O DESENVOLVIMENTO E AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA SEARA AMBIENTAL



THE DEVELOPMENT AND FUTURE PERSPECTIVES OF PUBLIC CIVIL ACTION IN THE ENVIRONMENTAL SEARA



Daniela Ferreira da Mota1

Mestranda em Direito Ambiental PUC/SP. Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico PUC/MG. Pós-Graduação em Direito Administrativo e Constitucional EPD. daniela.fmota@hotmail.com.



Resumo: O presente estudo teve como objetivo analisar o contexto histórico do surgimento da ação civil pública e o seu desenvolvimento sobretudo na área de meio ambiente para a promoção dos objetivos constitucionais de preservação ambiental para as presentes e futuras gerações. A proposta do trabalho foi utilizar essa análise histórica para desenhar as perspectivas e entraves futuros para o desenvolvimento da ação civil pública em matéria ambiental. Os resultados da pesquisa demonstraram que esse instrumento de tutela coletiva não está paralisado, e desde a sua criação está ganhando mais força e diferentes contornos para lidar com as questões ambientais, indicando que ainda deve sofrer mudanças substanciais em um futuro próximo.

Palavras-chave: ação civil pública – direitos transindividuais – direito ambiental.



Abstract: The present study aimed to analyze the historical context of the advent of public civil action and its development mainly in the environment area for the promotion of constitutional environmental preservation objectives for present and future generations. The proposal of the work was to use the historical analysis to design the future perspectives and obstacles to the development of public civil action in environmental matters. The results of the research showed that this instrument of collective protection is not paralyzed, and since its creation it is gaining more strength and different contours to deal with environmental issues, indicating that substantial changes must still be in progress in the near future.

Keywords: public civil action - transindividual rights – environmental law.



Introdução

Os instrumentos coletivos, criados pelo direito brasileiro para a proteção dos denominados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos têm ganhado, cada vez mais, um contorno estratégico para a discussão de causas e assuntos de natureza transindividual, sendo que a proteção do meio ambiente, presente desde a criação da ação civil pública no direito brasileiro, continua muito interligada ao crescimento e desenvolvimento desse mecanismo jurisdicional de relevante conotação social.

A ação civil pública é um instrumento hoje de inegável importância para a tutela dos direitos transindividuais, entretanto, trata-se, também de um mecanismo de alto impacto e de pressão social, de forma que o que se pretende com o presente estudo é a análise evolutiva desse instrumento de efetividade e proteção dos interesses sociais e, especificamente para a área do meio ambiente, responder a questão sobre quais são as perspectivas futuras da ação civil pública ambiental.

Tem-se como hipótese de pesquisa que a ação civil pública ainda não é um instrumento maduro e plenamente desenvolvido, tratando-se de um mecanismo processual ainda em franca evolução e que ganha relevância crescente para atender a demanda social de proteção do meio ambiente, a exemplo da ampliação do rol de autores aptos à sua proposição, apesar de ser inegavelmente mais utilizada, ainda, pelo Ministério Público, seu primeiro e mais natural legitimado, apesar de diversos autores já apontarem que é provável que a Defensoria Pública trilhe o mesmo caminho na utilização dessa ação processual.

A pesquisa será desenvolvida utilizando-se do método dialético, uma vez que a questão é complexa e deve levar em consideração não somente a análise da legislação, mas o contexto histórico, político e econômico envolvendo a criação e o desenvolvimento da ação civil pública, permitindo uma melhor compreensão do tema (HENRIQUES e MEDEIROS, 2017, p. 42). Além disso, a técnica adotada foi a pesquisa bibliográfica e documental, tendo em vista a vasta doutrina sobre a matéria a ser considerada.

O primeiro capítulo visa a análise, ainda que breve, do surgimento da ideia de interesses transindividuais e contexto envolvendo o meio ambiente e os problemas de natureza desconhecida que demandaram do Estado a sistematização de um instrumento abrangente para lidar com a reparação civil fora da lógica individual, tendo em vista a complexidade da sociedade de massa e das questões que surgiram para apreciação do Judiciário, sendo essa uma tendência experimentada em todo mundo.

