARTES VISUAIS e de suas falas
Amanda Ribeiro Corrêa[i]
Cláudia Mariza Mattos Brandão[ii]
Foi a partir do final do Século XX que o discurso ambientalista passou a fundamentar-se na ressignificação das relações do homem com o meio. Com o fortalecimento das ideias de autores como Félix Guattari e Edgar Morin é possível entender a complexidade das questões ambientais, fato que impossibilita limitá-las a ações preservacionistas. Mais do que isso, trata-se de reconhecer a necessidade de uma abordagem ecossistêmica, que confira à Educação Ambiental uma visão mais ampla, conjugando a perspectiva ecológica, a social, a cultural e a econômica.
Tal postura visa o estabelecimento de uma nova relação entre a humanidade e a natureza. Ela implica na consciência de que as questões ambientais resultam das relações do homem consigo mesmo, com os outros e com o mundo ao redor (GUATTARI, 1990), num processo que visa o conhecimento do humano situado no universo (MORIN, 2000). Nesse sentido, é fundamental pensarmos sobre os sujeitos imersos em relações de alteridade, interferindo e modificando o seu meio a partir de uma dimensão ética que reflete escolhas, percepções, valores e ideais.
Para a compreensão do tempo presente, portanto, é fundamental permearmos os saberes para o entendimento das sociedades e de suas produções artístico-culturais, sem separar a arte da ciência, a razão da sensibilidade. Isso porque hoje compreendemos que as obras de arte resultam, acima de tudo, de pensamentos críticos e reflexivos sobre a própria condição humana. A arte se constitui num fenômeno social e as obras dão visibilidade a valores religiosos, éticos, sociais e políticos, numa íntima relação com os contextos históricos que lhes deram origem. Sendo assim, analisar as produções artísticas nos possibilitam avaliar mentalidades e comportamentos indicativos das relações dos indivíduos com o seu contexto socio-histórico.
Este artigo tem por objetivo ponderar sobre algumas produções do artista mexicano Diego Rivera, discutindo as pinturas parietais como produções artísticas que manifestam identidades. Baseadas nos estudos de Stuart Hall (1999) e suas definições de identidades nacionais – entendidas como “comunidades imaginadas”, que através de suas representações propõem uma unificação das identidades –, e de identidades pós-modernas, caracterizadas pela fragmentação, traçamos um paralelo entre as produções do artista mexicano e a de grafiteiros contemporâneos. Assim é possível visualizar transformações nas mentalidades ocorridas ao longo do século XX, que são determinantes para a compreensão da complexidade da atualidade, principalmente, das questões relativas às identidades dos sujeitos contemporâneos e suas relações.
Tanto as obras muralistas mexicanas, assim como os graffiti contemporâneos, são manifestações de pinturas parietais apresentadas em grandes dimensões. Elas fogem da tradição da pintura sobre tela e compartilham de um ideal de democratização da arte, utilizando o espaço urbano como suporte, sem restringir o seu acesso a um público específico, consumidor de arte, mas levando-as ao povo em geral. Tais produções diferenciam-se entre si em relação à forma como manifestam as identidades dos sujeitos relacionados a seu tempo histórico. Entretanto, mesmo quando não focam um discurso explícito de consolidação identitária, por estarem em um espaço-tempo específico, integradas a um contexto próprio, tais manifestações são documentos de uma época e dos sujeitos que nela interagem. Sendo assim, elas nos fornecem subsídios para a reflexão sobre as interrelações que revelam, permitindo ponderarmos acerca das relações do homem com o meio em dado momento histórico.
1. Muralismo Mexicano e a identidade nacional
Figura 1: Diego Rivera.
The Exploiters (Os Exploradores), 1926. Fresco.
