ORDENAMENTO TERRITORIAL: UMA ANÁLISE DA SOBREPOSIÇÃO ENTRE O PARQUE NACIONAL MAPINGUARI E A FLORESTA NACIONAL BALATA-TUFARI

Tatiane Rodrigues Lima1, Iranira Geminiano de Melo2

1Mestra em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, Universidade Federal de Rondônia, Especialista em Gestão Ambiental, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, lotada no Parque Nacional Mapinguari. E-mail: lima.tatiane@gmail.com

2Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Profissional (PPGEEProf/UNIR). Mestra em Ciências pela UFRRJ. Docente do IFRO - Campus Porto Velho Calama. E-mail: iranira.melo@ifro.edu.br



Resumo: O presente trabalho apresenta uma análise dos caminhos de gestão possíveis quando se encontram em sobreposição os territórios de uso de famílias tradicionais com áreas protegidas, a partir de ações de educação ambiental. Nesse sentido, trata-se, em específico, da sobreposição de território entre duas unidades de conservação federais, sendo a Floresta Nacional Balata-Tufari e o Parque Nacional Mapinguari, os quais foram criados no contexto de recuperação da BR 319 e que, a partir da implementação deles, houve alguns impasses sobre o modo de vida da comunidade tradicional Nossa Senhora do Carmo, situada à margem da BR 230, Canutama-AM. A presente experiência técnica teve como fator motivador, a implementação de uma proposta de ordenamento territorial, a partir da qual as famílias tradicionais, até então relacionadas como infratoras, dentro da jurisdição do Parque Nacional Mapinguari, passaram a ser protagonistas e beneficiárias em potencial da FLONA Balata-Tufari. Para tal alcance, foi realizada uma atualização do diagnóstico situacional de uso (produção e ocupação) das famílias, seguido de uma oficina de planejamento participativo – OPP, em que foi desenhado, junto à comunidade, o melhor modelo de ocupação territorial. Como resultado, foi sugerida a proposta de se legitimar institucionalmente, junto ao órgão regulador competente-Instituto Chico Mendes – ICMBIO, a abertura e consolidação de novas áreas de uso integralmente inseridas no interior da FLONA Balata-Tufari, situação que possibilitará a ampliação de acesso às políticas públicas de fomento à produção das famílias e as afastará dos riscos de ilegalidade nas atividades de subsistência e econômicas. O desenho do novo arranjo de uso trouxe como referência as áreas de produção voltadas aos sistemas agroflorestais, os quais se apresentam como uma alternativa interessante e de baixo custo para promover a diversificação de produção em áreas pequenas de pouco acesso a insumos externos.

Palavras-chave: ordenamento territorial, população tradicional, unidade de conservação, educação ambiental.

Abstract: This paper presents an analysis of the possible management paths when the territories of use of traditional families with protected areas are overlapping, with environmental education actions. In this sense, it is specifically the overlapping of territory between two federal conservation units, the Balata-Tufari Nacional Forest and the Mapinguari Nacional Park, which were created in the context of BR 319 recovery and that, from their implementation, there were some impasses about the way of life of the traditional community Nossa Senhora do Carmo, located on the sidelines of BR 230, Canutama-AM. The present technical experience had as a motivating factor, the implementation of a proposal of territorial planning, from which traditional families, hitherto related as violators, within the jurisdiction of the Mapinguari National Park, became potential protagonists and beneficiaries of Balata-Tufari FLONA. For this reach, an update of the situational diagnosis of use (production and occupation) of families was performed, followed by a participatory planning workshop - PPW, in which the best model of territorial occupation was designed with the community. As a result, it was suggested the proposal to legitimize itself institutionally, with the competent regulatory body -Chico Mendes Institute -, the opening and consolidation of new areas of use fully inserted within FLONA Balata-Tufari, a situation that will allow the expansion of access to public policies to promote the production of families and remove them from the risks of illegality in subsistence and economic activities. The design of the new usage arrangement brought as reference the production areas focused on agroforestry systems, which present themselves as an interesting and low cost alternative to promote the diversification of production in small areas with little access to external inputs.