O segundo capítulo, tomando como base o contexto dos direitos transindividuais, trata especificamente do surgimento da ação civil pública, a legislação que a precedeu, como ela foi recebida no sistema constitucional, na temática ambiental e na legislação de defesa do consumidor, tratando, na segunda parte, da divisão tripartite que é adotada pelo Brasil dos direitos por ela tutelados e finalizando com a análise dos efeitos erga omnes das sentenças dessas ações, introduzindo o tema final.

Finalmente, tomando-se como base os efeitos das ações civis públicas no ordenamento jurídico, o terceiro e último capítulo dedica-se à análise dos aspectos controvertidos da ação civil pública, em especial, tendo em vista a ampla gama de assuntos que podem ser por ela tratados, os entraves encontrados hoje para a sua ampliação e as perspectivas futuras para o tema.

1 Interesses Transindividuais

A complexidade da sociedade em que se vive e as demandas que dela fazem parte, tradicionalmente, é o que demanda do Direito o surgimento de adaptações, novos mecanismos, legislações e instrumentos para lidar com a realidade que se apresenta, tratando-se o sistema jurídico de uma verdadeira construção histórica e, na tutela dos interesses denominados transindividuais não foi diferente, pois a tutela coletiva no Brasil não ocorreu de forma natural, sobretudo em uma sociedade que sempre pensou o direito de forma individual, para a solução de controvérsias pontuais.

Coube ao direito o papel de regular áreas nunca disciplinadas, em razão do desenvolvimento e processo de transformação social, econômico e tecnológico sem precedentes que passou o mundo e o país no século XX.

Foi o momento após as duas grandes guerras e a Guerra Fria, que evidenciou a possibilidade de destruição da humanidade, de transnacionalização das empresas, de maior uso dos recursos naturais até então fartos e amplamente disponíveis, e do uso intensivo das fontes de energia, causando uma ampla e jamais vista destruição ambiental, afetando principalmente os países menos desenvolvidos, explorando não somente os recursos naturais como também os humanos, e colocando em risco a presente e as futuras gerações, notadamente a partir de acidentes ambientais decorrentes do processo de franca industrialização e verificação de alterações climáticas afetando todo o mundo (GAVRONSKI, 2010, p. 44).

Nesse sentido, é possível entender que a tutela coletiva do direito transindividual representou no país uma verdadeira ruptura da forma tradicional de se buscar uma pretensão, sendo uma verdadeira construção cultural da sociedade para tentar resolver controvérsias novas, que não estavam sendo satisfatoriamente resolvidas no âmbito do processo civil tradicional que é pensado e estruturado para a resolução de controvérsias individuais, de bem menor complexidade e de mais fácil solução, conforme explica Hugo Nigro Mazzilli:

Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática. Mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um acesso coletivo, de movo que a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar decisões contraditórias, como ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo lesado. (MAZZILLI, 2012, p. 52-53)

O surgimento da ação civil pública e de outros instrumentos dentro desse contexto, foi uma verdadeira tentativa de solucionar uma crise que se manifestou de forma mais preocupante na segunda metade do século XX, quando começaram a aparecer esses problemas específicos da sociedade de massa em decorrência do processo de intensa industrialização experimentado em todo o mundo, que foi responsável por desencadear uma série de dificuldades até então desconhecidos e jamais vivenciados.

Na ótica ambiental especificamente, foi esse período no Brasil que marcou a edição de normas de proteção ambiental, demonstrando que o olhar do legislador estava voltado à proteção dessas questões mais complexas, sem, entretanto, estas legislações preverem formas de reparação civil da lesão causada.

Como exemplos das legislações ambientais que surgiram nesse período em específico temos o Estatuto da Terra (1964), Código Florestal (1965), Código de Caça (1967), Código de Pesca (1967), Código de Mineração (1967), dentre outros, sempre focados em normas de proteção, sem previsão específica das formas de reparação e de persecução de danos em juízo (SOUZA, 2013, p. 16).

