POR UMA EDUCAÇÃO QUE PREPARE PARA A VIDA

 Fabio José Dantas de Melo
Ambientalista

O processo educativo é algo que deve preparar o indivíduo para a Vida nas realidades em que ela se desenrola. Assim, pouca ou quase nenhuma serventia tem um estudo extenso sobre a morfologia dos vegetais, as fórmulas químicas das reações que ocorrem em nível microscópico etc, se o emprego daquela planta em situações de saúde ou alimentação, se o cultivo dele combinado a outras plantas favorece o ecossistema local e tantas outras questões cuja aplicação importam diretamente para a vida do dia a dia.

Nesse sentido, a educação praticada pelas comunidades tradicionais tem muito mais valia, pois vai preparando a criança e o jovem (num ritmo natural) para lidarem com os problemas cotidianos, para ocuparem o espaço que lhes é devido na coletividade e para prezarem a coesão, a cooperação, a boa convivência grupal. O interessante é como se desenvolve essa educação, os métodos empregados pelos anciãos (que, nestas sociedades, possuem papel destacado e não são “encostados” como nas sociedades ditas desenvolvidas) e a eficácia deste “treinamento”.

Os aborígenes australianos são considerados como a cultura mais antiga do mundo. Estudos de genética de populações comprovam que os australianos nativos são descendentes dos primeiros humanos modernos a migrar para fora da África, isso por volta de 70 mil anos. Da mesma forma que outros contingentes indígenas em diferentes partes do mundo, os aborígenes possuíam – antes do processo colonizatório – entre 250 a 300 línguas faladas (com aproximadamente 600 dialetos), o que se tem atualmente em uso por comunidades é algo menos de 200 línguas, sem falar nas que estão em processo de morte de língua. Destaco a questão da língua, pois um traço característico das sociedades tribais é sua tradição oral, até porque seus sistemas linguísticos são ágrafos, ou seja, desprovidos de um sistema de escrita.

Assim, toda transmissão de mitos, ritos, experiências, técnicas se dá pela língua falada, cujo ensino desde a infância se dá pela escuta e pela prática (danças, encenações, caçadas…) sem qualquer formalidade de espaços/tempos de aprendizagem, sem abstrações/ teorizações e sem castigos. Trata-se de uma autêntica educação holística, que busca transmitir aos “educandos” a interdependência dos seres vivos, o respeito pela terra e o uso equilibrado dos recursos.

Figura 1 – Adultos conduzindo crianças numa caminhada de conhecimento. Fonte: Internet.

A educação proporcionada pelos anciãos inclui jornadas no território selvagem a fim de ensinar conhecimentos práticos de como obter alimentos, como acender fogueiras, escuta das histórias antigas (entre elas os mitos e as lendas da tribo), o que conduzirá a um teste final (não realizado em uma mesa, com tempo cronometrado em relógio e cuja finalidade é fazer uma pontuação que o enquadre numa escala de desempenho): o walkabout. “Na cultura aborígine, a caminhada australiana já foi o último rito de passagem. Os meninos aborígenes, ao chegarem à adolescência, embarcam em uma jornada de autodescoberta aventurando-se no deserto. Eles vivem da terra por até seis meses, passando por uma transição espiritual para a maturidade” 1(destaques meus). Como ensina Aranha (2006), na seção dedicada à educação difusa, da qual o ensino aborígene é um exemplo, “tanto nas tribos nômades como naquelas que já se sedentarizaram, para se ocupar com a caça, a pesca, o pastoreio ou a agricultura, as crianças aprendem ‘para a vida e por meio da vida’, sem que ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de ensinar”(p. 34).

É um ensino cuja única condição material exigida é que o território nativo (sagrado para eles) esteja preservado a fim de que toda sua potencialidade (em recursos animais, vegetais, nas marcas deixadas pelos ancestrais em suas rochas, no valor próprio de uma montanha…), sua vitalidade, permita ao iniciando extrair dela os ensinamentos para sua subsistência e formação. E numa referência ao trabalho do antropólogo e etnólogo Lévi-Strauss intitulado O Pensamento Selvagem, em que descreve a capacidade de retenção de nomes e usos que os “selvagens” tem do universo de plantas de seu território, sabendo inclusive localizá-las com precisão no terreno, é de se pensar que o método de formação de crianças e jovens em comunidades assim seja muito mais benéfico para o desenvolvimento de certas funções cerebrais como a memória, a localização espacial e outras, sem falar na parte sensorial e psicomotora. Ou seja, é uma educação integral stricto sensu.

Figura 2 – Capa do Livro “O Pensamento Selvagem”

Daí a importância do movimento de “desemparedamento das escolas”, das Forest Schools, da Educação experiencial ao ar livre entre outras e, sobretudo, da Educação Ambiental como componente curricular (estabelecido por lei2) imprescindível ao pleno desenvolvimento dos educandos. Uma proposta educativa, sob qualquer prisma, não será integradora se não promover experiências – ao longo do percurso escolar – que levem os estudantes a se (re)conectarem com o mundo natural com o qual interagem constantemente, alcancem a compreensão da Teia da Vida, e isso não se dá por via de um ensino meramente intelectivo e por manuais (livros didáticos). Como afirmam os Huni Kuin (como se autodenominam os Caxinauás) “sua cabeça pensa onde seus pés pisam”. Precisamos que nossas crianças e nossos jovens toquem o solo das Matas, do Cerrado, da Caatinga… e deixar a magia da verdadeira educação acontecer.

1 Disponível em https://www.swaindestinations.com/blog/discover-the-real-australia-on-walkabout/. Acessado em 25 de fevereiro de 2021.

2 Como determina a Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999, conhecida como Política Nacional de Educação Ambiental.



Referências Bibliográficas


ARANHA, Maria Lucia de Arruda. História da Educação. 2ª ed., São Paulo: Moderna, 2006.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962.



Fonte: Movimento Roessler

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