Da memória ao desencantamento, as evidências do cotidiano

– Sobre as fotografias que não fiz.

Profª MSc. Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Resumo: A crise ecológica remete a um colapso global - social, político e existencial - que se configura como uma situação histórica peculiar, colocando a subjetividade como um parâmetro diferenciador na constituição das individualidades emergentes.

O pensamento ecológico tem vários aspectos que o constituem. O ético, por exemplo, nos leva a questionar sobre o tipo de relacionamento que nós, humanos, mantemos com o mundo.

A crise ecológica remete a um colapso global - social, político e existencial - que se configura como uma situação histórica peculiar, na qual o esvaziamento das antigas ideologias, das práticas sociais e das políticas tradicionais colocam a subjetividade como um parâmetro diferenciador na constituição das individualidades emergentes.

Hoje em dia a problemática ecologista da forma como está posta nos permite articular a questão urbana com a questão ética, o público com o privado, o social, o ambiental e o mental. E para caminharmos nesse sentido deveremos experimentar novas instâncias de análise.

A cidade é uma galáxia a mover-se desigual...

(...) que em seu girar arrasta nossas vidas, nossas casas,

nossas caixas de lembranças cheias de papéis velhos e fotos doidas.

De olhos que nos fitam de tempo algum

Agora que são apenas manchas

E não obstante falam ainda na poeira do cemitério doméstico.

Galáxia, Ferreira Gullar.

Desde 1995 fotografo sistematicamente o cotidiano da cidade do Rio Grande, tenho um acervo de aproximadamente três mil imagens. Ao longo desses dez anos minha câmera revelou muitas surpresas, desde as mais belas paisagens daquela que é o berço da colonização lusitana no estado do Rio Grande do Sul, até bizarras combinações, que mostram um espaço ultrajado, desconsiderado e desrespeitado por seus habitantes e pelo poder público.

O que começou como um exercício do olhar transformou-se em pesquisa. Essa prática despertou em mim uma sensação de estranhamento, que, por sua vez, abriu meus olhos para a dimensão ética do relacionamento dos seres humanos entre si e com a natureza, determinando minha inserção na área da Educação Ambiental.

Sobre as fotografias... algumas foram elaboradas, outras capturadas como flagrantes, e muitas permanecem somente na memória... Entretanto, todas remetem à singular questão da degradação nas relações sociais, políticas e naturais do homem urbano ocidental.

Para escrever, geralmente o faço conduzida por imagens visuais, porém, as mentais, que só existem na minha memória, também são inspiradoras. Dentre as muitas fotografias que não fiz, uma em particular teima em re-aparecer, presentificando o vivido: - É a imagem de uma faixa, colocada no terceiro andar de um belo prédio, comemorando o sucesso de um vestibulando. A faixa era mais bonita do que as convencionais - geralmente confeccionadas em tecido de algodão branco com letras manuscritas. Essa era de papel resistente e brilhante, fundo colorido com os tons da pátria (verde e amarelo), impressa em computador: - Um banner, daqueles que costumamos apresentar nos eventos acadêmicos. O texto saudava: - Valeu, Dani!! Medicina, UCPel (Universidade Católica de Pelotas, RS), 2006.

Até aí, tudo bem! É normal nessa época do ano vermos estampada nas fachadas de casas e apartamentos, a saudação de familiares e amigos, reverenciando a conquista de seus estudantes. Contudo, um detalhe chamou minha atenção: a linda “faixa” trazia no canto direito a logomarca do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e no esquerdo, a logomarca do Banco do Estado do Rio Grande do Sul!! Pasmem, o povo patrocinou a comemoração do ingresso desse jovem em uma Universidade particular... e a família não teve o menor pudor em expor sua condição de “privilegiado”.

Minha filha também passou no vestibular para uma Universidade Federal, porém o orçamento familiar não possibilitou nem a faixa de algodão, quanto mais um banner!

