ENTENDER E ENTENDER-SE (N)A CIDADE IMAGINADA
Cláudia Mariza Mattos Brandãoi
RESUMO: O artigo aborda a colaboração da análise de obras de arte, entendidas como estratégias de representação fundadas em posicionamentos e ações culturais, para o entendimento da organização dos setores sociais, culturais, políticos e históricos que estruturam a contemporaneidade.
O tempo modifica as idéias mais radicais,
atenua as maiores paixões,
faz desmoronar os castelos mais sólidos
e os sonhos, então...
Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado.
Mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado...
O tempo é muito lento para os que esperam;
muito rápido para os que têm medo;
muito longo para os que lamentam;
muito curto para os que festejam;
mas, para os que amam, o tempo é a eternidade...
Querendo construir algo do nada,
comece amando intensamente seus pensamentos e sua imaginação.
Um grande caminho começa com o primeiro passo.
O resto fica por conta das circunstâncias...
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(Anônimo – capturado na Internet)
Na busca de dar “o primeiro passo de um grande caminho”, como diz o poeta anônimo, neste artigo trago a fala de uma engenheira civil que busca até hoje (re)conhecer-se na condição de cidadã, que encontrou no ensino das Artes Visuais e na expressão artística fotográfica potentes meios para uma percepção sensível do mundo, sem com isso abandonar os ensinamentos da razão e da lógica. E para respaldar meu pensamento, ninguém melhor do que Michel Maffesoli quando diz que:
Todavia, por mais relativista que seja, a lição das coisas não implica de modo algum uma abdicação do intelecto. Trata-se simplesmente de um desafio ao qual é preciso responder. E, em seu sentido mais estrito, ela remete para uma deontologia, a saber, para uma consideração das situações (ta deonta) naquilo que elas têm de efêmero, de sombrio, de equívoco, mas também de grandioso. É assim que à moral do “dever ser” poderia suceder uma ética das situações. Esta, ou melhor seria dizer, estas últimas são atenciosas à paixão, à emoção, numa palavra, aos afetos de que estão impregnados os fenômenos humanos (MAFFESOLI, 1998, p. 12).
E foi instigada a entender e explanar sobre “coisas que, em graus diversos, atravessam as histórias individuais e coletivas” (id., p. 13), que me dispus a palestrar sobre Consumo e Sustentabilidade na Contemporaneidade, a convite do Diretório Acadêmico das Artes Visuais, do Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas, dando origem a este artigo.
Feita essa introdução me volto agora para uma provocação instaurada pela palavra “sustentabilidade” presente no título da mesa da qual participei, juntamente com a Profª Drª Helene Sacco. Eu poderia ter sugerido aos organizadores uma troca no título, mas achei que ele era apropriado, como um mote sugestivo inicial para as discussões.
Sendo assim, para começar o meu raciocínio busquei o significado de SUSTENTABILIDADE no dicionário, encontrando a seguinte definição:
Sustentabilidade é dar suporte a alguma condição, a algo ou alguém em algum processo ou tarefa. Atualmente, o termo é bastante utilizado para designar o bom uso dos recursos naturais da Terra, como a água, as florestas e etc.
Etimologicamente, a palavra sustentável tem origem no latim sustentare, que significa sustentar, apoiar e conservar. O conceito de sustentabilidade está normalmente relacionado com uma mentalidade, atitude ou estratégia que é ecologicamente correta, e viável no âmbito econômico, socialmente justo e com uma diversificação cultural.
(https://www.significados.com.br/sustentabilidade/).
Ora, parece então que esta é uma boa palavra para dar conta de novos comportamentos, que objetivam equilibrar as caóticas relações da humanidade com Gaia. Segundo a mitologia grega Gaia é a Mãe-Terra, um elemento primordial e latente de uma potencialidade geradora incrível.
Mas será mesmo?
Assim como outras pessoas que se debruçam sobre a questão, me alio à ideia da necessidade de um desenvolvimento sustentável, um dos principais aspectos reforçados na Conferência das Nações Unidas: Rio +20. Entretanto, é fundamental termos a clareza de que na era moderna - estruturada no capitalismo - assim como outros, esse conceito está baseado no intuito de reafirmação do sistema social e políticos vigentes. Logo, precisamos lembrar que o conceito deixa transparecer uma relação ambígua com o sistema, numa clara alusão a seu caráter ideológico.