Essa alteração social de precedentes desconhecidos, que gerou uma verdadeira mudança no perfil dos direitos tutelados extensivamente até então, os individuais, deu lugar ao reconhecimento de outros direitos, vinculados à sociedade de consumo, à economia de massa, à grupos e não somente indivíduos, vistos em um contexto político, social e econômico globalizado, sob a ótica da coletividade, gerando novas categorias de direitos e conjuntos de sujeitos carentes de proteção, como o caso do direito ao meio ambiente e do direitos dos consumidores.

2 A Lei da Ação Civil Pública e o Meio Ambiente

2.1. Breve Contexto Histórico

O processo coletivo no Brasil passou por três ondas renovatórias do acesso à justiça, sendo que na primeira, representada pela assistência judiciária e criação da Defensoria Pública, visou-se o atendimento de pessoas carentes sem recursos para custeio de processos judiciais. A segunda, envolve a ação popular, a ação civil pública e o código de defesa do consumidor, criando os mecanismos de proteção dos interesses difusos, para solucionar a exigência de ajuizamento de milhares de ações individuais para a discussão de pretensões advindas de um único fato, sobrecarregando o Poder Judiciário. A terceira e última, está consagrada na Constituição Federal de 1988 que previu a diretriz de defesa do consumidor, o mandado de segurança coletivo, fez referência expressa à ação civil pública, dando enfoque à efetividade desses instrumentos e da jurisdição como um todo (VINCI JÚNIOR in BRANCO FILHO e outros, 2019, p. 386-387).

O processo civil tradicional não estava voltado para a proteção dos direitos difusos, uma vez que foi criado especialmente para a proteção dos direitos individuais. No Brasil, a Ação Popular, que era prevista constitucionalmente desde 1937 e foi regulada por lei ordinária em 1965, foi o instrumento pioneiro de proteção e tutela dos direitos metaindividuais pelo próprio cidadão, inaugurando a primeira forma de proteção jurisdicional, antes mesmo de haver no ordenamento jurídico a habilitação de entidades expressamente designadas para a proteção estatal de direitos difusos (GOZZOLI et al, 2010, p. 182).

A Ação Popular foi a inauguração desse movimento, que deixava mais evidente a necessidade de proteção estatal e da criação de instrumento específico de tutela de interesses difusos. Na esfera ambiental, a Política Nacional do Meio Ambiente inseriu em 1981 a previsão da competência do Ministério Público da União e dos Estados para propor ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente, sem dispor o mecanismo próprio para que isso fosse feito.

Em um primeiro momento, pensou-se na ação popular para discussão dos interesses coletivos, inclusive na seara ambiental, apesar disso, a previsão legal ainda era pouco efetiva tendo em vista a necessidade de mecanismos processuais específicos para atender de forma mais adequada a persecução dos interesses transindividuais e de forma distinta do que era previsto até então no Código de Processo Civil.

Dessa forma, a Lei nº 7.347/1985, que foi editada na sequência e ficou amplamente conhecida como Lei de Ação Civil Pública, foi para o direito brasileiro um verdadeiro marco de proteção e defesa dos direitos difusos, principalmente em razão de, até então, as demandas coletivas estarem previstas em textos esparsos e ainda de pouca aplicação, sendo que o surgimento da ação civil pública foi a sistematização de um instrumento processual próprio para a defesa judicial desses direitos, especialmente visando a busca pela reparação do dano (FERRARESI, 2009, p. 199-200):

A ação civil pública relativa a direitos difusos foi pensada sobretudo em função do Direito ambiental. A tutela do meio-ambiente era, até então, matéria de competência exclusiva da Administração Pública. Jurisdicionalizou-se essa matéria, permanecendo, porém, sua natureza essencialmente administrativa, podendo-se dizer que as ações relativas a direitos difusos são jurisdicionais apenas pela forma dialética do processo. Seu autor, que, entre nós, é geralmente o Ministério Público, não é um substituto processual. Exerce função pública. (TESHEINER e MILHORANZA, 2015, e-book, p. 766)

Dessa forma, a Lei de Ação Civil pública foi para a tutela coletiva do direito brasileiro a viabilização do instrumento para a satisfação dos interesses difusos que se demandava pela sociedade, e que hoje ganha cada vez mais força para a efetivação desses direitos, sobretudo em razão do processo civil clássico ter sido sistematizado sob a lógica individual, de forma que a ação civil pública pensada justamente sob a lógica contrária, como o instrumento que é hoje, foi fruto de diversas adaptações doutrinárias, jurisprudenciais e da prática processual.