Keywords: spatial planning, traditional population, conservation unit.

Introdução

Este artigo se constitui no trabalho de conclusão do curso de Especialização em Gestão Ambiental, ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO). A pesquisa surgiu do alinhamento entre as teorias estudadas nas disciplinas do Curso e as atividades profissionais desenvolvidas pela autora enquanto analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade com lotação no Parque Nacional Mapinguari. Assim, é desse lugar de estudante e de profissional que ocorre a análise da sobreposição entre o Parque Nacional Mapinguari e a Floresta Nacional Balata-Tufari.

Em janeiro de 2006, o Governo Federal do Brasil e o Governo do Estado do Amazonas anunciaram o processo de licenciamento para recuperação da rodovia BR-319, que corta a Amazônia Central e conecta, por via terrestre, às cidades de Manaus-AM e Porto Velho-RO. Como medida de prevenção dos impactos socioambientais que poderiam evoluir a partir da revitalização desta rodovia, o Governo Federal, por meio do Ministério do Meio Ambiente, propôs a criação e implementação de um mosaico de áreas protegidas, composto por unidades de conservação estaduais, federais e terras indígenas ao longo de toda a região de influência da BR 319, denominada Área sob Limitação Administrativa Provisória-ALAP da BR-319, com mais de 15 milhões de hectares. A partir desse cenário, foi ampliada em 2005 a Floresta Nacional Balata-Tufari e foi criado em 2008 o Parque Nacional Mapinguari, ambos situados na região sul do Amazonas, sendo a primeira uma unidade de conservação de uso sustentável, que admite o uso direto de seus recursos naturais e a segunda, uma unidade de proteção integral com previsão de uso indireto de seus recursos.

A partir do momento da criação do Parque Nacional Mapinguari, houve uma sobreposição de território entre as duas unidades de conservação sobre uma área situada à margem da BR 230 (Rodovia Transamazônica) no interflúvio de dois importantes rios da bacia hidrográfica do Rio Purus - o Rio Mucuim e Rio Assuã. Este território se configurava, à época, - parte como área em processo de regularização fundiária pelo INCRA e, em parte, como área de uso agroextrativista da comunidade tradicional Nossa Senhora do Carmo, situada à margem da BR 230 (Transamazônica) em confluência com o Rio Assuã, no município de Canutama-AM.

A destinação de territórios amazônicos para conservação tende a gerar muitas dúvidas por parte de comunidades locais a respeito da garantia de continuidade de suas atividades extrativistas, agricultura e, principalmente, sobre sua permanência na área. Em relação à comunidade do Rio Assuã, seu território de uso ficou quase totalmente sobreposto aos limites das duas áreas protegidas. Diante da pré-existência das famílias e da necessidade de ordenar o uso dos recursos naturais, que fazem sobre a área de sobreposição, busca-se por meio da presente pesquisa analisar e implementar um novo desenho de uso e ocupação do território, utilizando como norteador metodológico o conceito de ordenamento territorial.

Diante do cenário apresentado, surgiu a pergunta: Como se deu o processo de ordenamento territorial na sobreposição entre o Parque Nacional Mapinguari e a Floresta Nacional Balata-Tufari? Para responder a esse questionamento, recorreu-se ao conceito geográfico de ordenamento territorial como marco orientador sobre o tema. A partir desta questão de pesquisa, definiu-se como objetivo descrever o processo de uso e ocupação do território na comunidade tradicional Nossa Senhora do Carmo, a partir do conceito de ordenamento territorial através do relato de experiência técnica com ações de educação ambiental.

