POR QUE NOS IMPORTAMOS COM SÍMBOLOS ESCRAVAGISTAS DOS EUA E IGNORAMOS OS DO BRASIL?

 

REGIANE OLIVEIRA

 

 

Foi em uma escola pública convencional de São Paulo, há mais de 20 anos, que o índio guarani Jurandir Augusto Martim descobriu como o jurua (homem branco, na língua guarani mbya) contava a história dos bandeirantes. Os sertanistas que a partir do século XVI exploravam o interior do país à caça de indígenas para escravização, riquezas minerais e destruição de quilombos, eram apresentados como os nobres heróis nacionais, os desbravadores, responsáveis por levar a civilização aos rincões do Brasil e delimitar suas fronteiras.

 

Ensinamentos muito diferentes daqueles que Martim aprendeu em casa por meio da tradição oral indígena.

 

“Fiquei impressionado quando vi pela primeira vez a estátua em homenagem ao Borb Gato [1649 – 1718], em Santo Amaro, um homem responsável por mortes, estupros e incêndios em aldeias indígenas”, conta o hoje professor da Escola Estadual Indígena Djekupe Amba Arandu, das aldeias Tekoá Pyau e Tekoá Ytu, ponto de resistência guarani na região do Parque Estadual do Jaraguá. “Essa é a parte mais difícil do ensino de história: explicar para crianças por que homens que foram responsáveis por massacres e escravidão de indígenas ainda serem homenageados em todas as partes”, afirma  Martim. 

 

Quando se trata dos símbolos brasileiros, a discussão sobre a permanência de monumentos em homenagens a personagens polêmicos da história ainda passa ao largo das discussões internacionais. Nos Estados Unidos, os planos de removerem de uma praça a estátua do general confederado Robert E. Lee, em Charlottesville (Virginia) – símbolo dos Estados escravistas do sul na Guerra Civil Americana (1861-1865) – fez aprofundar feridas históricas quando grupos nazistas, supremacistas brancos e alt-right (nova direita radical), munidos de tochas e armas, decidiram exigir o direito de ter o símbolo do passado racista preservado.

Pelos EUA, desde o Governo Obama , vários Estados vêm adotando a política de retirar de áreas públicas símbolos confederados e racistas. Em maio, por exemplo, uma estátua do general Lee perdeu seu lugar de honra como monumento em Nova Orleans. Na semana passada, a cidade de Hollywood, na Florida, decidiu renomear três ruas que honravam um líder da Ku Klux Klan e militares confederados em um bairro afro-americano.

 

Na França, honrarias ao passado colonial ainda podem ser encontradas em Paris, onde a permanência de uma estátua de Jacques François Dugommier (1738-1794), proprietário de escravos da ilha de Guadalupe e “escravista fervoroso, jamais arrependido” – segundo o historiador Marcel Dorigny, co-autor do Atlas de las esclavitudes, desde la Antigüedad a nuestros dias  – gera controvérsia entre os moradores. Na Espanha, por sua vez, desde 2007, a lei da memória histórica determina a retirada de símbolos e monumentos públicos que tenham como objetivo exaltação de símbolos militares, da Guerra Civil, ou da repressão da ditadura franquista.

 

No Brasil, o debate sobre a permanência ou não de monumentos em honra ao passado escravista ainda é incipiente, por vezes, inexistente. “Enquanto nos EUA a imprensa cobre os conflitos na Virginia como se fosse uma disputa entre a supremacia branca e os defensores dos direitos humanos, no Brasil, quando foram feitas intervenções no Borba Gato e no Monumento às Bandeiras, o assunto foi tratado como vandalismo. Ainda temos que avançar muito”, afirma a historiadora Deborah Neves, que trabalha na Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, na unidade de preservação do patrimônio histórico.

 

Símbolos do passado genocida x desbravadores da nação

 

A pergunta que ninguém faz em todo o mundo é se esses monumentos em homenagem a personagens polêmicos da história devem permanecer em local público e/ou como eles devem ser representados nos dias de hoje. Inaugurada em 1963, em comemoração ao IV Centenário do Bairro Santo Amaro, em São Paulo, a estátua de Borba Gato, do escultor Júlio Guerra, e seus 10 metros de altura revestidos de pedras coloridas, basalto, mármore e muita polêmica sobre sua qualidade estética, é só um dos muitos símbolos bandeirantes que sobreviveram ao tempo e à crítica no país.

 

As aldeias do Jaraguá fazem divisa com a Rodovia dos Bandeirantes, inaugurada em 1978, em pleno governo militar, pelo então presidente Ernesto Geisel, na mesma rota utilizada pelos bandeirantes para sair do litoral para o interior do país. Juntamente com a rodovia Anhanguera – diabo velho, em tupi guarani, apelido compartilhado por dois bandeirantes, pai e filho, ambos chamados Bartolomeu Bueno da Silva –, forma o sistema Anhanguera-Bandeirantes, hoje administrado pela concessionária Autoban, um dos corredores logísticos mais nobres do país.