Além disso, pensando-se especificamente na seara ambiental, a Política Nacional de Meio Ambiente e, posteriormente, a Lei de Ação Civil Pública foram fundamentalmente a abertura da esfera judicial, principalmente para o Ministério Público – e isso até hoje – para persecução da proteção almejada e tratamento dos novos conflitos dos direitos de massas que vinham sendo negligenciados pelo Direito, sobretudo no que tange a questão ambiental, conforme explica Paulo de Bessa Antunes:



Dentre os bens jurídicos tutelados pela lei, o meio ambiente é um dos que merecem maior destaque. Normativamente, meio ambiente, como se sabe, está conceituado no inciso I do artigo 3o da Lei no 6.938/1981, que dispõe sobre a PNMA. Nos termos da norma jurídica recém-citada, o meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem química, física e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Por força de expressa disposição constitucional, o meio ambiente é um bem de uso comum do povo e um direito de todos os cidadãos, das gerações presentes e futuras, estando o Poder Público e a coletividade obrigados a preservá-lo e defendê-lo (CF, art. 225).

De todas as hipóteses de cabimento das ações civis públicas, esta é aquela que permite a maior ampliação do instrumento processual ora sob análise. Evidentemente que a amplitude do permissivo contido no inciso é função do entendimento que se tenha dos próprios interesses difusos. O nosso posicionamento é no sentido de considerar que os interesses difusos revestem-se da característica de serem um prolongamento e uma extensão dos direitos humanos fundamentais. Nessa condição possuem um caráter de garantia e tutela de determinados padrões de condição de vida e não podem ser confundidos com qualquer reivindicação de grupos. Isso porque os interesses difusos não se confundem com postulações corporativas. (ANTUNES, 2019, p. 319).

A Constituição Federal de 1988 acabou por sedimentar a importância do instituto que já estava previsto na legislação infraconstitucional, consagrando no seu texto a previsão da ação em questão sobretudo para a proteção do meio ambiente, e a função do Ministério Público de promover a “ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos1:

Embora não haja, ainda, um limite de atuação para o Estado e para o indivíduo, no que diz respeito a atos que possam ser considerados atentatórios ao meio ambiente, não se espera que aumente a insegurança dos interessados no que se refere a tal questão, pois o texto constitucional simplesmente está incorporando princípios que já existiam em nossa legislação desde a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. [...]

A instituição da ação civil pública pela lei referida representou, por si mesmo, restrição ao exercício do direito de propriedade que, em nenhum momento, foi dado como motivo para sua revogação ou reconhecimento de sua inconstitucionalidade, devendo ser notado que: 1) a Lei no 7.347/85, propositadamente, não enumera as medidas que possam ser judicialmente decretadas para a proteção do meio ambiente, o que significa que o juiz, desde que o faça fundamentadamente, poderá determinar o que considerar suficiente e eficaz; e 2) a Lei no 7.347/85 autoriza, indiretamente, que sejam acionados não só órgãos e pessoas estatais, como também pessoas físicas e jurídicas privada. (SLAIBI FILHO, 2009, p. 693)

Em 1990, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, foi o responsável pela ampliação da ação civil pública para abranger os interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, trazendo as respectivas definições e distinções. A partir de então, os dois clássicos direitos transindividuais e mais comumente lembrados, o meio ambiente e as questões consumeristas, estavam previstos em normas específicas, e munidos de instrumento processual apto à sua tutela.