Fonte: http://www.diego-rivera.com/
O movimento muralista mexicano surgiu após a Revolução Mexicana (1910/1920) e trinta anos de ditadura militar, como representações visuais latino-americanas vinculadas aos movimentos modernistas. Quando Álvaro Obregón, o primeiro líder revolucionário, assumiu o cargo de Presidente, o então presidente da Universidade e ministro da Educação José Vasconcelos organizou a elaboração de murais para que os artistas mexicanos, através de suas pinturas, narrassem a história do povo e fortalecessem o sentimento de pertença de seus integrantes (Figura 1). A ideia era a de consolidar uma identidade nacional através da cultura imagética representativa do lugar habitado. Entre os jovens artistas mexicanos envolvidos no projeto dos murais, estavam Diego Rivera, David Alfaro Siqueros e José Clemente Orozco, todos já reconhecidos por suas produções e em contato direto com as vanguardas internacionais. Eles eram chamados de “Los Tres Grandes” devido a expressiva representatividade que tiveram no movimento muralista.
Os artistas muralistas defendiam o rompimento com a arte burguesa de referências européias e “apontavam a tradição indígena como o modelo do ideal socialista de uma arte aberta, para o povo: uma arte que fosse aguerrida, educativa e para todos” (ADES, 1997, p.153). Os murais foram pintados por todo México, em palácios, igrejas, escolas, museus, ministérios, etc. Alguns estavam localizados em lugares mal projetados, dificultando a execução. Além do objetivo de comunicar ao povo algo que servisse como referencial identitário, a pintura mural era uma forma de garantir o acesso do povo a arte, após anos de dominação.
Os artistas latino-americanos deste período, ao manterem contato com os movimentos europeus de vanguarda, reelaboraram ideias e técnicas das diferentes tendências, adaptando-as às particularidades da cultura local. Portanto, as tendências modernistas não foram incorporadas como estilos prontos, mas, sim, como um ideal renovador, pois os vanguardistas se contrapunham aos cânones do passado e muitos problematizavam em suas obras as mudanças sociais acarretadas pela modernização. Assim, de forma inovadora, estes artistas expressavam suas preocupações com a retomada das raízes, apresentando suas obras como documentos da cultura mexicana.
É importante salientar que mesmo que os artistas de vanguarda compartilhassem da vontade de detonar uma revolução artística, se opondo aos valores do passado expressos por uma arte burguesa, as manifestações não eram homogêneas tanto em termos formais quanto em relação às questões sociais. Os artistas compartilhavam da busca por uma manifestação artística que representasse uma identidade nacional, no entanto, não concordavam muitas vezes a respeito da função social da arte e na forma estética desta representação.
Figura 2: Diego Rivera.
The History of Cuernavaca and Morelos - Crossing the Barranca - Detail (A História de Cuernavaca e Morelos - Atravessando a Barranca - Detalhe), 1929-30. Fresco.
Fonte: http://www.diego-rivera.com/
Entre “Los Tres Grandes”, os murais de Diego Rivera (Figura 2) merecem destaque por seu cunho social. Neles aparecem bem definidos os temas políticos e históricos, abordados sem a utilização de ambigüidades e sátiras, como outros faziam. Em suas representações da sociedade mexicana, Rivera contrasta o mundo moderno industrial com a exploração e opressão dos trabalhadores, destacando o embate entre o México industrial e o México rural, sendo que o rural era tratado como essencial e pitoresco, não de forma pejorativa. Imagens de ricos e pobres, as figuras do trabalhador, do soldado e do camponês são características das pinturas. Através destes ícones Rivera expressava a realidade do povo mexicano, desde sua origem histórica às situações que estavam vivendo, desenvolvendo assim uma visão do povo e da sua cultura, possibilitando uma redescoberta sócio-cultural do país (Figura 3).
Considero que para lograr un arte americano, verdaderamente americano, será necesario esto, combinar el arte indígena, el mexicano y el esquimal, con un impulso creador similar al que produce máquinas… (Diego Rivera, 1940, fonte: http://www.riveramural.com)
Figura 3: Diego Rivera.
Pan American Unity, 1940. San Francisco City College.
