EDUCAÇÃO AMBIENTAL E EDUCAÇÃO INFANTIL: DIALOGANDO COM AS CRIANÇAS SOBRE OS IMPACTOS AMBIENTAIS DO CONSUMISMO
Dados de identificação
Responsáveis: Adriana Regina de Oliveira Couto (Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática – PECIM – Unicamp) e Alessandra Aparecida Viveiro (FE/Unicamp)
Escola: CEI Nair Valente da Cunha
Cidade: Campinas/SP
Número de pessoas envolvidas: aproximadamente 30 pessoas
Telefone: (19) 98229-8767
e-mail: adrianateacher74@gmail.com
Categoria e temática do trabalho
Ações/Práticas em sala de aula: Consumo consciente
Introdução, objetivo e justificativa
A necessidade de se discutir questões ambientais é cada vez mais emergente em vários segmentos da sociedade, dada à velocidade que se acelera a crise ambiental. Assim, é muito comum encontramos nos mês de junho, na semana do meio ambiente, o seguinte cenário em muitas escolas de Educação Infantil: painéis com produções das crianças e das professoras exibindo imagens de árvores, borboletas, joaninhas, animais ameaçados de extinção, acompanhadas por frases de preservação do meio ambiente.
Também visualizamos lixeiras coloridas representando a coleta seletiva, trabalhos reutilizando algumas garrafas pets e frases do tipo: “jogue lixo no lixo”, “não polua os rios”, entre outros.
Essas práticas educativas são mais comuns do que imaginamos e a partir deste cenário educacional lançamos alguns questionamentos: Em que concepções de Educação Ambiental essas práticas estão alicerçadas? Será que elas possibilitam processos reflexivos nas crianças? Que tipo de reflexões? Será que as crianças realmente aprendem o que está sendo ensinado somente em datas comemorativas, tão pontuais?
Nosso incômodo nos mobilizou a pensar em propostas diferenciadas para o trabalho com as crianças.
Diante disso, desenvolvemos uma pesquisa, em nível de mestrado, em uma escola de Educação Infantil de Campinas, com uma turma de 27 crianças na faixa etária de 3 a 6 anos, que teve como objetivo elaborar, desenvolver e avaliar um processo formativo tendo como base uma Educação Ambiental norteada por uma perspectiva crítica na Educação Infantil.
Fundamentação Teórica
Vivemos tempos de grandes desafios quando paramos para pensar no futuro do nosso planeta. Cada vez mais somos bombardeados por notícias alarmantes como a falta de água em alguns lugares, contrapondo-se a enchentes em outros, aquecimento global, crescente aumento dos resíduos sólidos, contaminação, poluição, ameaça a biodiversidade, a utilização de recursos naturais de forma desenfreada, entre outros.
Notícias essas, que já deixaram há muito tempo de ser manchetes locais para assumirem uma dimensão global, mundial, ou seja, a crise é planetária. Portanto, a preocupação deveria ser de todos e é neste contexto que surge a Educação Ambiental.
Atualmente, pela crise ambiental que “se produz neste período histórico, onde o poder das forças desencadeadas num lugar ultrapassa a capacidade local de controlá-las, nas condições atuais de mundialidade e de suas repercussões nacionais”, gerando graves problemas ambientais locais e globais, justifica-se a inserção da dimensão ambiental na Educação (GUIMARÃES, 2000, p. 4).
Não há como negar que ações educativas devem ser realizadas, pensando urgentemente em uma Educação Ambiental crítica que resgate valores e que trate os problemas em suas diferentes dimensões: físicas, econômicas, sociais, políticas, culturais.
No entanto, segundo Foladori (2001), nem sempre a abordagem crítica acontece, pois na maioria das vezes a crise ambiental é vista por um âmbito mais técnico, que privilegia aspectos físicos, ecológicos e a preocupação com os recursos renováveis, finitos está sempre em ênfase, mas geralmente se esquece das questões sociais, que é a questão central.
Ainda dentro desta perspectiva mais técnica da crise ambiental, há uma concepção bem difundida que também está atrelada a limites físicos, que é a ideia de que a crise advém da superpopulação e da pobreza e, sendo assim, a natureza não é capaz de gerar alimento suficiente para as pessoas.
O problema central desta crise não é técnico e sim social. Toda essa crise ambiental é fruto da maneira com que nos relacionamos com o nosso meio, pois toda espécie, ao se relacionar com o ambiente, o transforma.
A discussão sobre Educação Ambiental é algo emergente na sociedade em todas as instâncias, contudo, não é algo tão simples quanto pode se imaginar porque ela não é única, é, pois, um campo de conhecimento muito controverso, com concepções diferenciadas que trazem diferentes práticas para o cotidiano.