Importante salientar que além da ação civil pública, existem outros remédios especiais que fogem à lógica do processo civil clássico individual, sendo eles o mandado de segurança e a ação popular – o primeiro criado para a defesa do sujeito contra atos do Poder Público, o segundo para a defesa da sociedade em casos especiais que ensejam a lesão do patrimônio público e, finalmente, a ação civil pública, criada especialmente para defender os interesses difusos, coletivos e homogêneos individuais (MEIRELLES e outros, 2016, p. 286).

2.2. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

Interesses “difusos” são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do consumidor. O problema básico que eles apresentam – a razão de sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação. A recente manifestação do professor Roger Perrot sobre os consumidores descreve com agudeza o problema dos interesses difusos: “le consommateur, c’est tout et c’est rien” (O consumidor é tudo e não é nada). (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 26)

O Código de Defesa do Consumidor foi o responsável por sistematizar a proteção transindividual e ampliar a abrangência da ação civil pública de forma tripartite, dividindo-a em: (i) interesses ou direitos difusos, como sendo “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato2”; (ii) interesses ou direitos coletivos, sendo aqueles “transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base3”; e (iii) interesses ou direitos individuais homogêneos, definindo-os como “os decorrentes de origem comum4”::

O ordenamento jurídico brasileiro, tendo num primeiro momento referido genericamente a tutelabilidade dos interesses difusos ou coletivos (art. 1º, IV, da LACP), acabou por conceituá-los por intermédio do Código de Defesa do Consumidor, agregando-lhes ainda a categoria dos chamados direitos individuais homogêneos, imprimindo-lhes regimes aparentemente específicos no que diz respeito à legitimação para agir, ao procedimento judicial e à formação e extensão subjetiva da coisa julgada. Daí a relevância científica e prática de se distinguir adequadamente uns dos outros. (GOZZOLI et al, 2010, p. 179).

Essa sistematização foi importante para a própria efetividade da proteção dos interesses transindividuais, pois além de determinar a categoria dos direitos objeto de ação civil pública, delimitando-o, também trouxe clareza suficiente sobre a amplitude desse objeto, inspirando modificações que, por exemplo, ampliaram o rol de legitimados a propor a Ação Civil Pública, constando hoje, o Ministério Público, a Defensoria Pública,  União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista e a associação constituída há pelo menos 1 (um) ano, e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico5.

2.3 Efeito erga omnes das ações civis públicas

Uma característica distintiva das ações coletivas em relação às ações individuais está nos efeitos pois, enquanto na primeira a coisa julgada material é imutável entre as partes processuais, no processo coletivo a coisa julgada extrapola as partes formais da ação, que são substituídas pelos legitimados à propositura da ação civil pública e tem efeito erga omnes (MAZZILLI, 2005, p.3).

O projeto de lei do código de processo civil individual foi idealizado para tramitar em conjunto do projeto coletivo, entretanto, o código de processo coletivo foi arquivado, seguindo somente o primeiro, muito provavelmente em razão de não se saber as proporções que uma ação civil pública pode alcançar, sobretudo em razão da amplitude de seus efeitos e da grande quantidade de matérias passíveis de serem consideradas de interesse transindividual e, portanto, pleiteadas em juízo.

Por este motivo, parece existir um receio, inclusive do Poder Público, sobre a regulação e ampliação da ação civil pública, havendo, inclusive, um movimento recorrente para restringir o objeto desse tipo de ação. A título de exemplo, a Medida provisória nº 2.180-35, de 2001 acrescentou o parágrafo único no artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública no sentido de que “Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”, justamente visando-se evitar a ampliação do escopo dessa ação judicial, podendo gerar impactos econômicos para o Estado.

Mas a discussão dos efeitos não é somente essa pois, especificamente quando se trata de meio ambiente, é indiscutível que a coisa julgada não possui delimitação espacial, sendo praticamente impossível, ao menos na imensa maioria dos casos, a aplicação do artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, segundo a qual a sentença faz coisa julgada erga omnes e produz efeitos “nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.