Ou seja, SUSTENTÁVEL para quem? Para o planeta/Gaia ou para o sistema?
Dito isso, esclareço o ponto de partida de meu pensamento, que visa defender a Arte em sua potência reflexiva acerca do mundo e de nós mesmos, e que através da sua história nos mostra a trajetória de mentalidades e comportamentos. E para isso parto das lições da Ecosofia, do pensamento de Felix Guattari, discorrendo sobre um tema, cuja abordagem eu considero fundamental no âmbito escolar.
Em suas “As Três Ecologias”, Guattari (1990, p. 8) esclarece que a Ecosofia se refere a “uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade”. E é essa tríade ecológica que nos ajuda a desvendar o universo das Artes como um jogo intrínseco entre aparência e essência, sintaxe e semântica, ética e estética:
Como toda cultura, a Arte não pode ser considerada como um processo de informação, ela integra numa ambiguidade de natureza, elementos variáveis, contrastados e perecíveis. O liame, a estrutura que associa, num dado momento, num sistema figurativo ou monumental, escultural ou decorativo, esses diversos elementos é mais forte que a configuração material que a encarna; permanece inteligível mesmo quando as referências ao acidente são impossíveis. A Arte nos informa, em suma, mais sobre os modos de pensamento de um grupo social que sobre os acontecimentos e sobre o quadro material da vida de um artista e seu ambiente. A obra está no imaginário (FRANCASTEL, 1993, p. 17).
Ao afirmar que a obra repousa no imaginário, Francastel acena para possíveis influências/atravessamentos das produções artísticas nos modos humanos de ser e estar no mundo. E isso pode ser visualizado através de uma obra de arte emblemática, considerada uma “síntese visual do antropocentrismo” (LESTER, 2014), “O Homem Vitruviano”, de Leonardo Da Vinci (Figura 1), endossando a ideia do homem como medida para todas as coisas.
Figura 1: Leonardo Da Vinci, O Homem Vitruviano, desenho, 1490.
Vale ressaltar que tal pensamento perpassa obras-primas de escultores gregos e o corpus filosófico de Platão e Aristóteles, inspirando também o arquiteto Marco Vitrúvio (século 1 a.C.), por ocasião da reconstrução de Roma pelo imperador Augusto. Vitrúvio deixou como legado os 10 volumes que compõem a obra “De Architectura” cujos padrões de proporções e conceituais se baseiam em outra tríade, que em nada se assemelha à sugerida por Guattari: Utilidade, Beleza e Solidez, e que lançou as bases humanistas da arquitetura renascentista, da qual Da Vinci foi um dos artífices.
Ora, vê-se, então, que o imaginário humano desde o início foi “alimentado” pela ideia de superioridade do homem sobre todas as coisas, uma ideia também respaldada pelo pensamento judaico-cristão, que recomenda:
(...) E Deus os abençoou (homem e mulher) e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e subjugai a Terra! Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre tudo que vive e se move sobre a Terra” (...) (Bíblia Sagrada, Livro do Gênesis, cap. 1, versículo 28, século V a.C.).
E parece que estamos cumprindo essa determinação com incrível sucesso, subjugando e dominando tanto o meio ambiente quanto os semelhantes!
O tema é complexo e vital, e como tal deve ser considerado no âmbito da Educação Básica. Ou seja, quero com isso destacar a necessidade de lidar com o assunto, abordando-o em sua complexidade, sem, entretanto, torná-lo “chato”, tratando-o de forma mais oportuna para qualquer idade. E isso pode ser feito através das Artes Visuais, de um modo lúdico, relacionando a visualidade das obras com a cosmovisão de seu tempo histórico, abordando sobre as mentalidades e comportamentos, suas implicações e reverberações na contemporaneidade.
Todos os seres vivos que habitam o planeta mantém com ele uma relação interativa, regulada pela necessidade de sobrevivência e manutenção da espécie. Nesse amplo e complexo grupo, nós, humanos, nos consideramos diferentes dos demais, em função da capacidade de ação "consciente", cultural, no processo de intervenção ambiental. E é justamente esse diferencial que nos possibilita compreender o processo de desarticulação da natureza diretamente relacionado ao grau de aceleração da capacidade humana de criação cultural, que rapidamente passou da comodidade e bem-estar como meta, à apropriação descabida, ao acúmulo de riquezas e à dominação e destruição da própria espécie. Ou seja, o que nos faz diferente das demais espécies, também nos transforma em seres destrutivos, os únicos capazes de aniquilar o semelhante por motivos abjetos.