Educação Ambiental: um campo permeado por controvérsias
No campo da EA, há muitas controvérsias ainda sobre as concepções, desenvolvimento, sustentabilidade. As análises em torno da EA variam de acordo com os critérios relacionados às concepções de sociedade, conhecimento, política, economia, cultura e educação.
Alguns autores trazem suas contribuições sobre as diferentes concepções/tendências/correntes de Educação Ambiental.
Sorrentino (1997), por exemplo, destaca as principais correntes de EA, definindo-as como: conservacionista, educação ao ar livre, gestão ambiental e economia ecológica.
Já Amaral (2003) define as tendências em EA da seguinte maneira: Adestramento ambiental, Desenvolvimento sustentável, Ecologismo radical e Crítica.
Sauvé (2005), por sua vez, realiza detalhadamente uma classificação de quinze correntes de Educação Ambiental: naturalista, conservacionista, resolutiva, sistêmica, cientifica, humanista, moral/ética, holística, biorregionalista, práxica, crítica, feminista, etnográfica, ecoeducação e sustentabilidade.
Esses são só alguns exemplos, que aparecem em meio uma pluralidade de conceitos e concepções. No entanto, não há neutralidade e trazemos conosco nossas visões de mundo, marcadas pelas nossas experiências, pelas nossas ideologias, pelas nossas escolhas.
Optamos, em nossa pesquisa, por seguir a linha de pensamento de Layrargues e Lima (2014), que desenham essas três macrotendências: conservacionista, pragmática e crítica.
A macrotendência conservacionista é expressa por uma visão de proteger e conservar a natureza: biodiversidade, os biomas, promoção de atividades de ecoturismo e experiências agroecológicas. Valoriza a natureza, levantando a “bandeira verde”.
Para estes autores, são representações conservadoras da educação e da sociedade porque não questionam a estrutura social vigente em sua totalidade, apenas pleiteiam reformas setoriais (LAYRARGUES; LIMA, 2014).
A macrotendência pragmática é expressa por uma visão de educação para o desenvolvimento sustentável e consumo consciente e há uma preocupação com a produção crescente dos resíduos sólidos, certificações, mecanismo de desenvolvimento limpo e ecoeficiência produtiva. Essa tendência tem uma séria crítica ao consumismo e à obsolescência programada.
Na vertente pragmática, há uma ausência de reflexão que permite compreender o contexto e a articulação das causas e consequências dos problemas ambientais.
A macrotendência crítica se opõe às tendências conservadoras, e tenta contextualizar e politizando o debate ambiental, problematizando as contradições dos modelos de desenvolvimento e de sociedade. Trabalha conceitos como democracia, cidadania, participação e compromete-se com a transformação e justiça ambiental.
A Educação Ambiental crítica demanda processos mais dialógicos, mais participativos, transformadores, mobilizações mais coletivas. Ainda que não seja impossível, é um processo mais moroso, porque na realidade estamos na contramão da nossa história capitalista, à medida que este modelo de sociedade almeja outros sonhos, objetivos, que demandam outros modelos de produção, de relação sociedade-natureza.
Consumo versus consumismo
Uma Educação Ambiental crítica está comprometida com reflexões acerca do consumo consciente e se coloca na discussão sobre o consumismo desenfreado, da problemática da obsolescência. Todavia, a mídia nos bombardeia o tempo todo com publicidade e propaganda de produtos diversos, nos vendendo a ideia de que devemos ter cada vez mais, atrelado ao sentimento de felicidade.
Há uma grande diferença entre consumo e consumismo. O ato de consumir é uma necessidade, afinal precisamos nos alimentar, nos vestir, nos locomover, nos abrigar, nos comunicar entre outros. Entretanto, a situação passa a ser consumismo quando adquirimos produtos sem necessidade ou descartamos um produto bom para adquirir outros que são esteticamente “mais bonitos” ou mais “avançados tecnologicamente”.
Na definição do dicionário Aurélio, “consumismo é o ato de consumir muito, em geral sem necessidade”. Somos sim, uma sociedade capitalista, somos consumidores compulsivos, automatizando essa lógica do comprar, agindo muitas vezes de forma alienada. “O consumo contribui ao aniquilamento da personalidade, sem a qual o homem não se reconhece como distinto, a partir da igualdade de todos” (SANTOS, 2007, p. 49).