CONTEXTO DA SOBREPOSIÇÃO

A existência de duas unidades de conservação sobrepostas ao território de uso da Comunidade Tradicional Nossa Senhora do Carmo evidenciou a necessidade de um ordenamento territorial da região, de forma a criar os meios necessários para que a própria comunidade possa conduzir um processo de reorganização e desenvolvimento socioeconômico aliado à conservação ambiental. Nesse sentido, a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC se complementam, quando incentivam o reconhecimento de direitos e a necessidade de promover o desenvolvimento socioambiental dessas populações tradicionais, através de ações que promovam a melhoria das condições de alimentação, saúde, higiene e educação aliadas a valorização da cultura e reconhecimento de seu território (BRASIL, 2002; BRASIL, 2007).

Figura 1: Área de Sobreposição entre Parque Nacional Mapinguari e Floresta Nacional Balata-Tufari.

Fonte: (ICMBIO, 2010).

A Lei nº 6.938/81 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente no Brasil orienta que o desenvolvimento socioeconômico deve ser acompanhado da valorização do fator humano, de forma a compatibilizar a manutenção da qualidade ambiental com a promoção da qualidade de vida, valorizando o bem coletivo da sociedade brasileira. Além disso, ela também orienta que áreas especiais e representativas de ecossistemas brasileiros devem ser objeto de proteção governamental com o intuito de preservar o equilíbrio ecológico daquele sistema (BRASIL, 1981). Esses dois aspectos estão, nitidamente, materializados no objeto de estudo da presente pesquisa, ao relacionar os interesses coletivos da conservação de uma importante área representativa do bioma floresta amazônica por meio da criação de duas unidades de conservação – Parque Nacional Mapinguari e Floresta Nacional Balata - Tufari e a sua relação de interferência na estrutura econômica, social e ambiental de comunidades de moradores preexistentes, no caso, a Comunidade Nossa Senhora do Carmo (Figura 2).

Figura 2: Comunidade Nossa Senhora do Carmo, Canutama-AM.

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação-SNUC que normatiza a criação e gestão das unidades de conservação do Brasil traça princípios a serem seguidos para considerar e valorizar as necessidades sociais nesse processo. Trata também da normatização de implantação dessas unidades de conservação considerando os princípios da sustentabilidade ambiental. Um de seus objetivos é a proteção dos recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento, sua cultura e promovendo-as social e economicamente. O SNUC também tem como diretriz o reconhecimento das condições e necessidades sociais e econômicas locais, no processo de criação e gestão das unidades de conservação, bem como o desenvolvimento de técnicas de uso sustentável dos recursos naturais para atender as necessidades das populações locais. E ainda, deve garantir meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos, cuja subsistência dependa da utilização de recursos existentes no interior de unidades de conservação (BRASIL, 2002).

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais trouxe o reconhecimento do modo de vida diferenciado das populações tradicionais e apresentou em seus objetivos a necessidade de se investir no enriquecimento econômico, na garantia de território, bem como na busca para solucionar ou reduzir os conflitos existentes entre as comunidades tradicionais, o governo e a sociedade, garantindo assim a preservação de suas tradições, ou seja, toda comunidade tradicional tem direito ao desenvolvimento sustentável evitando que sua cultura seja sumariamente afetada. Essa Lei também anuncia que toda ação realizada em benefício da comunidade tradicional deve ser desenvolvida em parceria com ela e que, na busca pelo desenvolvimento sustentável, podem ser empregadas tecnologias sustentáveis, respeitando sua organização social (BRASIL, 2007).

