A GESTÃO DE DESASTRES AMBIENTAIS NA SOCIEDADE DE RISCOS

Daniel de Barros Ardito1

1Mestrando em Defesa e Segurança Civil pela Universidade Federal Fluminense; dbardito@gmail.com



Resumo:

O conceito de sociedade de risco desenvolvido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck mostra-se essencial para o entendimento dos desastres ambientais, assim como para o seu processo de gerenciamento. A análise bibliográfica empreendida tem como objetivo refletir sobre essa relação, demonstrando que há um caminho para uma gestão mais eficiente dos desastres ambientais.

Palavras chave: desastre ambiental – sociedade de riscos

Abstract:

The concept of risk society developed by the German sociologist Ulrich Beck proves to be essential for the understanding of environmental disasters, as well as for its management process. The bibliographic analysis undertaken aims to reflect on this relation, demonstrating that there is a way for a more efficient management of environmental disasters.

Key words: environmental disaster – risk society

Introdução

A reboque de todas as facilidades e modernidades que compõem o estilo de vida atual temos uma infinidade de riscos que são autoproduzidos e contam com consequências que não respeitam demarcações legais ou fronteiras. Vivemos segundo Ulrich Beck em uma sociedade de riscos, onde um grande colapso pode se romper a qualquer instante, tragando dezenas, centenas ou milhares de vidas e comprometendo o meio ambiente.

Dentro do contexto supracitado, entender o conceito de sociedade de risco torna-se uma etapa altamente recomendável para a compreensão dos desastres ambientais, assim como para sua efetiva e eficaz gestão, seja no âmbito preventivo ou no processo de contingenciamento.

A sociedade de riscos

Mais do que em qualquer outro momento de implosão da valoração de tecnologias e extremados modos de produzir, vivemos hoje em sociedade permeada de riscos. Embora caiba a ressalva de que, ao longo da jornada humana na Terra, os indivíduos enfrentaram muitos riscos, até mesmo contextualmente compreensíveis, se valorizarmos o pressuposto da fragilidade humana frente à natureza e às outras espécies, no início de sua evolução. No entanto, no atual contexto, além de enfrentarmos os riscos impostos pela natureza e pelas relações humanas, também nos surpreendemos com os riscos oriundos do nosso modelo de desenvolvimento de sociedade. Inclusive, riscos que são produzidos ao mesmo tempo em que produzimos soluções para satisfazer ao nosso estilo de vida. Essas assertivas são reivindicadas por Beck (2010), ao fundamentar reconhecido investimento interpretativo sobre os fenômenos em jogo.

Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com frequência semelhante por fora, fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior. (Beck, 2010: 26)

Nossos hábitos alimentares, o ar que respiramos, o local onde moramos ou que trabalhamos, as formas pelas quais nos deslocamos, todos são alguns dos inúmeros exemplos de rotinas, mais do que nunca, carregadas de riscos autoproduzidos com e pelo nosso desenvolvimento. Um exemplo clássico para entendermos esse processo de autoprodução de riscos é a usina nuclear. Ao mesmo tempo em que seu desenvolvimento se deu para atender à demanda energética, correspondendo a alternativa às fontes de energia existentes – visto que o planeta, cada vez mais povoado, demandava maior consumo de energia, a sua instalação e seu desenvolvimento trazem em seu bojo uma série de riscos locais e globais, tal como no caso da radiação que não respeita fronteiras. Tais condicionamentos são bem representados pelo acidente ocorrido em Chernobyl, em 26 de abril de 1986. A usina existia para atender anseios da sociedade e melhorar a qualidade de vida da população, abastecendo inúmeras residências com energia elétrica. No entanto, por uma séria de falhas, ela veio a colapsar, deixando um rastro de destruição e de mortes que até hoje tem consequências.

Outra característica inegável de nossos tempos é a interconectividade global, decorrente de longo processo iniciado com a expansão marítima-comercial europeia, processo que alcançou seu ápice nas formas de estruturação da globalização do capitalismo moderno. Esse processo criou uma crescente interdependência de economias e sociedades ao redor do mundo. Essa interdependência, evidentemente, não é uniforme, justa e igualitária entre as nações, mas está globalmente presente. Alguns países, notadamente, são mais beneficiados do que outros nessa relação, tanto por recursos oferecidos como por seus efeitos deletérios.