Esse comportamento consumista molda nossos modos de vida (vestimenta, alimentação, casas, carros, etc.) porque somos julgados, muitas vezes, por nossas posses, pelo que temos e não pelo que somos. Nesta lógica mercadológica da sociedade do ter, muitas vezes nos sentimos mal porque não temos o que nos impõe a ditadura da moda.
Nas palavras de Penna (1999, p. 216), citado por Gomes (2006, p. 25):
Os efeitos da degradação ambiental não podem ser tratados sem que se combatam suas causas. O capitalismo moderno deu à luz o consumismo, o qual criou raízes profundas entre as pessoas. O consumismo tornou-se a principal válvula de escape, o último reduto de autoestima em uma sociedade que está perdendo rapidamente a noção de família, de convivência social, e em cujo seio a violência, o isolamento e o desespero dão sinais de crescimento.
Temos vários fatores negativos causados pela ideologia consumista. Primeiro, há uma perda de identidade, porque muitas vezes já não se usa mais os produtos que se gosta, mas sim o que está na moda, o que todo mundo está usando, afinal nos é implantado de que temos que estar na moda. Segundo, a ditadura da moda segrega, porque se você não faz parte daquele grupo que tem algo, seja por motivos econômicos ou mesmo opcionais, você está fora e, em terceiro, a ideia de que as coisas são obsoletas é tão veiculada que causamos enquanto seres humanos sérios impactos ambientais, visto que há uma produção em larga escala e descartamos tudo o que já não nos cabe mais para seguir os padrões de beleza, de aceitação.
Falar sobre o consumismo nos dias atuais é uma urgência, pois é a mola propulsora do sistema capitalista. Existe uma preocupação que com este tema e isto é expresso em dissertações e teses, redes sociais, blogs, sites.
A criança é o principal alvo do marketing e da propaganda. É a consumidora-mirim que sofre enorme influência de imagens, que são veiculadas na mídia como TV, computadores, etc. As crianças são cada vez mais bombardeadas para desejar produtos.
Valores da Educação Ambiental crítica
Nosso pensar, agir, falar está baseado em valores. Mas que valores são estes se estamos lidando com uma pluralidade de ideias que estão imersas em contextos distintos?
Bonotto (2008), baseada nos princípios encontrados no “Tratado de Educação Global para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global” — documento elaborado e apresentado na ECO 92 pela sociedade civil —, organizou cinco categorias de valores ambientalmente desejáveis, com os quais nos identificamos.
Valorização da vida: não só dos seres humanos, mas de todos os seres do planeta.
Valorização da diversidade cultural: reconhecer a importância do ser humano não só em sua dimensão biológica, mas cultural, de maneira a valorizar todos sem desconsiderar outras culturas.
Valorização das diferentes formas de conhecimento: valorizar todos os conhecimentos, sejam científicos, sejam populares.
Valorização de uma sociedade sustentável: buscar um modelo de sociedade igualitária em que todos possam ter uma vida de qualidade. Isso implica igualdade de acesso (e de permanência) à educação, à alimentação saudável, à moradia, ao trabalho, à saúde, ao lazer, a um estilo de vida mais sustentável etc.
Valorização de uma vida participativa: agregar responsabilidade, solidariedade, cooperação e diálogo, participação, democracia e autonomia.
Esses são os valores alinhados a uma perspectiva crítica que elencamos como categorias de análise para avançar nas discussões deste trabalho.
Figura 1 - Categorias de valores de Bonotto (2008)
Fonte: autoria própria.
Concepção de criança
Estamos nos reportando o tempo todo à criança, mas afinal, de que criança estamos tratando? Qual a concepção de infância este trabalho assume?
Atualmente discute-se muito sobre o sentimento de infância. Hoje em dia a criança é vista como um ser singular, que não será cidadã, porque já é cidadã e como tal têm direitos. Essa criança é um sujeito histórico, social que tem direito a educação de qualidade que a veja em suas particularidades, que compreenda o seu desenvolvimento e que a ajude a se apropriar dos conhecimentos construídos, bem como construir novos conhecimentos.
Kuhlmann (1998) é um estudioso do tempo da infância, da criança dentro de uma perspectiva histórico-cultural e, nesse sentido, afirma que
[...] é preciso conhecer as representações de infância e considerar as crianças concretas, localizá-las nas relações sociais, reconhecê-las como produtoras da história. Torna-se difícil afirmar que uma determinada criança teve ou não infância. Seria melhor perguntar como é, ou como foi sua infância (KUHLMANN, 1998, p. 31).
De acordo com Redin (2007, p. 84), “a criança aprende no e com o mundo, mas este mundo é feito de pessoas com diferentes idades, culturas, crenças e valores [...] E é nas relações e nas trocas que se ressignificam os saberes/fazeres”.