A primeira fase do muralismo foi encerrada perto de Obregón completar seus quatro anos de mandato, devido a problemas políticos que resultaram na renúncia de Vasconcelos e no cancelamento das atividades dos artistas muralistas. Isso aconteceu por influência dos conservadores, que destruíam os murais que lhes desagradavam. No entanto, Rivera conseguiu estabelecer uma boa relação com o novo ministro, e pode continuar os trabalhos que desenvolvia no Ministério da Educação. Em 1927, completou os murais após uma viagem a Moscou, de onde trouxe referências e passou a introduzir elementos da iconografia revolucionária russa em seus trabalhos, como a estrela vermelha e a foice e o martelo (Figura 4).
Figura 4: Diego Rivera
Political Vision of the Mexican People (Court of Fiestas) - Insurrection aka The Distribution of Arms (Visão política do povo mexicano (Tribunal de Festas) - Insurreição também conhecido como A distribuição de armas), 1928. Fresco.
Fonte: http://www.diego-rivera.com/
Figura 5: Diego Rivera Cidade do México, Palácio Nacional. Mural mostrando a vida em tempos astecas na cidade de Tenochtitlan. |
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Rivera permaneceu modificando suas formas de representação, procurando responder a questão da “arte para o povo”. Diferente de seus primeiros trabalhos, o artista passou a tentar entender e usar as estruturas e iconografias pré-colombianas, e não apenas reproduzir imagens do passado (Figura 5), aprofundando as pesquisas sobre o pensamento mágico e o científico das civilizações indígenas antecessoras.
Sobre a consolidação das identidades nacionais, um tema caro aos artistas modernistas, Hall (1999) questiona a tendência à unificação que provocam suas representações e apresenta-as como “comunidades imaginadas”. Através da cultura imagética de um lugar, como se verifica no caso do muralismo mexicano, tem-se a afirmação de ideias e valores constitutivos de uma identidade, visto que nesta, “existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo formada”” (HALL, 1999, p.38).
Deste modo, as identidades nacionais são apresentadas pelo autor como uma forma de unificação que homogeneíza um povo, desconsiderando suas diferenças, como por exemplo, as regionais e étnicas. Formando uma cultura generalizada através de uma série de elementos representativos, apresentando-se como “um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 1999, p.50). A identidade cunhada, neste caso, está condicionada a uma série de criações e representações que podem estar envolvidas na origem e história real da nação, da história contada de geração em geração e da imaginada de acordo com o contexto, o que dará os parâmetros de afirmação pessoal e territorial da existência de cada sujeito.
Portanto, o muralismo mexicano teve papel de solidificar uma identidade que falava de seu passado, que retomava suas origens como forma de valorizar o seu povo no presente. Mesmo que deixando de lado algumas especificidades da heterogeneidade que compõe uma nação, ela firmava o pertencimento destes indivíduos a algo que os era de direito após anos de dominação. Por isso, as pinturas mexicanas, ao buscarem uma identidade nacional, não se baseavam em anos recentes, mas em glorificar um discurso que reside entre o passado e o futuro, que:
se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele "tempo perdido". (HALL, 1999, p.56)
Cabe ressaltar, que não é nosso objetivo neste texto julgar a postura dos muralista mexicanos no que tange às suas iniciativas em prol de uma identidade nacional, única e homogeneizante. Nosso interesse é o de demonstrar como tal atitude difere da apresentada pelos grafiteiros, artistas de rua que com suas produções expõem uma pluralidade de marcas identitárias, dando visibilidade à complexidade dos múltiplos sujeitos que habitam o espaço urbano contemporâneo.
2. O Graffiti e as identidades pós-modernas
Figura 6: CRANIO / Brasil
fonte: http://www.flickr.com/photos/cranioartes/
A prática do graffiti utiliza o espaço urbano como suporte de suas manifestações (Figura 6). São pinturas feitas com sprays de tinta nos lugares mais diversos e, em alguns casos, desafiadores – em relação a alturas extremas ou subsolos. Elas exigem rápidas execuções, pois muitas vezes são feitas sem o consentimento do proprietário do espaço grafitado, um dos motivos que caracteriza a atividade como transgressora e atrai os jovens a experimentarem, comunicando-se de forma mais livre, ultrapassando os limites de legalidade que a sociedade impõe.
