O QUE NOS INDICA A ARTE SOBRE QUEM SOMOS?

Cláudia Mariza Mattos Brandãoi



Resumo: A partir de duas efemérides celebradas em 2022, proponho neste texto uma reflexão sobre o que obras de arte podem nos dizer sobre a estrutura histórica de uma propalada identidade nacional. Abordo tal questão focada em produções de Tarsila do Amaral, refletindo sobre reverberações históricas que nos atravessam e influenciam comportamentos.



2022 é um ano especialmente emblemático para nós, brasileiros, pois celebramos dois marcos importantes da nossa cultura e da nossa história: o bicentenário da Independência e o centenário da Semana de Arte Moderna. Cabe destacar tais efemérides, pois elas envolvem em si mesmas contradições merecedoras de problematizações plurais. Além disso, para refletir sobre uma “Educação Ambiental para repensar sobre produção e consumo”, o tema desta edição da revista, é fundamental ter clareza sobre as estruturas sociais, políticas e históricas das mentalidades e dos comportamentos contemporâneos.

Assim como a historiadora Lilia Schwarcz, dentre outras/os pensadoras/es, entendo que os duzentos anos de Independência do Brasil deixam transparecer uma celebração prenhe de vazio. Independência para quem? Para os povos originários, para os negros ou para as elites palacianas do período?

São muitas as indagações que o tema suscita, e isso indica a sua complexidade. A temática acena para a formatação de uma identidade nacional com base nos valores de poucos em detrimento da maioria do povo, para quem somos e como nos comportamos na atualidade. Alude também, para o fato de muitas pessoas identificarem a emancipação de Portugal com o quadro do pintor Pedro Américo, intitulado “Independência ou Morte!” (1888), uma tela pautada numa pintura do francês Ernest Meissonierii.

A Semana de 22, realizada em São Paulo, foi também uma ideia que buscava contestar as manifestações ufanistas preparadas para as comemorações do centenário da Independência, considerado um evento conservador, palaciano e imperial. Assim como a própria independência, o modernismo é um processo que começou muito antes e em diferentes lugares, porém, naquele momento, alguns artistas paulistas reivindicavam para si essa vanguarda, questionando estruturas tradicionalmente arraigadas.

Não vou me alongar sobre as contradições históricas que margeiam o entendimento sobre a nossa “libertação” do jugo colonial. Neste texto eu quero focar na arte modernista brasileira dos idos de 1922 e nos indicativos que algumas obras nos oferecem, ampliando o entendimento acerca de uma sociedade que cada vez mais consome suas riquezas naturais, destruindo o território que tanto encantou os primeiros europeus que aqui chegaram.

Quando falamos em modernismo no Brasil logo lembramos da Semana de Arte Moderna, que teve como palco o Teatro Municipal de São Paulo, iniciada em 13 de fevereiro de 1922. Porém, reitero que a Semana e o próprio modernismo transbordam as datas emblemáticas.

Do evento, tanto celebrado quanto questionado, participaram nomes hoje consagrados como a artista plástica Anita Malfatti, os escritores Mário de Andrade e Oswald de Andrade e o compositor Heitor Villa-Lobos, dentre outros. Tratava-se de um grupo de intelectuais da burguesia paulista que capturou um movimento já em andamento, elaborado anteriormente pela cultura popular brasileira.

Embora sem ter participado da Semana, a artista Tarsila do Amaral, nascida numa fazenda no interior paulista e filha de um barão do café, se tornou a figura mais emblemática do movimento modernista. Casada com Oswald de Andrade, em 1926, Tarsila é a autora da obra muitas vezes apontada como símbolo do modernismo, o quadro “Abaporu”, de 1928, representado em muitos livros escolares.

Anteriormente, em 1923, Tarsila produziu duas obras que considero fundamentais para pensarmos sobre a elaboração de uma identidade nacional e suas controvérsias. E é sobre elas que versa esta reflexão.