Metodologia

Metodologicamente, este estudo se caracteriza como relato de uma experiência técnica:

-Levantamento de experiências institucionais de promoção de atividades econômicas sustentáveis desenvolvidas por comunidades tradicionais sobre influência de unidades de conservação: Em um primeiro momento foi realizado um levantamento bibliográfico acerca de experiências institucionais que objetivassem implementar ações de ordenamento do uso de recursos naturais com o objetivo de fomentar geração de renda em populações tradicionais cuja área de uso estivesse sobreposta às unidades de conservação;

-Caracterização das áreas de uso direto de recursos naturais: Foi elaborada a espacialização do uso e ocupação da comunidade por meio de imagens de satélites atualizadas e pesquisa em campo, que ajudaram a identificar os atuais padrões de ocupação da comunidade, bem como permitiu compreender as transformações na área de uso ocorridas ao longo do tempo;

-Atualização do perfil produtivo da comunidade Nossa Senhora do Carmo: Etapa em que foi realizada a caracterização do perfil produtivo destas famílias como forma de atualizar o cadastro socioeconômico elaborado pelo ICMBio em 2010 a partir da aplicação de um questionário socioeconômico. Este diagnóstico serviu como referência para atualização do banco de dados socioeconômico da comunidade;

-Construção de um plano de ordenamento de uso de seu território levando em consideração a coexistência do Parque Nacional Mapinguari, da Floresta Nacional Balata Tufari e da BR 230: Foi realizada uma oficina participativa para apresentar os resultados e desenhar junto à comunidade uma proposta de reorganização dos espaços de uso considerando a coexistência das duas unidades de conservação. Em seguida, a proposta de ordenamento foi implementada pelas famílias;

-Construção de um plano alternativo de geração de renda utilizando sistemas agroextrativistas e agroflorestais-SAFs: Após o novo desenho territorial, já implementado, foi realizada a construção de um plano alternativo de diversificação de geração de renda junto à comunidade já considerando o novo cenário de organização das áreas de uso.

Todas essas etapas foram motivadas e orientadas pelas disciplinas do curso de Gestão Ambiental, tendo contribuições particularmente importantes Fundamentos da gestão ambiental, Legislação ambiental e Sociologia ambiental. A partir delas, foi possível discutir a legislação, o ambiente e a sociedade e ampliar as possibilidades de atuação profissional nesse processo de ordenamento territorial da região de sobreposição entre o Parque Nacional Mapinguari e a Floresta Nacional Balata-Tufari na perspectiva da educação ambiental.

Dessa forma, as ações desenvolvidas e analisadas nesse relato de experiência foram implementadas a partir de um projeto de intervenção desenvolvido na perspectiva da educação ambiental, no Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão Ambiental, para que como gestores ambientais os estudantes buscassem soluções práticas para problemas reais que se apresentassem no cotidiano profissional ou comunitário.

Resultados e Discussão

Como referência de experiências recorreu-se a Brasil (2014), que apresenta orientações metodológicas para encaminhar a resolução de conflitos de uso de recursos naturais por comunidades tradicionais em territórios sobrepostos às unidades de conservação de proteção integral (o caso concreto encontrado na comunidade Nossa Senhora do Carmo). Por se tratar de um trabalho técnico, conduzido pelo Ministério Público Federal, apresentou-se como uma ponte viável entre o que orienta a legislação e a prática social nestas áreas. Oliveira Junior e Cabreira (2012) trazem como referência estudo de caso para o desenvolvimento de projetos produtivos com base nos sistemas agroflorestais a partir do conhecimento tradicional de uma comunidade tradicional, vindo a servir como referência para responder a problemática quanto à geração de renda.

A caracterização de uso e ocupação da comunidade se deu pela análise do histórico de alteração da cobertura do solo sobre a área objeto de estudo. Foram consultadas as imagens de satélite LAND SAT, a partir de 2008, ano de referência quando foi criado o Parque Nacional Mapinguari. As imagens foram baixadas a partir de duas fontes oficiais sendo a brasileira - INPE e a americana - Glovis. Duas fontes de satélite foram utilizadas: Land Sat 5 para os anos de 2008 e 2009 e Land Sat 8 para os anos 2013, 2014, 2015 e 2016.