Os graffiti contemporâneos se mostram universalizados, não se limitam a representação de determinada cultura, mas manifestam interesses globalizados. Notável ao comparar essas manifestações em diferente locais, até mesmo em países diferentes, pois não mostram variações bruscas de temáticas, a não ser em produções específicas, nas quais podemos constatar alguns traços de culturas regionais ou locais (Figura 7).
Figura 7: CRANIO / Brasil
fonte: http://www.flickr.com/photos/cranioartes/
Nas imagens acima é possível notarmos que mesmo o artista utilizando a representação de um índio como personagem as questões problematizadas são de interesse global. Elas exemplificam posturas que unem as influências da globalização ao interesse pelo que diz respeito ao local, só que neste caso, diferente dos muralistas, o artista de rua não se refere a um retorno às origens, mas, sim, ao estabelecimento de uma nova relação com o espaço que habita de acordo com o contexto globalizante (HALL, 1999).
O graffiti é uma manifestação que utiliza o espaço urbano como meio de comunicação entre sujeitos que se encontram muitas vezes marginalizados, moradores periféricos de uma sociedade que não apresenta identificações concisas entre o espaço e seus habitantes. Os grafiteiros compõem diversos grupos e subgrupos que compartilham determinados estilos de vida e utilizam diferentes formas estéticas e comportamentais para se definirem com uma identidade própria, nem que seja somente entre eles.
A noção de identidade que emerge destas manifestações faz parte do conceito de pós-moderno, em que Hall (1999) aponta indivíduos com identidades fragmentadas devido à universalização de referências. Tais referências trazem conhecimentos globalizados, próprias de sujeitos que vivem em um tempo de imprecisões, de variações de indivíduos em uma mesma pessoa, pois um ser pode comportar, por vezes, identidades contraditórias, identidade definida pelo autor como uma "celebração móvel".
As manifestações da modernidade, como as discutidas neste artigo, baseadas na busca de uma identificação nacional, se deram no lugar dos povos, tribos, regiões que as antecederam. Estes pequenos grupos foram submetidos à homogeneização de uma identidade única que representasse um grande grupo, desconsiderando as particularidades dos sujeitos que integram uma sociedade. No entanto, estes sujeitos tinham através de uma “comunidade imaginada” algo a compartilhar, um sentimento que os tornava comuns ao lugar habitado e entre si. Nas manifestações pós-modernas há uma retomada de diversos pequenos grupos de indivíduos com características comuns, só que desta vez, estes não se limitam a regionalidades, mas compartilham interesses universalizados devido à atualidade globalizante.
Este fenômeno que possibilita as trocas ilimitadas de informações cria referências que podem ser compartilhadas por grupos/tribos que coexistem em lugares longínquos. No entanto, o grande número de informações circulando nos diferentes meios midiáticos e a falta de comprometimento dos mesmos com a qualidade do que divulgam faz com que as referências que se tem para a construção do conhecimento e da própria identidade sejam em grande parte precárias e absorvidas de forma passiva.
Deste modo, justifica-se a relação estabelecida entre as manifestações visuais de pinturas parietais de diferentes períodos históricos, visando a analise das inter-relações que revelam em relação a seus contextos sócio-históricos. Como demonstramos ao longo do artigo, tais relações nos fornecem subsídios para a reflexão acerca das sociedades contemporâneas a partir das atitudes dos sujeitos que nela interagem, suas identidades, mentalidades e comportamentos. Ressaltamos assim, a fundamental contribuição dos estudos sobre a cultura imagética de um lugar, entendida como documentos de uma cultura e da formação identitária do povo que nela interage, para os estudos acerca das relações do homem consigo, com os outros e com o meio. Isso, porque as manifestações artísticas são produtos da práxis humana e exteriorizam a essência da existência dos sujeitos, são ações cujos efeitos se produzem de modo indireto. Atuando sobre o nosso modo de pensar, sentir e agir, elas tem a capacidade de despertar as consciências para a descoberta dos valores éticos, sociais e políticos de uma determinada comunidade, dando-nos uma visão mais íntegra da realidade.
REFERÊNCIAS:
ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997.
El Proyecto Del Mural de Diego Rivera.
Disponível
em:
GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.
HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.