Portanto, dado esse aporte teórico assumimos nesta pesquisa que nossa criança é um ser histórico, produtora de conhecimento, um ser ativo dotado de pensamentos e ações que são construídos socialmente num determinado tempo e espaço.
Apresentação e desenvolvimento
Metodologia de pesquisa
Nossa pesquisa é de abordagem qualitativa, ou seja, seus resultados não estão atrelados a questões numéricas e se comprometem a analisar os fatos dentro de um contexto histórico, político, econômico, social e cultural. Assume-se que não há neutralidade nesta pesquisa, na medida em que, como seres humanos, temos leituras de mundo, vivências e ideologias que interferem e se refletem na análise dos resultados.
O tema escolhido para a viabilização deste trabalho foi consumismo e consumo consciente. Para isto realizamos uma sequência didática com 14 episódios dentro da seguinte organização:
Atividades para conhecer os valores e pensamentos que as crianças trazem.
Atividades de problematização.
Atividades que sugerem valores de uma Educação ambiental crítica: vida democrática e participativa, que demandam decisões coletivas e cultivam o consumo consciente.
Contudo, no presente trabalho faremos um recorte apresentando três atividades, conforme o Quadro 1. O trabalho completo está disponível em Couto (2017).
Caixa do tesouro |
Atividade para conhecer os valores e pensamentos das crianças |
Tapete de embalagens |
Atividade de problematização |
Música não custa nada |
Sugestão de valores de EA crítica |
Quadro 1: organização das atividades
Episódio 1- Caixa do tesouro
Objetivo: Identificar as preferências das crianças para compreendermos seus valores, o que reconhecem como importante em suas vidas.
Duração: 2 dias
Nesta atividade as crianças, juntamente com as famílias, foram convidadas a decorar uma caixa (pote de sorvete) de acordo com suas preferências pessoais. Foi proposto que as crianças colocassem na caixa, objetos que são importantes para elas e estas em roda socializaram o que levaram, explicando o porquê daquele tesouro ser importante em suas vidas.
A maioria das crianças ajudou as famílias enfeitarem suas caixas do tesouro no processo que vai desde a escolha dos enfeites até a produção das mesmas. Cinco crianças não enfeitaram e trouxeram a caixa (pote de sorvete) sem decoração. Uma criança enfeitou sua caixa sozinha.
Em roda, as crianças, no dia combinado, socializaram as escolhas. Os diálogos estabelecidos neste trabalho seguem a seguinte legenda: P- professor, C1= criança 1, C2= criança 2, C3= criança 3 e assim sucessivamente.
Figura 2- Caixa do tesouro
Após a escolha da primeira caixa, a criança escolhida deu continuidade à atividade. O dono da caixa socializava com os amigos seu tesouro argumentando o porquê de suas escolhas. A conversa seguiu na observação, nas características dos objetos, sua função social.
Foi observado que houve um predomínio de brinquedos que vem junto a alimentos, como por exemplo, MC Lanche Feliz, Kinder Ovo, porque esses brinquedos apareceram com certa constância nas caixas das crianças.
Como a sequência iniciou logo após a Páscoa, as crianças trouxeram vários brinquedos que vieram nos ovos de chocolate. Uma criança retira de sua caixa um leão pequeno e outra criança diz:
C1- Esse vem no kinder ovo.
P- É mesmo?
C1- Sim. Eu já tive um desse, só que o meu era azul.
C2- Todos eles vêm no kinder ovo.
P- Quer dizer que você gosta muito de kinder ovo?
C2- Não, eu não gosto muito de kinder ovo.
P- E você compra?
C2- Comprar eu compro, de vez em quando.
P- Mas você gosta de chocolate?
C2- Rum, rum.
P- Você fica comprando porque quer o brinquedo ou porque você quer o chocolate?
C2- Porque eu gosto dos dois.
Percebe-se neste pequeno trecho o quanto as crianças são influenciadas pelos alimentos associados aos brinquedos. Geralmente o chocolate é bem-querido entre as crianças e o produto é associado a ideia do brinquedo que se torna mais atraente ainda para a criança. Primeiro, a criança diz que não gosta muito de Kinder Ovo, dizendo que compra só de vez em quando, mas depois assume que compra o produto porque gosta de chocolate e do brinquedo.
Em linhas gerais, conseguimos observar nesta atividade que as crianças têm como tesouros em sua maioria, os brinquedos, o que só comprovou nossas hipóteses iniciais. Duas crianças se diferenciaram do grupo ao trazer fotos de suas famílias, contudo uma das crianças teve sua caixa montada por sua mãe, por isto descartamos este dado.