A análise revelou que a alteração da cobertura do solo ainda pode ser considerada incipiente, comparada aos altos índices de desmatamento de floresta na região compreendida pelo arco do desmatamento da Amazônia. De qualquer forma existe uma dinâmica de desmatamento ocorrendo, de ambos os lados da BR 230 e dentro das duas unidades de conservação: Parque Nacional Mapinguari e Floresta Nacional Balata-Tufari.

As áreas alteradas, ainda que pequenas, estão crescendo ao longo dos anos, o que pode estar sendo influenciado por vários fatores, dentre os quais a característica de ocupações de famílias tradicionais da Amazônia, que têm sua renda atrelada à abertura ano após ano de pequenos roçados sobre novas áreas de floresta nativa, consolidada ou em regeneração, chamadas, localmente, de capoeiras. Parte disso pode estar associado às ocupações ilegais em terras públicas.

A recuperação da BR 230, facilitando sua trafegabilidade o ano todo, e a promessa de instalação de rede de energia rural são fatores contribuintes para o fenômeno observado: desmatamento de pequenos lotes para plantio. Essas áreas de roçado são pequenas, de 1 a 3 hectares. A imagem LandSat apresenta resolução de 30 metros, dificultado uma análise mais detalhada das áreas muito pequenas.

Em 2015 e 2016, houve um incremento significativo de novas áreas desmatadas. A grande problemática reside no fato de que parte dessas áreas desmatadas está no território de um parque nacional, onde o uso direto dos recursos não é permitido. Por outro lado, os desmatamentos em curso sobre a floresta nacional podem estar sendo produtos de ilícitos ambientais. É sobre esse contexto que incide o grande desafio de construir de modo participativo o ordenamento territorial sobre a área de influência da comunidade Nossa Senhora do Carmo levando em conta suas necessidades sociais e econômicas, bem como os objetivos das unidades de conservação sobrepostas. E um dos impactos esperados a partir dos resultados obtidos era a diminuição das taxas de desmatamento na região, observado nas imagens.

Os questionários socioeconômicos foram aplicados junto a 5 unidades familiares (Figura 3) e permitiu caracterizar o perfil produtivo das famílias da comunidade tradicional Nossa Senhora do Carmo, o qual apresentou-se baseado em uma economia de subsistência com pouca diversificação das fontes de renda, realidade de muitas comunidades na Amazônia, sendo predominante o plantio de milho e mandioca. E, apesar de fazerem o uso direto de recursos naturais em seu território, na prática, sua atuação sobre a unidade conservação de proteção integral apresentava-se irregular do ponto de vista legal e já a atuação sobre a unidade de conservação de uso sustentável requer ordenamento.

Figura 3: Aplicação de questionário socioeconômico em uma unidade familiar na comunidade Nossa Senhora do Carmo.

Os resultados evidenciam que a renda familiar era derivada da produção de farinha e coleta sazonal de castanha. Praticam a abertura de roçados sobre floresta nativa com uso de derrubadas de áreas e queimadas. As unidades de moradia eram localizadas em sua maioria na vila à margem do Rio Assuã e a abertura dos roçados eram realizadas dentro dos limites do Parque Nacional Mapinguari e da Floresta Nacional Balata – Tufari, ou seja, fora da área onde residiam.

Durante a entrevista, os moradores demonstraram estar muito apreensivos em relação à legalidade ou não de suas atividades, apresentavam dúvidas em relação aos limites das duas unidades, bem em qual lugar de fato poderiam exercer suas atividades sem riscos de impedimentos legais. Vale salientar que suas áreas de roçado estão localizadas à margem da BR 230, importante rodovia de integração no sul do Amazonas, com potencial para permitir o escoamento de produção local. A Figura 03 faz referência ao momento de consulta à uma unidade familiar residente na vila, onde foram registradas informações como tipo de produção agrícola, número de dependentes, entre outros, as quais serviram para atualizar um diagnóstico socioeconômico da região.