Para exemplificar a potência da arte como medium de reflexão, eu recorro a algumas obras emblemáticas que sintetizam visualmente o nosso pensar sobre o mundo ao redor, e nos (re)apresentam a cidade na trajetória do tempo histórico. Isso, na consideração de que como em nenhuma outra época, “a cidade é o lugar onde o fato se funde à imaginação” (BRANDÃO, 2003, p. 3), numa “relação peculiar entre homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana” (HARVEY, 2000, p. 17).
Foi em torno do ano de 5.000 a.C. que surgem, nas planícies aluviais do Oriente Próximo, as primeiras povoações às quais pode-se denominar de cidades; os produtores de alimento são persuadidos e obrigados a produzir um excedente a fim de manter uma população de especialistas: artesãos, mercadores, guerreiros, sacerdotes, que residem na urbe, e controlam o campo. Desde sua origem a cidade significa, concomitantemente, maneira de organizar o território e uma relação política (ROCHA, 1999, p. 2).
As palavras de Júlio César Rocha corroboram a ideia de que as cidades desde o início resultam de interesses políticos, que buscavam dominar e organizar o território. Em prol do bem comum, da sustentação da vida humana, as riquezas naturais do espaço eram consideradas nos projetos urbanos, assim como a proximidade de nascentes de água, como era comum nos locais onde foram construídas as cidades antigas. Caracterizando o projeto da emergente estrutura social urbana, elas se caracterizaram como conjuntos ordenados de edificações, onde os meios para dominar a paisagem natural converteram-se em métodos. Em tais espaços, a racionalidade das técnicas estabeleceu uma ordem estática e ortogonal, em contraposição à ondulação natural da paisagem.
A “Coluna de Trajano” (Figura 2) demonstra que os monumentos urbanos tinham, além de um motivo comemorativo, a função de comunicar a história das cidades, de uma perspectiva ideológica. Essa estrutura arquitetônica é um exemplo típico do estilo épico, dramático, cujos baixos-relevos narram os feitos heroicos como um modo de perpetuação dos valores éticos e morais dessa sociedade, constituindo-se num produto artístico que qualifica e determina o espaço urbano.
As cidades medievais, entretanto, eram diferentes estruturalmente das cidades antigas, que, embora com vocação militar, foram planejadas para serem amplas e arejadas. Sobre o assunto, afirma Le Goff (2005, s/p):
Essas cidades, ao contrário daquelas da Antiguidade romana, não tinham um papel agressivo. Mas era necessário proteger seus habitantes, suas igrejas, suas casas seus entrepostos e os instrumentos de trabalho. Essa gente não era composta de guerreiros, mas de clérigos – padres, monges, religiosas em grande número –, burgueses – comerciantes ricos, proprietários de belas casas e opulentos celeiros –, artesãos – com seus preciosos instrumentos de trabalho – e ainda uma boa quantidade de povo comum. A muralha assegurava a proteção. Mas como toda construção monumental, a muralha tinha também uma função simbólica. Através de seus muros, ameias e torres, pelos campanários das igrejas e observatórios móveis de vigília – como em San Gimignano e Bolonha, na Itália, ou Toulouse, na França –, enfim, pelas torrinhas privadas dos burgueses ricos, através de tudo isso a cidade medieval impunha uma imagem de poder e de riqueza. A muralha era um signo de poder.
Figura 3: Ambrogio Lorenzetti, Afresco, 1337-40.
Disponível em: http://www.miniweb.com.br/Historia/Artigos/i_media/cidades_medievais.html
Essas representações da cidade em diferentes momentos, características de diferentes cosmovisões – uma mítica e outra teocêntrica - nos mostram que tais espaços foram edificados numa reafirmação da tríade proposta pelo arquiteto Marco Vitrúvio. Identificamos, portanto, assim como Le Goff defende, que a partir do século XII temos a “gênese do estado moderno”. Desde o seu surgimento, a cidade configurou-se como um sistema comunicativo e informativo, com função cultural e educativa explorada pelos governantes.