Em matéria ambiental, os bens ambientais são indivisíveis, não possuem ou respeitam algum tipo de limitação física ou espacial, não havendo efeitos práticos nessa limitação pois a decisão judicial afetará o objeto tutelado como um todo, independente do texto legal dizer o contrário, pois não é aplicável na prática (RODRIGUES, 2016, p. 288).

3 Aspectos atuais da ação civil pública ambiental

Atualmente, é comum que a ação civil pública confira aos seus autores um papel de destaque em razão, muitas vezes, da importância e do tamanho das demandas por ela tratadas, principalmente se tomarmos em conta o número de envolvidos e afetados pela matéria, bem como a relevância social da questão e repercussão do caso, sendo essa razão atribuída, por diversos autores, ao papel de destaque e de autoridade que ganhou o Ministério Público no direito brasileiro de forma crescente nos últimos anos, inédito em todo o mundo:

[...] Embora a Lei no 7.347/85, anterior à Constituição, mas por ela recepcionada, tenha estabelecido uma legitimação concorrente entre os en- tes federados e sua administração indireta, as associações instituídas há mais de um ano e o Ministério Público, acredita-se que a quase totalidade das ações civis públicas tem sido ajuizada pelo Ministério Público. Tornou-se mais fácil para as associações procurar o Ministério Público, pois, além de ser gratuito, é ele dota- do de meios legais para promover a investigação dos danos aos direitos coletivos através do inquérito civil, também previsto constitucionalmente.

É inegável que a ampliação dessa forma de atuação deu maior visibilidade para o Ministério Público, aumentando a sua importância como “ator político”, bem como arregimentou forças contrárias. Uma das consequências da importância da defesa judicial e extrajudicial dos chamados direitos coletivos, em especial pelas repercussões positivas e visibilidade, acredita-se, é a ampliação da legitimação, com a sua extensão, ao menos até o momento, por lei ordinária, à Defensoria Pública. (RIBEIRO, 2010, p. 88)

Uma questão atual e controvertida que se discute no direito atual é o limite do denominado ativismo judicial, sendo a Ação Civil Pública, na qualidade de um instrumento de proteção transindividual, com decisões erga omnes, um potencial mecanismo de ativismo, pois ainda que não haja lei específica, não pode o Judiciário furtar-se a dar uma solução às controvérsias que lhe são submetidas.

Nesse sentido, aos autores da ação, confere-se um papel de claro protagonismo e, ao juiz, a possibilidade de legislar sobre matérias de grande relevância e impacto social, pois quando acaba-se decidindo abstratamente em uma ação civil pública sobretudo na área ambiental, acaba-se também abrindo espaço para ocupação de uma função que seria do Legislativo.

O principal enfoque dessa questão está no fato de que a repartição de poderes e a distribuição de competências originalmente pertencentes a cada um deles só leva em consideração os três poderes, que seria, em uma simplificação extrema: ao Legislativo cabe a função de legislar sobre as questões relevantes, ao Executivo governar e ao Judiciário dar solução à controvérsias que lhe são submetidas. É o que faz Elival da Silva Ramos quando analisa o tema ativismo judicial:

Ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir é a ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e, até mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da legiferação (ou outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição aos órgãos superiores do aparelho judiciário, e sim da descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros poderes (RAMOS, 2010, p. 117).

É interessante observar que o Ministério Público, apesar de acabar por protagonizar muitas dessas ações, não é analisado no âmbito dos estudos de ativismo em sede de ação civil pública, sendo que é dele que parte, ao menos, a provocação das matérias e, por via de consequência, a escolha dos temas que considera de relevante interesse social a ponto de dedicar-se a levar a questão à apreciação jurisdicional.

A discussão envolvendo ativismo judicial e discricionariedade do Poder Público, por exemplo, para determinar quais são as prioridades de gastos e investimentos não é novidade na discussão no campo das ações individuais, entretanto, nas ações coletivas, que têm efeito erga omnes, é um campo de aplicação muito mais amplo e, consequentemente, de proporções mais temerárias.