Ninguém precisa ir à escola para conhecer os estragos causados por comportamentos individualistas e egocêntricos, característicos de uma mentalidade que dissolve culturas, que lança os indivíduos numa luta desprovida de valores... que fragmenta e separa. O desafio é entender as origens dessas mazelas e a melhor forma de combatê-las.

Tarefa hercúlea, diria minha querida mestra Judith Cortesão... e muitas vezes por demais frustrante, eu acrescentaria. Às vezes me sinto impotente e irada contra os podres poderes! Creio que como nunca é necessário o aconchego da Arte, em suas diferentes manifestações, para iluminarmos um mundo tão sombrio.

Conheces o quente progresso

debaixo das estrelas?

Sabes que existimos?

Terás esquecido as chaves

do reino?

Terás nascido já

& será que estás vivo?

Reinventemos os deuses, todos os mitos

das eras

Celebremos os símbolos das anciãs florestas profundas

[Terás esquecido as lições

da guerra antiga]

Uma oração americana, Jim Morrison.

País das diferenças, dos descalabros políticos e dos escândalos homéricos, das verdes matas (queimadas!) e das nascentes (contaminadas!), da fome e do Carnaval, da miséria e do Futebol: - Somos assim! E essa verdade que muitas vezes choca e indigna esta estampada na epiderme da cidade, configurando nosso imaginário.

Penso que não estamos sabendo administrar a herança deixada pela era industrial e, como não conseguimos por ordem na casa, empurramos a responsabilidade para as próximas gerações (- e para a Escola!), sem ao menos refletirmos criticamente sobre as implicações de nossas próprias atitudes.

A vida cotidiana é feita de crenças silenciosas e da aceitação tácita de evidências que geralmente não questionamos, por nos parecerem naturais. Os sujeitos muitas vezes são compelidos a repetirem normas e comportamentos estabelecidos, sem se aperceberem que isso implica numa submissão precoce a um mundo de outros, que ainda não é o seu próprio mundo.

Perceber a realidade, é observar e refletir! O sentido de pertencimento e responsabilidade sócio-ambiental está relacionado ao entendimento da identidade como algo que deve ser descoberto em sua eterna condição de inconclusão.

Precisamos atuar no sentido de desencadear centelhas criativas que engendrarão tomadas de consciência capazes de novas perspectivas construtivas. Outras formas de ver e “fazer” o mundo, de aprender e de criar, que têm nas infinitas possibilidades da imaginação criadora, um poderoso instrumento para a tomada de consciência acerca dos fatores subjetivos da história... e da necessidade de uma (re)fundação das práticas políticas.

O imaginário – Esse tecido de imagens encantadoras! – tanto pode ser utilizado como máscara para ocultar a verdade, justificador do mundo como ele parece ser, como pode inventar o novo em todas as áreas do conhecimento, considerando os elementos afetivos, intelectuais e culturais. A imaginação criadora gera uma outra realidade para re-apresentar o cotidiano em suas contradições e despertar em nós o desejo de mudança.

Enquanto o imaginário reprodutor opera com ilusões, a imaginação criadora opera com a invenção do novo e da mudança graças ao conhecimento do presente.

O conhecimento do mundo no nível da consciência coletiva é possível através da análise do imaginário urbano, encaminhando à compreensão e visão de que a existência do homem não tem fim em sua própria pessoa e esfera particular. A realidade existe fora de nós e é possível percebê-la e conhecê-la tal como é, diferenciando o real da ilusão.

Figura 1: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2006.

Esta é a minha cidade: - a Noiva do Mar!, um palimpsesto onde cotidianamente apagamos e re-escrevemos nossa presença no mundo.

Sinto por essa linda Noiva tão desprestigiada... que encontra tantas dificuldades para cativar patrocinadores!!

Bibliografia:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.

MORRISON, Jim. Últimos escritos. Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim, 1993.



[i] Arte-educadora, mestre em Educação Ambiental, é coordenadora do PhotoGraphein: Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, grupo de pesquisa CNPq/FURG. attos@vetorial.net