Já a outra criança trouxe brinquedos e também fotos e disse que escolheu a foto porque a família era importante para ela, demostrando aqui já outro referencial de tesouro, diferente do apresentado pela maioria do grupo.
Embora nossa pesquisa não envolva gênero, abrimos parênteses aqui para destacar algo bem presente em nossa pesquisa. Nas atividades, as crianças constantemente se organizavam espacialmente de maneira separada: na roda, os meninos se sentavam de um lado e as meninas, do outro, ou seja, não se misturavam. Esse movimento de separação de meninos e meninas na infância não é algo natural; é, sim, construído socialmente, e a escola também pode estar implicitamente contribuindo para tal comportamento, o que é expresso nas palavras de Louro (1997, p. 59) ao afirmar que “atentas aos pequenos indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são distribuídos e usados — portanto não são concebidos — do mesmo modo por todas as pessoas”. Nota-se, frequentemente, que os brinquedos servem para que as crianças reproduzam as vivências sociais em que meninas brincam com bonecas, de casinha e de salão de beleza, enquanto os meninos brincam com carrinhos e brincadeiras mais corporais.
Nesse sentido, cabe apontar que Bonotto (2008) discute a importância da valorização da diversidade cultural, e, embora ela se refira às diferentes culturas, pensamos que podemos ampliar o olhar para a diversidade, envolva ela gênero, etnia, religião, enfim, qualquer tipo de diferença. Esse dado é algo importante e deve ser nota de atenção já na Educação Infantil, porque é preciso aguçar nosso olhar para observar e mediar esses momentos, propondo diversas estratégias na organização da roda, dos pequenos grupos e nas brincadeiras a fim de favorecer a valorização da diversidade em seus múltiplos aspectos. A questão de gênero na Educação Infantil, com certeza, é um assunto que merece atenção, porque as práticas sociais se reproduzem o tempo todo na sala de aula e é nosso papel propor momentos de reflexão conjunta sobre outras possibilidades.
Episódio 2- Tapete de embalagens
Duração: 2 dias
Objetivo: Mostrar para a criança o quanto consumimos e problematizar o consumo a partir da questão das embalagens, dos resíduos sólidos e das consequências ambientais.
As crianças levaram embalagens que guardaram por uma semana, conforme a proposta. No dia combinado na grande roda de conversa, problematizamos sobre qual era a função das embalagens e onde eram descartadas após o uso dos produtos. Ao serem questionados sobre o destino do lixo, a maioria respondeu que o “lixeiro leva para longe” e duas crianças disseram que leva para o “buracão”.
Para ampliar nossos conhecimentos sobre o destino do lixo e refletirmos sobre nosso consumismo desenfreado, assistimos então a dois vídeos.
a) O caminho do lixo: Como funciona um aterro sanitário
b) O nosso lixo: Caminhos da reportagem
O primeiro vídeo é curto, menos de três minutos, e mostra o funcionamento de um aterro. Os caminhões são pesados numa balança, despejam o lixo, as máquinas espalham, colocam terra, argila, manta de polietileno. Mostra o processo de liberação do chorume e a queima de gás metano.
Conversamos sobre as doenças, os danos trazidos ao ambiente, o consumo consciente. Alguns ampliaram o vocábulo substituindo o “buracão” em suas falas pelo termo aterro sanitário.
Já o segundo vídeo tem 21 minutos, mas assistimos só aos primeiros 7 minutos, pois foi o recorte que me interessava. Trata da questão do trabalho de algumas pessoas no lixão. Vimos o depoimento de uma moça que parou de estudar para trabalhar, para ajudar a família. Com 23 anos, morando num barraco, com 3 filhos conta como é seu trabalho. Perdeu a visão de um olho no próprio lixão. Trabalha de chinelo, sem luva no meio do lixo.
Eles assistiram com muita atenção e se mostraram comovidos com a história da moça e de pessoas que se alimentavam com frutas que estavam no lixo, com o resto da alimentação de outros humanos. Outro fato que eles destacaram foi a falta de segurança dos trabalhadores que são atropelados muitas vezes dentro do próprio aterro e a perda da visão da moça.
Uma criança relatou a experiência que teve com seu avô que era coletor de lixo e o levou um dia para conhecer seu trabalho. Outra criança contou que seu pai trabalha com reciclagem e que ele vai ajudar seu pai de vez em quando.
Tratamos também do trabalho infantil, pois viram muitas crianças trabalhando no lixão e ouviram a experiência do colega, e eles têm bem claro os direitos das crianças de brincar e estudar.