Em momento posterior ao diagnóstico socioeconômico foi realizada uma oficina participativa para apresentação dos resultados do cadastro e nessa oportunidade foram mapeadas as áreas de uso por meio de sua localização utilizando mapas, onde as famílias auxiliavam na localização de seus atuais roçados (2016 e 2017) e a quantidade de hectares abertos (Figura 4).

Figura 4: Oficina participativa para elaborar um plano de ordenamento do uso e ocupação do solo.

Registra-se que alguns dos moradores já haviam sido multados pela abertura de florestas no interior do Parque. Portanto, a proposta de ordenamento elaborada com a participação das famílias oportunizou novas áreas de uso devidamente autorizadas pelo ICMBio e adensadas apenas no interior da Floresta Balata Tufari. Assim, as famílias poderão receber futuramente autorizações formais, planejar projetos produtivos, acessar cadastros de extensão e fomento, e acessar políticas públicas que apoiam o extrativismo e agricultura familiar, atendendo aos objetivos desta categoria de unidade de conservação.

Vale salientar que, no interior de uma floresta nacional, não há concessão de propriedades privadas, mas de áreas de uso coletivo ou familiar, e cada família tradicional recebe o direito e garantia formal de usufruir diretamente dos recursos naturais para si e para suas futuras gerações. Durante esta prática foi constatado que a comunidade não se apresentava organizada socialmente por meio de associação ou cooperativa e na ocasião das reuniões realizadas ao longo do projeto de ordenamento territorial foi reforçada a importância de se estabelecer uma organização social para ampliar as possibilidades de acesso às políticas voltadas ao perfil agroextrativista.

Ao logo do projeto, alguns acordos entre ICMBio e as famílias foram firmados. Entre eles destaca-se que foi acordado que as famílias que possuíam roçados no interior do Parque poderiam migrar para a Flona com a anuência do ICMBio – órgão gestor das unidades de conservação federais do Brasil. Após a proposta ser debatida, foi acordado sobre a localização e o tamanho limite em hectares das áreas de uso por unidade familiar, ficando em 3 hectares, correspondente ao tamanho atual de área que os mesmos declararam ter condições de manejar.

Na sequência das oficinas e dos acordos firmados, foram desenvolvidas coletivamente as vistorias nas novas áreas de uso de cada unidade familiar (Figura 5). Este momento foi crucial para a consolidação da proposta, visto que oportunizou aos próprios moradores escolher a localização mais adequada às suas necessidades e a extensão das mesmas.

Figura 5: Vistorias nas novas áreas de uso no interior da Floresta Nacional Balata - Tufari.

Nesse processo de vistorias, foram colhidas coordenadas geográficas para posterior localização e um novo mapa de uso, de modo que cada família recebeu uma autorização direta do ICMBio para promover de modo legalizado a primeira abertura de 1 hectare de floresta para formar o roçado nas novas áreas de uso, agora no interior da Flona e desta formar consolidar sua ocupação. Durante esta oportunidade, e após a constatação que a mandioca era a principal fonte de renda da comunidade, foi planejada uma aproximação com a instituição de extensão rural do Amazonas – IDAM, buscando capacitações focadas na realidade atual da comunidade, e desta intenção resultou a realização do curso de melhoramento da produção de farinha com a adesão das famílias pesquisadas.

Após esta etapa de capacitação, foi possível se pensar em um plano alternativo de geração de renda em SAF, o qual foi construído em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA, representado pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa em Rondônia-NAPRO, com o objetivo de planejar a implantação de sistemas produtivos sustentáveis, além da capacitação dos produtores sobre o manejo de suas novas áreas de uso.

Para isso, foi escolhida uma unidade familiar como referência com o objetivo de analisar a possibilidade de implantação de uma unidade demonstrativa (UD) de sistema agroflorestal (SAF), tendo em vista o interesse manifestado pelo produtor por essa modalidade de plantio. Na efetivação da proposta, inicialmente, foi realizada uma vistoria na área disponível, que está ocupada com plantio de mandioca (instalado no final de 2017 – fruto da reorganização das áreas de uso) e após foi apresentado ao agricultor as alternativas de espécies para o consórcio (sobreposição de espécie): café (Coffeacanephora), açaí nativo (Euterpe precatoria), açaí touceira (Euterpe oleracea), andiroba (Carapaguianensis), cacau (Theobromacacao) e cupuaçu (Theobromagrandiflorum). Entretanto, o responsável ela unidade familiar demostrou interesse apenas em café, cacau e açaí nativo.

Além disso, foi proposta a incorporação de plantas leguminosas, uma vez que elas têm a propriedade de melhorar o teor de matéria orgânica e de aumentar a capacidade no aporte de nitrogênio, através de simbiose. Essa prática tem o propósito de prolongar a vida do solo, mostrando que é possível cultivar por mais de um ano em uma mesma área, manejo que os produtores locais desconfiam, o que leva a comunidade local a utilizar a área por um ano depois desmatar outra nova.

A área onde foi instalada a UD tem 0,8 ha (100 x 80m) e está, atualmente, ocupada com mandioca, que deverá ser colhida a partir do mês de junho de 2018, conforme informou o proprietário. A mandioca estava muito bem desenvolvida ainda em 2017 (Figura 6).

Na ocasião das vistorias foram definidas as coordenadas geográficas de três áreas de uso, cujos responsáveis poderão vir a aderir ao plano de instalação de UDs no futuro. As demais famílias foram consultadas se havia interesse em solicitar mudas para implantação de plantios na modalidade de SAF. Porém, houve adesão de apenas mais uma, a qual solicitou 150 mudas de banana comprida (Musa paradisíaca) para enriquecer sua área de roçado.

Figura 6: Área de mandioca onde será implantada a Unidade Demonstrativa de SAF.

Para facilitar o entendimento das famílias na ocasião do preparo da área e realização do plantio, foi elaborado um croqui com a distribuição espacial das plantas de acordo com as espécies a serem cultivadas pela unidade familiar (Figura 07).

Figura 7: Croqui com a distribuição espacial das plantas da unidade demonstrativa.

Conclusão

A partir dos resultados alcançados, ao longo de dois anos de ações, pode-se inferir que a organização territorial tem um papel essencial como meio de consolidar as bases para um planejamento socioambiental mais eficiente, em longo prazo, e estabelecer vínculo entre os gestores ambientais e a comunidade tradicional.

Além disso, foi evidenciada a importância de um reconhecimento realista acerca da legislação que permeia a criação e os distintos objetivos das unidades de conservação e da realidade socioeconômicas das famílias tradicionais sobrepostas a essas unidades, tanto para gestão do território como para estabelecer e fortalecer o vínculo com a comunidade. Dessa forma, é possível contribuir para a melhoria das condições de produção e reprodução socioeconômica e cultural da comunidade, bem como construir relações de confiança, tornando os moradores tradicionais aliados dos gestores ambientais na proteção das unidades de conservação.

Além disso, a gradativa consolidação das novas áreas de uso das famílias tende a oportunizar o desenvolvimento produtivo de famílias tradicionais e torna-se uma garantia efetiva de seus direitos de uso.

Por fim, destaca-se que trabalhar a diversificação de produção e renda em comunidades tradicionais, na perspectiva da educação ambiental, demanda tempo e necessita de acompanhamento contínuo, bem como de sensibilidade para compreender que mudar hábitos pode ser um longo processo. Nesse sentido, de um universo de cinco famílias de agroextrativistas, apenas uma demonstrou apresentar as condições favoráveis para instalação do experimento em SAF em dois anos de desenvolvimento das ações. Essa única família atuará como unidade modelo para ações educativas das demais famílias, podendo futuramente motivar as demais e reproduzir os conhecimentos e a experiência.

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