As duas características supracitadas, autoprodução dos riscos e interconectividade global, compõem sinteticamente o que o sociólogo alemão Ulrich Beck designa como sociedade de risco: sociedade que produz riscos de alcance global; sociedade rodeada de incertezas em relação à sua segurança; sociedade onde a ambivalência é traço marcante.

Na sociedade de risco, as certezas, diferentemente do que possamos imaginar, têm a efemeridade como característica, além de serem rodeadas de centenas de incertezas relacionadas. Tentar catalogar os riscos desta sociedade é algo impossível, visto que eles têm sua origem relacionada a uma infinidade de processos e eventos em interação, alterando-se, incessantemente, dependentes de encadeamentos de interações, nem sempre lineares.

A sociedade de risco é paradoxal. Ao mesmo tempo em que a modernidade e o avanço tecnológico proporcionaram à boa parte da população global, uma vida mais confortável, elas também desenvolveram uma gama de riscos a que estamos expostos direta e indiretamente. Isso sem contar os inúmeros riscos desconhecidos e incalculáveis no presente, mas que ameaçam se concretizar no futuro. Todavia, vale ressaltar, ela também despreza uma outra parcela da população, não permitindo que essa possa desfrutar dos benefícios da modernidade, salvo efeitos decorrentes da relegação e privilegiamento dos impactos dos riscos, como bem enfatiza Beck:

Na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez, sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos. (Beck, 2010: 23)

Embora os riscos tenham um alcance global no contexto da sociedade de risco, isso não significa que os riscos e suas consequências sejam distribuídos igualmente em todos os lugares e grupos sociais. Países e pessoas pobres sofrem muito mais com essa desigual distribuição dos riscos e suas consequências, uma vez que detêm menores condições de enfrentá-los, seja nas esferas da prevenção ou da mitigação ou de intervenção nos modos de concepção e legitimidade, conforme Beck nos apresenta:

A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como as riquezas, ao esquema de classes – mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima, os riscos embaixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a sociedade de classes. À insuficiência em termos de abastecimento soma-se a insuficiência em termos de segurança e uma profusão de riscos que precisam ser evitados. Em face disto, os ricos (em termos de renda, poder, educação) podem comprar segurança e liberdade em relação ao risco. (Beck, 2010: 41)

Além disso, a notória concentração de riscos nos países pobres evidencia a intencional transferência de indústrias de risco dos países ricos para esses países, acentuando a desigualdade global da distribuição de riscos. Essa transferência se dá, muitas vezes, pela desconsiderada tendência naturalizante de aproximação de mão de obra barata, e legislação trabalhista e ambiental frágeis frente às indústrias de risco. Ou como Beck (2010) sugere: existe uma força de atração entre pobreza extrema e riscos extremos.

Outro sociólogo contemporâneo de Beck, e que produziu uma teoria convergente aos pressupostos preconizados por ele é o britânico Anthony Giddens. No livro As consequências da Modernidade, ele define delineamentos do que seria o perfil do risco da modernidade, considerando sete aspectos:



  1. Globalização do risco no sentido de intensidade: por exemplo, a guerra nuclear pode ameaçar a sobrevivência da humanidade.

  2. Globalização do risco no sentido da expansão da quantidade de eventos contingentes que afetam todos ou ao menos grande quantidade de pessoas no planeta: por exemplo, mudanças na divisão do trabalho.

  3. Risco derivado do meio ambiente criado, ou natureza socializada: a infusão de conhecimento humano no meio ambiente material.

  4. O desenvolvimento de riscos ambientais institucionalizados afetando as possibilidades de vida de milhões: por exemplo, mercados de investimento.

  5. Consciência do risco como risco: as “lacunas do conhecimento” nos riscos não podem ser convertidas em “certezas” pelo conhecimento religioso ou mágico.

  6. A consciência bem distribuída do risco: muitos dos perigos que enfrentamos coletivamente são conhecidos pelo grande público.

  7. Consciência das limitações da perícia: nenhum sistema perito pode ser inteiramente perito em termos das consequências da adoção de princípios peritos. (Giddens, 1991:138)



Entender o atual contexto marcado pela complexidade das relações e suas interconectividades, assim como a tônica da autoprodução do risco, ou seja, entender que vivemos em sociedade de risco, é indispensável para o planejamento e para a gestão de processos de prevenção de riscos de desastres ambientais. Imaginar que lidar com este tipo de risco é simplesmente entender o risco isolado, sem considerar toda a conectividade, impactos diretos e indiretos, anseios de partes interessadas, particularidades relacionadas ao estilo de vida adotado por eventuais atingidos, direta e indiretamente, assim como a cadeia de impactos ao meio ambiente, é simplificar de forma equivocada e, por que não, tendenciosa, um problema que precisa ser tratado de forma holística, envolvendo todas as partes interessadas na busca da minimização máxima dos riscos e suas consequências. Tal fato deve ser considerado, mesmo que isso traga impactos diretos sobre a lucratividade e a viabilidade do negócio da organização geradora do risco.

Por diversas vezes, os riscos de desastres tecnológicos são classificados unicamente em termos técnicos, facilitando o que podemos chamar de um pseudogerenciamento parcial de riscos por parte dos responsáveis pela própria geração. Ignorando assim completamente e sob diversas relações, as interconectadas consequências de seus impactos sobre as pessoas e o meio ambiente atingidos pela potencial concretização desse risco.

O entendimento da sociedade de risco não deve ser, portanto, o do conformismo em relação à incerteza, mas principalmente, na perspectiva da construção deste texto, o entendimento da necessidade do enfrentamento da injusta distribuição dos riscos. Enquanto organizações se beneficiam deste risco, os potenciais atingidos que, muitas vezes, desconhecem a gravidade dos riscos a que estão expostos, só têm a possibilidade de colher os efeitos colaterais desse lucro.

Os sistemas peritos

Tão importante quanto a teoria de sociedade de risco apresentada por Ulrich Beck, ressalta-se a teoria da modernidade reflexiva de Anthony Giddens, relevante principalmente pelo conceito dos sistemas peritos.

Antes de discorrer sobre os sistemas peritos e sua importância no processo de gestão de risco de desastres ambientais, é fundamental entender o conceito de modernidade que, segundo Giddens, possibilita a construção da teoria. Assim como Beck, Giddens entende que o tempo que vivemos é marcado pela evolução que, se traz conforto e solução para problemas, adstritamente também cria novos riscos.

A modernidade, como qualquer um que vive no final do século XX pode ver, é um fenômeno de dois gumes. O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno. Mas a modernidade tem também um lado sombrio, que se tornou muito aparente no século atual. (Giddens, 1991: 17)

Outra característica marcante da modernidade, tal como definida por Giddens, é o desencaixe das relações sociais. Em outras palavras, antes da modernidade a nossa relação com espaço e tempo era completamente acoplada. Estávamos presos aos ciclos da natureza, havendo um respeito aos tempos biológicos e naturais, da mesma forma que as tradições pautavam nossas relações sociais. Com o advento da modernidade, afastamo-nos desses tipos de relação. Segundo Giddens (1991), as relações sociais se deslocaram dos contextos locais de interação mediante extensões indefinidas de tempo-espaço.

Por esta perspectiva interpretativa, dois tipos de mecanismos de desencaixe tem destaque: as fichas simbólicas e os sistemas peritos. As fichas simbólicas são, segundo Giddens (1991), “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”. Um exemplo de fichas simbólicas é o dinheiro.

Já os sistemas peritos são definidos como:

Por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. A maioria das pessoas leigas consulta “profissionais” – advogados, arquitetos, médicos etc. – apenas de modo periódico ou irregular. Mas os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. (Giddens, 1991: 38)

Os sistemas peritos tem relação direta com a confiança, uma vez que não podemos ser especialistas em tudo e nem dispomos de tempo suficiente para alcançar conhecimento sobre tudo que nos cerca. Temos invariavelmente que depositar nossa confiança em peritos. Isso se aplica a quase tudo em nossa vida moderna, das rotinas mais triviais como, por exemplo: viver em um prédio confiando que ele não vá colapsar; ou então quando dirigimos eventualmente nossos carros acreditando que, quando o freio for acionado, ele fará o carro parar; e até exemplos mais complexos como a confiança que um avião não vá cair em pleno voo ou que uma usina nuclear não terá seu reator destruído por uma falha sistêmica, espalhando radiação pelo planeta.

Onde existem lacunas de conhecimento, invariavelmente, há confiança; e essa confiança não é conquistada por um encontro direto com o perito que atesta a segurança de um determinado sistema. Confiamos no sistema independente de conhecermos as pessoas nele envolvidas. A essa modalidade de interação, Giddens (1991:92) chama de “compromissos sem rosto”. No entanto, há também a possibilidade de termos um “compromisso com rosto”. Isso acontece pelo que ele define como pontos de acesso. Ter um compromisso com rosto não é necessariamente falar com um perito, mas ter um contato com alguém que representa o sistema perito.

Os pontos de acesso são fundamentais para a confiança nos sistemas peritos que, segundo Giddens (1991:100), “são pontos de conexão entre indivíduos ou coletividades leigas e os representantes de sistemas abstratos. São lugares de vulnerabilidade para os sistemas abstratos, mas também junções nas quais a confiança pode ser mantida ou reforçada”.

Os sistemas peritos assumem os riscos para os leigos, mas nem sempre é evidente e possível para o leigo identificar a real proporção deste risco, seja em termos de probabilidade ou impacto. Outras vezes os sistemas peritos nem transparecem a real existência de um determinado risco, seja pela necessidade de camuflar para não causar pânico e inviabilizar economicamente um negócio, ou até mesmo pelo desconhecimento por parte dos próprios peritos quanto a determinado risco que ainda é desconhecido.

Os peritos frequentemente assumem riscos “a serviço” dos clientes leigos, embora escondam ou camuflem a verdadeira natureza desses riscos, ou mesmo o fato de existirem riscos. Mais danoso que a descoberta por parte do leigo deste tipo de ocultamento é a circunstância em que a plena extensão de um determinado conjunto de perigos e dos riscos a eles associados não é percebida pelos peritos. (Giddens, 1991: 144)

Portanto, os desastres ambientais decorrentes de falhas humanas podem ser entendidos como a concretização da falha de um sistema perito. Essa falha se dá pela materialização do risco que era gerenciado. Quando conhecido pelo sistema, ele se manifesta de duas formas básicas: defeito no projeto ou falha do operador.

Esses efeitos compõem o que Giddens chama de consequências inesperadas.

Não importa o quão bem um sistema é projetado nem o quão eficiente são seus operadores, as consequências de sua introdução e funcionamento, no contexto da operação de outros sistemas e da atividade humana em geral, não podem ser inteiramente previstas. Uma razão para isto é a complexidade dos sistemas e ações que constituem a sociedade. (Giddens, 1991: 167)

O conceito que define um sistema perito e suas inerentes deficiências, em razão da impossibilidade de prever todos os potenciais riscos relacionados a um defeito no projeto ou então à falha de um operador, torna evidente a necessidade de uma gestão independente e participativa de riscos de desastre ambiental. Não por uma estrutura interna, atrelada ao processo de atenuação característico do sistema perito que tem por interesse primário, perpetuar um negócio em detrimento das reais possibilidades de risco; e principalmente das reais consequências que esses riscos podem ter sobre as pessoas a ele expostas. Gerir o risco ambiental produzido por meio do desenvolvimento de processos econômicos de negócio implica claro conflito de interesses, principalmente em países onde há subterfúgios legais disponíveis, assim como a proteção que a pessoa jurídica, que não é uma pessoa de fato, fornece à pessoa física que aceita o risco em nome da coletividade, todavia exposta as consequências de sua concretização.

Considerações finais

A principal proposta deste artigo foi trazer à luz o conceito de sociedade riscos e convergentemente o conceito de sistemas peritos, tentando demonstrar a importância do entendimento desses conceitos para a melhor compreensão dos desastres ambientais, assim como para os processos de gestão de desastres.

Face a tudo que foi exposto, concebemos que não há gestão de riscos de desastre ambiental capaz de contemplar todas as incertezas envolvidas nos processos desenvolvidos pela sociedade. No entanto, a busca por um processo que priorize a vida e a preservação do meio ambiente, antes de qualquer outro interesse, é possível e viável.



Bibliografia

BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo. Editora 34, 2010.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo. Editora Unesp, 1991.