Feita essa discussão, em pequenos grupos, as crianças começaram a montar um tapete de embalagens, processo esse permeado por conflitos, uma vez que tinham que negociar quem iria lavar as embalagens, secar, cortar e grampear. A grande disputa foi pelo grampeador, objeto que não manuseiam muito, era novidade. A nossa fala era sempre de que ninguém podia monopolizar o grampeador e que deveria ter rodízio. Então, foram se organizando para todos grampearem e realizarem as outras atividades também. Assim, entre conflitos e desafios concluímos o tapete em três dias.
Depois de toda essa discussão fomos finalmente ver nosso tapete. Eles ficaram admirados com o tamanho do tapete. Visivelmente foi algo que impactou as crianças.
Figura 3- Tapete de embalagens
Fizemos uma grande roda na quadra para realizarmos juntos algumas reflexões e as crianças identificaram seus rótulos de forma que se viram ali no trabalho. Ao questionar como poderíamos reduzir as embalagens algumas crianças responderam: FAZENDO TAPETE, outras disseram que reciclando e uma criança respondeu comprando menos.
A resposta FAZENDO TAPETE nos revela o imediatismo próprio de crianças desta faixa etária. Articularam que a solução para resolver o problema do lixo era fazer tapetes, afinal a pesquisadora tratou desta temática e propôs a confecção de um tapete com eles.
A fim de problematizar essa questão que para algumas crianças não ficou bem resolvida, retomamos as discussões em pequenos grupos. Neste momento, tomamos o cuidado de mesclar as crianças de acordo com as zona de desenvolvimento proximal- ZDP, conforme nos assinala Vigotski (2007).
Desta maneira, organizamos as crianças que já tinham atingido um nível de reflexão mais avançado com as crianças que responderam que a solução era fazer tapetes.
Conversamos novamente sobre a confecção dos tapetes, sobre os vídeos, sobre reutilizar e sobre a importância da redução do consumo. Ao retomar nos grupos essa problemática de como diminuir o lixo, novamente algumas crianças sinalizaram que a solução era fazer tapete e, desta forma, houve o questionamento de onde colocaríamos tantos tapetes.
Uma criança de três anos respondeu que deveríamos colocar os tapetes em cima do armário. Questionamos se iria caber tanto tapete em cima dos armários. Uma criança mais velha respondeu que fazer tapete não adiantaria, que a solução seria comprar menos. Outra criança disse que a gente pode usar de novo as coisas indicando a ideia de reutilizar.
Cada grupo tem uma ou duas crianças que argumentam mais, que fazem questões de uma forma mais elaborada, crítica e essa interação com outras crianças fornecem uma ampliação de sentidos e significados para as crianças menores, que ainda não conseguem chegar sozinhas a algumas reflexões.
De novo apareceu a apropriação de sentidos, lentamente trocaram o termo água fedida por chorume e buracão por lixão, por aterro sanitário e com a mediação da pesquisadora e de algumas crianças o grupo foi entendendo e se apropriando de que a solução para reduzir o lixo é o consumo consciente, em outras palavras comprar menos.
Depois da conversa, a proposta era desenhar sobre o que mais gostaram dos vídeos ou na confecção do tapete. Neste instante, notamos uma divisão nítida entre gênero: a maioria das meninas desenhou tapete, que lembra o ambiente doméstico, enquanto os meninos desenharam mais o aterro, os caminhões que na nossa sociedade, estão atrelados à figura masculina, do motorista que na maioria das vezes é homem.
Figura 4- Tapete de rótulos (desenho de uma menina)
Figura 5- Caminhão da coleta seletiva (desenho de menino)
Essa atividade também contemplou saberes diversos, além de ser permeada por um trabalho coletivo das crianças, que exigiu organização, resolução de problemas como: divisão de tarefas, diálogo entre elas, acordos, desafios.
Ao desenhar a criança nunca cria do nada. Ela sempre produz saberes baseado na produção de alguém e durante a atividade, por diversos momentos as crianças anunciavam um desenho, mas ao verem a produção dos amigos acabavam mudando a proposta ou até ampliando sua ideia inicial.
Remetemo-nos às categorias de Bonotto (2008) e acreditamos que este episódio proporcionou trabalharmos a valorização de uma sociedade sustentável, porque tratamos das diferenças sociais, de trabalho infantil, das condições de trabalho em um aterro e dos direitos das crianças. Com esta atividade, conseguimos que as crianças socializassem suas vivências, entrassem em contato com outra realidade, conhecessem o funcionamento de um aterro e pensassem de forma mais aprofundada sobre o destino do lixo.
Episódio 3-“ Não custa nada” - Música em família
Objetivo: Estabelecer um diálogo a com as crianças a com relação à letra, observando porque se chama “Não custa nada” e despertar para a discussão de que não precisamos ter muito para sermos felizes.
Duração: 1 dia
Letra da música: Não custa nada (Paula Santisteban e Eduardo Bologna)
Eu descobri que as coisas boas da vida são de graça, não custam nada.
Eu descobri que o mundo inteiro pode ser o meu jardim, a minha casa, o teu abraço, não custa nada, um beijo seu, não custa nada, a boa ideia, não custa nada, missão cumprida, não custa nada, e quando tudo parecer que está perdido de uma boa gargalhada.
Eu descobri que as coisas boas da vida são de graça, não custam nada.
Eu descobri que o mundo inteiro pode ser o meu quintal, a minha casa, o por do sol, não custa nada, a brincadeira, não custa nada, um gol de placa, não custa nada, vento no rosto, não custa nada,
E quando tudo parecer que está perdido de uma boa gargalhada (hã, hã, ahã, uhuhuhuhuhuh)
A flor do campo, não custa nada, onda do mar, não custa nada, a poesia, não custa nada, a nossa história, não custa nada, fruta no pé, não custa nada, água da fonte, não custa nada, banho de sol, não custa nada, um bom amigo, não custa nada,
E quando tudo parecer que está perdido de uma boa gargalhada (hã, hã, ahã)
Eu descobri que as coisas boas da vida são de graça, não custam nada (bis)
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Convidamos as crianças para ouvirem a música e assistir ao clipe. A letra da música vem desconstruir a ideia de que precisamos ter para sermos felizes. Valoriza as coisas simples da vida que não necessitam de dinheiro como: abraço, beijo, a boa ideia, missão cumprida, pôr do sol, a brincadeira, um gol de placa, vento no rosto, a flor do campo, onda do mar, a poesia, a nossa história, fruta do pé, água da fonte, banho de sol e um bom amigo.
A música é tranquila, tem um ritmo suave e seu refrão diz que as coisas boas vida são de graça, não custam nada. O clipe alterna imagens dos músicos da banda e elementos da natureza e interação humana demostrando a afetividade.
Após o primeiro contato que acreditamos ter sido muito mais pelas imagens, problematizamos para que se atentassem prestando atenção na letra da música e escolhessem a parte que mais gostaram, pois teriam que registrar depois através de um desenho.
Assistiram então pela segunda vez, e já foram se situando em suas preferências pessoais e começaram a cantar. A maioria solicitou que colocássemos pela terceira vez: desta vez, ouviram e cantaram com mais entusiasmo.
Assim que terminou o vídeo da música, trabalhamos com pequenos grupos de seis crianças para acompanhar mais de perto a ZDP e fazer as mediações.
P - Essa música se chama: Não custa... (Aumentamos a entonação de voz para eles completarem.)
Crianças - Nada.
P - Ela fala de coisas que podemos fazer e não precisa de quê?
Crianças - Dinheiro.
P - O que fala na letra da música? O que você lembra, C5?
C5 fica pensando um pouco e responde:
C5 - Fala de coisas que a gente faz e são de graça, que não precisam de dinheiro.
P - Que parte você mais gostou?
C5 -Da parte da menina no balanço brincando.
P- A brincadeira não custa nada.
Apontamos uma criança e perguntamos:
P - E você? O que você se lembra?
C12 - Eu me lembro do gol de bola.
P - Um gol de placa... Não custa nada.
As crianças entraram na brincadeira e cantaram: “não custa nada”. Após todas as crianças falarem, e as suas respostas foram organizadas no seguinte quadro:
Escolhas das crianças |
Quantidades |
Banho de mar |
7 |
A brincadeira |
5 |
Flor do campo |
4 |
Desenho |
3 |
Gol de placa |
1 |
Um bom amigo |
1 |
Pisar na grama |
1 |
Quadro 3- Escolhas a partir do clipe exibido
Figura 6- Banho de mar- C5 (5 anos)
Figura 7- A brincadeira - C13 (4 anos)
Figura 8- A flor do campo- C21 (5 anos)
Figura 9- Desenhar - C22 (4 anos)
Figura 10- Um bom amigo - C2 (5 anos)
As crianças desenharam o que mais gostaram. Todos os grupos conseguiram perceber que as imagens do vídeo são coisas que não necessitam de dinheiro e que não precisamos ter muitas coisas para sermos felizes.