Aliás, outro efeito que se tem por meio da ação coletiva é que, considerando que o objeto dessa ação é o direito transindividual de pessoas que foram substituídas processualmente pelos legitimados para proposição da ação, caso a demanda seja julgada procedente, ela poderá beneficiar toda a categoria, classe ou grupo de lesados – que também podem buscar individualmente a pretensão. Entretanto, ainda que julgada improcedente, a decisão não vincula os que se consideram lesados de buscar individualmente amparo judicial, caso contrário, admitir-se-ia a formação de coisa julgada contra aqueles que sequer tiveram acesso jurisdicional (MAZZILI, 2017, p. 690).

Conclusão

Conforme demonstrado, o surgimento da tutela coletiva foi resultado da tentativa de solucionar uma crise de um mundo que mudou a forma de trabalhar e de consumir, gerando ao Judiciário o desafio de lidar com demandas mais complexas, com mais sujeitos envolvidos, com decisões afetando não apenas autor e réu, mas uma gama bem maior de envolvidos de forma direta e indireta, e que carecia de soluções mais adequadas, pois as que se apresentavam não funcionaram a contento para todas as novas situações que surgiam, havendo a necessidade de repensar o processo, a sociedade e o próprio acesso à justiça desses grupos afetados pela nova realidade.

Dessa forma, a necessidade de repensar e criar mecanismos para pleitear a pretensão coletiva decorreu de um momento histórico específico, e não de forma natural como muitos institutos tradicionais do direito, sendo uma verdadeira resposta aos novos anseios sociais, que experimentou uma ruptura dos paradigmas clássicos demandando solução mais abrangente e adequada para as questões de massa decorrentes do processo de globalização e problemas ambientais.

A ação civil pública, desde a sua criação, passou por uma série de transformações, sendo revista, ampliada e melhor delineada dentro do sistema constitucional inaugurado a partir de 1988, com ampliação do rol de legitimados para a sua propositura, o reconhecimento do cabimento para diversas matérias, fugindo da ótica inicial de proteção ao meio ambiente e ao consumidor, para incluir outros grupos que também demonstraram a necessidade de tal proteção, como o caso dos idosos, da criança e do adolescente, e tantos outros que ainda surgem em decorrência do processo de evolução social.

Em razão dessa natureza abrangente, começou a ficar mais claro que os efeitos erga omnes das ações civis públicas não observam os supostos limites territoriais que incluiu-se em 1997 no artigo 16 da lei, pois essa limitação é inócua para os direitos difusos e coletivos, muito mais abrangentes do que os limites de competência territorial definidos para organização do Poder Judiciário.

Muito provavelmente esta seja uma das razões de não ter prosperado o projeto de lei do código de processo civil coletivo, pois ao observar-se o instituto da ação civil pública, que ainda é menor do que a sua capacidade de atuação, não houve interesse em ampliá-lo, tendo em vista que o aperfeiçoamento desse sistema pode trazer à discussão novas matérias também de natureza transindividual, que a sociedade ainda não está madura o suficiente para enfrentar e começar a decidir de forma abrangente.

Um exemplo seriam as questões de natureza previdenciária, sendo que hoje o processo civil tradicional evolui para a sistematização das decisões judiciais, criando mecanismos como o julgamento de casos repetitivos, justamente na contramão dessa lógica que pode ser aberta por meio do processo civil de natureza coletiva e de sua ampliação nesse momento.

O que ficou evidenciado ao longo do trabalho, foi que o processo coletivo tem ganhado importância crescente para a solução de lides complexas no país, conferindo aos seus autores, papel de destaque em razão da importância social das demandas que foram levadas ao Judiciário na seara ambiental.

Dessa forma, ainda que não tenha prosperado um código de processo civil específico para lidar com as ações coletivas, a experiência histórica demonstra que o instituto não está paralisado, ganhando mais força e diferentes contornos a cada dia, de forma que vislumbra-se no futuro a continuidade do crescimento e da importância da ação civil pública para o deslinde de questões ambientais complexas.

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1Artigo 129, inciso III.

2Artigo 81, inciso I

3Artigo 81, inciso II

4Artigo 81, inciso III

5Artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública.