RIMAS POÉTICO-VISUAIS DA MEMÓRIA E SUAS INTIMAÇÕES
Cláudia Mariza Mattos Brandãoi
Resumo: Neste texto proponho um pensar atento acerca da instituição Escola e dos processos educativos, tal qual têm sido pautados ao longo da história, refletindo sobre as possibilidades dos fazeres artísticos na instauração deste processo. Para tanto, eu utilizo produções artísticas autorais, elaboradas com fotografias de arquivo e intervenções têxteis, resultantes de exercícios cognitivos da memória crítica acerca do vivido.
Na minha infância, manusear álbuns de fotografia era um ritual corriqueiro, quase que sagrado. Eles sempre estiveram ao meu alcance e me permitiram conhecer visualmente fragmentos da história familiar e dar asas à imaginação. Os álbuns eram organizados pela minha mãe, e neles residem muitas imagens de sua própria história. Vê-los, quase que diariamente, me permitiu conhecer seus amigos, eventos da sua adolescência e da sua relação com meu pai, que iniciou quando ambos tinham 18 anos, perdurando por quase 60 anos. Ou seja, as minhas raízes sociológicas e históricas estão muito bem documentadas nesses verdadeiros memoriais.
São álbuns com capas de madeira forradas com tecido, adornados com borlas de fio de seda e tiras de couro. As páginas são em papel mata-borrão verde ou cinza, separadas por uma folha de papel vegetal. Neles estão organizados registros de casamentos, nascimentos, aniversários e batizados familiares, sem falar dos eventos sociais e políticos frequentados pela família. Os álbuns ainda existem e são muitos. E folheá-los nesse momento de isolamento social, de realidade pandêmica, se tornou uma prática constante. Através deles consigo rever meus entes queridos, pais, tios, primos e amigos, todos preservados em sais de prata. As fotos que eles abrigam são como relicários e,mais do que nunca, motivadores/propulsores dos meus caminhos pessoais e profissionais.
Rever essas fotos reafirma em mim a certeza de que as imagens fotográficas, entendidas como artefatos culturais, são objetos diversificados com ampla abrangência social, que expandem os sentidos do que vemos e dos acontecimentos. Trata-se, portanto, de atualizar o passado a cada mirada, fazendo com que elas recebam o status de “recordações referências”. E nas palavras de Marie-Christine Josso (2004, p.14), “falar de recordações-referências é dizer, de imediato, que elas são simbólicas do que o autor compreende como elementos constitutivos da sua formação”.
A vivência inédita de uma pandemia e do consequente afastamento social, provavelmente seja a marca mais pregnante das sociedades contemporâneas. Nesse contexto, mais do que em qualquer outro período da história, as imagens fotográficas assumem uma importância e centralidade diferenciadas no nosso cotidiano, sejam elas físicas ou digitais. Quando Gilbert Durand (1998), ainda no século XX, se referiu a uma “civilização da imagem”, não imaginava que chegaríamos a um estado de tamanho consumo de imagens como o atual. Elas já estavam plenamente integradas em praticamente todas as esferas da vida em sociedade, porém, considerando o ambiente peculiar, fica evidente a criação e acumulação de conhecimentos que produzem sobre o mundo em geral, visibilizando um importante capital simbólico e atuando como elemento constitutivo da formação humana num amplo sentido.
Num piscar de olhos ficamos confinados às nossas casas, que passou a ser o nosso espaço vivencial cotidiano, afetando a nossa percepção sobre ele e estimulando exercícios introspectivos. Hoje, revirando os meus álbuns, fica mais fácil identificar na criança sempre envolvida com lápis, pincéis, tintas, apresentações teatrais e musicais, a representação da engenheira, formada e reformada pela Arte, que desde muito cedo brincava de “ser professora”.
Sem exemplos anteriores do predomínio de interações virtuais, habitamos uma realidade paralela ao mundo lá fora, assaz dinâmica, efêmera e vaga, um mundo que, assim “como o dos animais que formam enxames, muito efêmeros e instáveis” (HAN, 2018, p.30), tem uma volatilidade por demais acentuada. O teórico contemporâneo Byung-ChulHan propõe um antídoto para essa situação, o de substituirmos o ritmo acelerado da realidade virtual pela observação atenta, calma e respeitosa, sobre os detalhes do entorno. E esse é um conselho que procuro não esquecer nos últimos 16 meses.
Na tentativa de manter a calma, a concentração e a capacidade de sonhar com um devir de (trans)formações e de manutenção da vida sobre o planeta, recorri às imagens de arquivo e aos fazeres artísticos. Sistematicamente eu tenho realizado exercícios poéticos que antes eram pontuais, muitas vezes esquecidos dentro de alguma caixa.
Ver, selecionar, cortar, colar e bordar fotografias tem sido uma prática pandêmica recorrente, tornando próximo o que originalmente está distanteii. São várias caixas com fotos que “sobraram” dos álbuns montados, pilhas de revistas antigas, papéis, linhas, fitas e muitos outros materiais amealhados ao longo do tempo. A minha “brincadeira” poética atual tem sido reuni-los, atualizando memórias, combinando e interferindo nas imagens, sejam elas relativas à vida familiar ou profissional. E faço isso, mesmo que às vezes inconscientemente, elaborando crônicas visuais narrativas acerca do vivido, resultantes de exercícios poéticos e autobiográficos, que, além de oportunizarem análises mais profundas sobre o passado, me (re)posicionam no trajeto antropológico e me estimulam a revisitar/revisar utopias.
Nessas buscas aleatórias, eu encontrei registros das minhas práticas de estágio, realizadas há quase 30 anos, quando cursava a licenciatura em Artes Visuais. Olhando as imagens, sorri em retribuição à felicidade da garotada ali estampada. Indaguei-me sobre os caminhos que teriam trilhado, mas, principalmente, refleti sobre os meus sonhos e expectativas quanto à vida profissional naquele momento. Confesso que não lembrava desse cenário, embora tenha realizado o estágio na escola onde cursei o ensino médio.
As paredes desgastadas pelo tempo, as manchas de umidade e as marcas identitárias que se multiplicavam sobre elas me fizeram reviver sonhos e frustrações. E logo lembrei do livro de Andrés Zarankin (2002), “Paredes que Domesticam: Arqueologia da Arquitetura Escolar Capitalista”. Na obra, o autor discute com maestria sobre a arquitetura como uma estratégia de poder e disciplina, que molda o habitus. Creio que este é um tema pertinente para esta edição da revista, norteada pela ideia “Educação Ambiental para aprender com a natureza”iii, pois ela pressupõe a necessária retirada de paredes/separações entre nós, os outros e o mundo, urbano e natural, sempre destacando as contribuições dos fazeres artísticos para tais discussões.
Figura 1: Cláudia Brandão, Série Moradas - #1, fotografia de arquivo com intervenção têxtil, 2021.
Figura 2: Cláudia Brandão, Série Moradas - #2, fotografia de arquivo com intervenção têxtil, 2021.
Moradas é uma série composta por oito fotografias de arquivo com intervenções têxteis (Figuras 1 e 2), resultante das minhas inquietações frente a uma situação que pouco se alterou nas últimas décadas. Como afirma Zarankin (2002, p. 48), “A partir de meados de 1800, surgem, com força, políticas destinadas a mudar, organizar, higienizar e disciplinar os espaços urbanos”, sendo que neste contexto “a escola pública capitalista é pensada como uma instituição capaz de domesticar as massas proletárias e ao mesmo tempo capacitá-las para o trabalho industrial”, uma massa informe, emblematicamente caracterizada pela banda Pink Floyd, no vídeoclip AnotherBrick in the Walliv, cujo refrão alerta:
Nós não precisamos de nenhuma educação
Nós não precisamos de controle mental
Nada de sarcasmo na sala de aula
Professores, deixem as crianças em paz
Ei! Professores! Deixem as crianças em paz!
Em suma,é apenas mais um tijolo na parede
Em suma, tu és apenas mais um tijolo na paredev
Recompondo imagens, memórias e expectativas me deparei novamente com o objetivo inicial das instituições escolares, o de “criar um mundo artificial em todos os seus aspectos, o que assegura um controle absoluto” (ZARANKIN, 2002, p. 54), ou seja, tijolos para a construção de sociedades pré-moldadas. Portanto, foquei-me na recriação poética de um lugar muitas vezes operacionalizado pelas travas das negações, no qual é contido o desabrochar da vida em plenitude e é consentido silenciar sobre os apagamentos. E assim, eu me propus a desenvolver discursos não-verbais enfatizando a necessidade de romper-se com processos educativos voltados aos caprichos do poder, negligenciando as singularidades pessoais que nos constituem seres unos.
Pelas imagens apresentadas é possível comprovar que as minhas aulas não seguiam/seguem o modelo internalizado por muitos. A sala está desarrumada, todos sorriem e brincam (e pintam, desenham, performam), e não se constrangem ao serem fotografados abraçados, sentados uns no colo dos outros, pura energia juvenil, embora saiba que muitas pessoas possam interpretar isso com reprovação maldosa.
Um dos sentidos etimológicos da palavra Estágio é o de residência, morada, e essa foi a minha inspiração ao nomear a série. Moradas resulta do trabalho manual impulsionando a atividade cognitiva, da reflexão crítica sobre o vivido, acrescida das expectativas por um devir coletivo no qual a escola seja uma ativa conectora entre as realidades intra e extramuros.
Pensar/criar como desconstrução: esse é um possível lema pleno de riscos, é um limite e ausência do mesmo, nos impelindo a pensar nossas próprias construções como possíveis ficções e/ou exercícios discursivos com seus momentos precisos de morte e nascimento. (PIRES, 2021, p. 67).
Assim considerando, o objetivo dos jogos perceptivos propostos pelas intervenções têxteis nas imagens, pelas formas de digitais que a “escrita” aleatória assumiu, vai além da elaboração da crônica visual narrativa proposta pelo conjunto. Sem planejamento prévio, elas floresceram do desejo de estabelecer um diálogo visual com as demais pessoas,visando compartilhar inquietações acerca da busca utópica por alteridades indutoras/produtoras de coletividades fecundas. Em síntese, considero que as imagens atuam como mensagens visuais comunicativas de uma intimidade reflexiva, que sonha (e opera) com a elaboração de uma teia coletiva produtora de vida, não só de mercadorias.
Se atualmente muitas vezes somos levados a acreditar estar vivendo numa distopia, o espírito de uma utopia se faz necessário, pois somente ele é capaz de mobilizar corpos e mentes em direção a uma educação pautada na fraternidade, responsabilidade e liberdade como senso coletivo, mirando na pluriversalidade. Ou seja, buscando ultrapassar o cartesianismo ocidental, de pensar a educação somente no formato escola, aprisionada numa moldura geométrica hierarquizada e pautada na passividade dos corpos, urge discutir/problematizar esse modelo de escola, mesmo que o sonho utópico pela plena igualdade de direitos entre todos os elementos que compõem o círculo da vida pareça inatingível. Por mais difícil que possam parecer reformas e revoluções, antes de qualquer movimento elas precisam ser sonhadas, e eu sou uma sonhadora que produz arte.
No emaranhado dos jogos de poder, a Arte emerge assim como uma boia que flutua inadvertidamente por mares revoltos (na atualidade, a produção obsessiva de imagens), sempre pronta a acolher corpos/olhares indagadores. Através dos objetos de arte é possível encontrar tanto o outro como a si mesmo, como subjetividades autônomas organizadoras das percepções sobre o visível. A relação comunicativa posta por estes textos não-verbais/visuais movimenta apreensões sobre o real e suas afecções, na tentativa de estimular reflexões sobre um devir incerto e aparentemente nada alentador.
A suspensão reflexiva - o exercício da contemplação atenta aos detalhes comunicativos das imagens - pode representar o desvelamento do palimpsesto visual que se apresenta aos olhares. Ela também permite o maior entendimento acerca dos acontecimentos, das comunicações simbólicas que se multiplicam no nosso entorno e das possíveis reverberações sobre as imaginações e os imaginários.
Aventa-se, portanto, a importância de refletirmos sobre as imagens, em especial as artísticas, ajuizando o campo de trocas que se estabelece entre a produtora/artista e os espectadores. Cabe salientar, que a participação neste jogo perceptivo/comunicativo evidencia a análise das obras como um “espiar” o mundo através do olhar de outrem, também encaminhando o processo de autoconhecimento. E assim poderemos ampliar o nosso discernimento sobre o mundo ao redor, os impactos da realidade vigente sobre cada uma de nós, e as possibilidades de (trans)formação que surgem das intimações visuais.
Sejam bem-vindas/bem-vindos/bem-vindes aos jogos cognoscíveis propostos por rimas poético-visuais de uma educação estética, seja ela formal, informal ou não-formal!
Referências:
DURAND, G. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, DIFEL, 1998.
HAN, B. C. No Enxame - Perspectivas Do Digital. Rio de Janeiro, RJ: Editora Vozes, 2018.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.
PIRES, Ericson. Tradição Delirante. Cadernos Ultramares. Lisboa, Portugal: Oca. 2021
ZARANKIN, Andrés. Paredes que Domesticam: Arqueologia da Arquitetura Escolar Capitalista. São Paulo: UNICAMP, 2002.
iDoutora em Educação, com pós-doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, do curso Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de PesquisaemFotografia e Educação (UFPel/CNPq) http://www.photographein-pesquisa.com.br/
iiMais exemplares das minhas produções artísticas podem ser encontrados no Instagram, no perfil @clamar.art
iiiPara um maior aprofundamento sobre o tema abordado neste artigo, recomendo o documentário “A Educação Proibida”, disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=ceIuwmpyIX0
ivAnotherBrick in the Wall, “Outro tijolo na Parede”, é uma música que compõe o álbum The Wall, lançado em 1979. Disponívelem: https://www.youtube.com/watch?v=YR5ApYxkU-U
vWe don't need no education
We dont need no thought control
No dark sarcasm in the classroom
Teachers leave them kids alone
Hey! Teachers! Leave them kids alone!
All in all it's just another brick in the wall.
All in all you're just another brick in the wall.