 

Anhanguera, aliás, tem sua vasta gama de homenagens, de uma estátua do artista italiano Luigi Brizzolara, localizada em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), a várias praças, ruas, avenidas e até mesmo uma retransmissora afiliada da rede Globo em Goiás e Tocantins. E o mesmo acontece com Fernão Dias, Raposo Tavares, Brás Leme, Cunha Gago, dentre outros, homenageados com estátuas, ruas e avenidas. Em São Paulo, até mesmo a sede do Governo do Estado é uma homenagem aos sertanistas: o Palácio dos Bandeirantes.

 

A exaltação do mito dos bandeirantes é relativamente recente e está muito ligada com a construção da identidade paulista. As homenagens começaram já no século XVIII quando o cronista Frei Gaspar da Madre de Deus, um representante da elite seiscentista paulista, decidiu homenagear seus antepassados em suas obras.

 

Mas foi nos anos 1930, quando a oligarquia paulista, durante a Revolução de 1932, precisava de argumentos para unir a população em torno de um sentimento comum, que os bandeirantes foram escolhidos como símbolo desse ideal. Segundo a historiadora Katia Maria Abud, no artigo Paulista Uni-vos, no recrutamento dos cidadãos para pegar em armas era preciso omitir a divisão de classes e os interesses de grupos em prol de uma causa maior, heroica. A máxima do herói bandeirante passou a ser usada como ideário paulista. E a história dos mais de 300.000 índios capturados e escravizados pelas bandeiras, bem como sua vida de miséria e doença, foram caindo no ostracismo.

 

“A simbologia dessas homenagens tem valor e mesmo que ela não seja tão representativa como foi no passado, ainda fortalece a lembrança. Não faz sentido ter esses símbolos. Eles deveriam ser derrubados”, afirma Martim. Ele admite que este é um desejo pessoal seu, já que esta bandeira não está na pauta das lutas indígenas. “Não é que não seja importante, é que precisamos focar naquilo que nos impacta mais, a demarcação de terras”.

 

A opinião de Martim não é unanimidade. “Não tenho uma opinião formada sobre a permanência desses monumentos. Ao mesmo tempo que acho que eles têm que ser contestados e até derrubados se for a vontade geral, acredito que é possível ressignificá-los no espaço urbano. Simplesmente apagar da história vai nos fazer esquecer dela”, afirma Déborah Neves.

 

Ela cita como exemplo a recente aprovação da mudança de nome do elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, em São Paulo, para Elevado Presidente João Goulart.  “O Brasil, a partir da década de 50, deixa de lado as homenagens em monumentos. As grandes obras de intervenção urbana, como o Minhocão, substituem as estátuas como monumentos da ditadura”, afirma Neves. “Trocar o nome do elevado é bastante significativo porque estamos desconstruindo uma história". A historiadora defende que, em caso de decisão de demolição, exista ao menos um marco temporal que diga que tal monumento – seja ponte ou estátua – existiu no local.

 

“Infelizmente, temos uma invisibilidade em relação a simbologia desses monumentos. Poucas pessoas sabem que o Monumento às Bandeiras, mais conhecido como ‘empurra-empurra’ ou ‘deixa que eu empurro’, no Ibirapuera, é uma obra de Victor Brecheret”, diz Deborah Neves. “Nossa relação com os bandeirantes é impessoal, de ignorância, porque consideramos que a violência está restrita aos índios, com quem a maioria de nós não tem memória afetiva. Há mais discussão em relação aos símbolos da Ditadura ou do Estado Novo, cujas pessoas envolvidas ainda estão por aí."

 

PARA CONTESTAR É PRECISO CONHECER PRIMEIRO

 

Afinal, você aprendeu que os bandeirantes são bandidos ou heróis? Se você é da chamada Geração Z – aqueles nascidos em meados dos anos 1990 e anos 2000 – há uma boa chance de que sua escola tenha apresentado uma visão mais crítica sobre os bandeirantes. As leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatórios o ensino da história africana, afro-brasileira e indígena no país, levou a uma mudança no material didático. “Trabalhamos hoje com a crítica aos ídolos e imagens, buscando entender as homenagens em monumentos, nomes de ruas e avenidas como produtos das relações de poder e das tentativas de legitimação de um estrato social sobre os outros”, afirma o professor de história Danilo Oliveira.

 

A professora e historiadora Raquel Foresti alerta, no entanto, que ainda não estão disponíveis livros que mostrem a visão indígena das bandeiras. “A contestação do mito do herói que temos nos materiais didáticos ainda é branca e acadêmica”, afirma. Para ela, os monumentos teriam um papel importante na educação dos alunos, mas infelizmente, São Paulo não cumpre seu papel de cidade educadora. Foresti sonha em poder levar seus alunos para discutir as bandeiras junto ao monumento de Victor Brecheret, no Ibirapuera, mas faltam recursos e espaço. “Imagine parar um ônibus com estudantes naquela região? Seria considerado um transtorno.”

 

O professor e geógrafo Paulo Roberto Moraes, concorda com o papel educador dos monumentos. “Nosso problema hoje não são as estátuas, mas sim o fato de as pessoas não saberem do que se trata. Até para contestar, é preciso conhecer primeiro.”

 

Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/02/politica/1504310652_774711.html