A crise do modo de produção feudal, ocorrida na Europa do século XIV, originou-se, dentre outros motivos, da falta de terras para o cultivo, da regressão demográfica ocasionada pela peste e do esgotamento dos estoques de ouro e de prata, como consequência de um comportamento social que desconsiderava as relações do homem com seu meio natural. Com ela, ruíram o sistema sócio-econômico feudal, o idealismo filosófico da época e o equilíbrio estático da arte e da cultura (BRANDÃO, 2012, p. 22).
Do choque entre fé e conhecimento científico, da ruptura com as antigas tradições e a gradual emancipação do homem da influência da Igreja, se delinearam novos paradigmas. Paradigmas esses, afirmados através de uma mentalidade racionalista e antropocêntrica que emergiu da crise, e que nos ajuda a entender como chegamos aos dias de hoje com prenúncios de situações catastróficas para um futuro próximo.
Figura 4: Canaletto, Bucintoro preparando-se para deixar o porto no dia da Ascensão,1740, óleo sobre tela, 122 x 1183 cm; National Gallery, Londres.
O desenvolvimento mercantil-capitalista desencadeado no Renascimento impôs uma ordem humana ao mundo natural “desordenado”. E tal sistematização racionalista, que buscava a estabilização do mundo exterior, também está presente no planejamento urbano da época, através da incorporação da natureza à estrutura, com um enfoque utilitarista (Figura 4). Isso, com base nas ideias do arquiteto Leon Battista Alberti que, a exemplo de Marco Vitrúvio, tratava a arquitetura como a interpretação visível do significado intrínseco do espaço urbano, estabelecendo a cidade como uma entidade autônoma.
Para a escrita deste artigo, elaborarei uma sucinta digressão histórica, também através de imagens, refletindo sobre como ideias, conceitos e preceitos que perpassam o imaginário humano há muito tempo, caracterizam boa parte do nosso trajeto antropológico. E também de como o sistema capitalista - como estrutura da modernidade - impulsionou o Consumo como uma ideologia de vida, fazendo com que cheguemos aos dias de hoje com tantos problemas/consequências a enfrentar.
No bojo da reflexão, busquei demonstrar a colaboração da análise de obras de arte para o tema em questão, demonstrando que as estratégias de representação, fundadas em posicionamentos e ações culturais promovidas no âmbito da Arte, nos revelam a organização dos setores sociais, culturais e políticos que estruturam a contemporaneidade. Atualmente muitas cidades agonizam, asfixiadas pelo monóxido de carbono, sitiadas pelos guetos gerados pela desigualdade social, e vitimadas por doenças fatais, numa demonstração da falência do paradigma moderno e da ética antropocêntrica.
A arte como expressão dos questionamentos humanos se transformou, desvelando a crise de valores instaurada pela exacerbação da mentalidade do capitalismo mercantilista, que está na origem, inclusive, dos problemas de natureza ecológica da contemporaneidade. Portanto, é possível concluir que perceber planeta como um ser vivo complexo, organizado em sua própria desorganização, revela uma transformação em nossa visão ocidental de mundo, que se dirige do mecânico para o orgânico, visto que "O reconhecimento de um erro envolve uma nova verdade" (José Ortega Y Gasset).
REFERÊNCIAS:
Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Editora Gamma, 1980.
BRANDÃO, Cláudia Mariza Mattos. Com Rio Grande na retina: as marcas da Educação Ambiental na paisagem urbana. Dissertação não publicada (Mestrado em Educação Ambiental). Universidade Federal do Rio Grande (FURG), 2003.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 6ª ed. São Paulo: Ed. Pensamento-Cultrix, 2001.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1993.
GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
LE GOFF, Jacques. AS CIDADES MEDIEVAIS ESTÃO NA GÊNESE DO ESTADO MODERNO. Entrevista disponível em:
http://www.miniweb.com.br/Historia/Artigos/i_media/cidades_medievais.html
LESTER, Toby. O Fantasma de Da Vinci – A história desconhecida do desenho mais famoso do mundo. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
ROCHA, Júlio César de Sá da. Função ambiental da cidade: direito ao meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999.
i Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação( UFPel/CNPq). attos@vetorial.net