No entanto, último grupo uma criança fez um comentário crítico que nos chamou a atenção:
C9- Essa música está errada.
P- Como assim? Não entendi, me explica.
C9- É que na música fala que banho de mar não custa nada, mas custa sim, sabe por que? Eu fui na praia com meu pai, minha mãe e meu irmão. A gente pagou uma casa para ficar lá na praia, pagou gasolina, pagou pedágio, comprou comida, tomou sorvete. Então, banho de mar custa sim.
P- Sabe que você tem razão? Para tomar banho de mar não custa não, mas para chegar até lá e ficar lá gastamos sim e muito.
C9- Meu pai falou que fica muito caro.
As crianças neste momento ouvem esse diálogo e socializam seus passeios a praia e dizem que gastaram também. Uma criança diz que queria conhecer o mar, mas os pais nunca a levaram porque eles não têm dinheiro.
Podemos observar que o nível de interpretação de C9 sobre o banho de mar está além das reflexões do grupo, no entanto, suas ideias fazem com que as outras crianças possam interagir com outro ponto de vista muito bem situado. Ela se utilizou de uma experiência vivida e fez um link com a música de uma forma pertinente discordando deste trecho da música e argumentou marcando seu posicionamento.
Os valores trabalhados aqui, mais uma vez, foram de valorização de uma vida sustentável e de uma vida participativa a partir de Bonotto (2008), porque a letra da música enaltece a vida, as pessoas, os ambientes, os elementos da natureza, os animais, as relações, as brincadeiras e as histórias, e não as coisas. Além disso, as crianças interagiram de forma a compartilhar suas experiências, expondo e argumentando de forma autônoma.
Acreditamos que este episódio foi muito divertido para as crianças que cantaram, viram o vídeo, desenharam, discutiram as ideias e tiveram a oportunidade mais uma vez de pensar em outra possibilidade de viver fora de uma mentalidade mercadológica.
Considerações finais
Esta pesquisa se constituiu como um grande desafio que compreendeu desde a apropriação das diferentes concepções ambientais as reflexões sobre a Educação Ambiental crítica, até a elaboração propriamente dita da sequência didática para crianças da Educação Infantil.
Pensar em atividades que contemplem a Educação Ambiental crítica com crianças maiores, do Ensino Fundamental em diante, parece ser uma tarefa mais fácil, mas pensar em como ser crítico com crianças tão pequenas se constituiu como um esforço árduo, porque não basta ter os conceitos, temos, pois, que pensar nas estratégias de ensino, nas diferentes linguagens que dialogam com as crianças.
Com crianças pequenas é muito difícil discutir, por exemplo, que a crise hídrica se dá muito mais pelo uso da água na agroindústria do que pelos nossos gastos domésticos, como: banho: escovar os dentes, atitudes mais individuais, traçando todas as tramas políticas envolvidas nisto. Todavia, percebemos que é possível sim realizar as primeiras aproximações ao pensamento crítico, socioambiental com crianças pequenas.
Devem existir vários caminhos a se construir em busca de uma Educação Ambiental crítica, mas encontramos na questão do consumo consciente x consumismo um caminho que está bem próximo a eles, à medida que eles são pequenos consumidores e já vivenciam esse cenário mercadológico e são bombardeados o tempo todo pela mídia que tem todo um arsenal de publicidade com o objetivo de convencimento ao consumidor.
A cada passo dado, foi perceptível as aprendizagens, as dúvidas, os diálogos partilhados, as negociações, os conflitos. Lutar contra a maré da ideologia do desejo não é nada fácil, porque somos instigados o tempo todo a querer coisas e tomados por um desejo de insatisfação.
O mais interessante é perceber que não há um caminho pronto e sim um caminho a ser construído, porque nos vimos obrigadas a cada aula, pensar em estratégias que não haviam sido pensadas antes. Intercalar atividades mais coletivas, com atividades em pequenos grupos nos auxiliou em conhecer mais as crianças e organizá-las de acordo com a zona de desenvolvimento proximal, em que crianças mais novas puderam trabalhar com as mais velhas, as que tinham um nível de reflexão maior com as que ainda não estavam conseguindo chegar a um determinado nível de discurso.
Ao interagir com os seus pares as crianças foram se modificando, que foi constatado durante em seus discursos, desenhos, brincadeiras, entre outros.
Em outras palavras, realizamos uma viagem epistemológica da qual obtivemos bons resultados porque foi possível desenvolver as primeiras aproximações para que a criança cidadã já comece a refletir sobre seus hábitos de consumo, as implicações do consumismo no meio ambiente.
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