Figura 1: Tarsila do Amaral, A Negra, óleo sobre tela, 80x100cm, 1923.

Fonte: Disponível em https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2322/a-negra

Em “A Negra” (Figura 1) a artista já apresenta algumas questões formais características de sua produção e da arte moderna brasileira. Com nítida influência cubista, a obra tem como figura central uma mulher negra, nua, que, segundo a própria artista, resulta de suas memórias de infância na fazenda, como declarou ao jornalista Leo Ribeiro, da Revista Vejaiii, em 1972:

Um dos meus quadros que fez muito sucesso quando eu o expus lá na Europa se chama A Negra. Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas, quando eu era menina de cinco ou seis anos sabe? Escravas que moravam lá na nossa fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me contaram depois, naquele tempo as negras amarravam pedras nos seios para ficarem compridos e elas jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas costas.



Portanto, para Tarsila seria também como uma homenagem às amas de leite, papel atribuído a muitas negras escravas. A figura é representada como um bloco, com cabeça ovoide, feições disformes e pés agigantados (assim como no Abaporu), tendo ao fundo uma folha de bananeira, numa alusão à nossa paisagem natural e seu exotismo tropical.



Figura 2: Tarsila do Amaral, Auto-Retrato, óleo sobre tela, 60x73cm, 1923.

Fonte: Disponível em https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1552/auto-retrato



Em “Auto-Retrato” (Figura 2), também conhecida como Manteau Rouge, numa referência ao figurino da artista, ela se representa através de cores vibrantes, vestida e penteada de acordo com os ditames da moda do período, com feições delicadas e belas. Tarsila era reconhecida por sua beleza e elegância, como uma legítima representante da burguesia paulista, que frequentava os círculos da alta costura europeia, trazendo para o Brasil novidades do mundo da moda.

Por muito tempo ambas as obras vêm sendo “consumidas”/visualizadas acriticamente, alimentando o imaginário social e normalizando valores que nos atravessam e ainda repercutem nos comportamentos contemporâneos. Elas foram produzidas no mesmo ano, com enquadramento e saturação de cores semelhantes, além do posicionamento das mãos e do formato ovalado da cabeça. Portanto, é possível identificar características formais compartilhadas, embora explicitem realidades diametralmente opostas.

Nelas, a objetificação do corpo da mulher negra e da própria natureza, transformada em cenário idílico, se somam para reafirmar as riquezas e os prazeres da vida burguesa paulistana da primeira metade do século XX. Para Tarsila é normal negras amarrarem “pedras nos seios para ficarem compridos”, permitindo amamentar “a criança presa nas costas”, e isso compõe suas memórias afetivas da infância.

Não tenho a intenção de tecer uma crítica à artista, seu estilo de vida ou entendimento do mundo. Tenho a consciência de que ela é fruto de seu tempo histórico, assim como a sua produção.

Entretanto, as diferenças entre “A Negra” e “Auto-Retrato” - que não são formais e sim semânticas - nos indicam conflitos e remetem a violências que ultrapassam o seu contexto gerador. Refiro-me ao racismo estrutural e às questões de classe, que permanecem entre nós retroalimentando os imaginários. Porém, mais do que isso, é importante ressaltar que a persistência de tal situação está na base das atuais relações produtivas e de consumo em nosso país.

Para além de uma visão estética, formalista, de um determinado período histórico, através da observação atenta dos objetos e práticas artísticas é possível desvelar as suas complexidades estruturantes, e encaminhar reflexões sobre as nuances, conexões internas e reflexos das suas bases sociais geradoras. Sendo assim, é possível afirmar que a produção de Tarsila do Amaral reafirma as intrínsecas relações entre arte e sociedade, expondo as tramas históricas e seus traumas ... e merece toda a nossa atenção!







i Doutora em Educação, com pós-doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, do curso Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq) http://www.photographein-pesquisa.com.br/

attos@vetorial.net

ii Para maiores informações sobre o assunto, recomendo um texto do Museu Paulista, disponível em https://artsandculture.google.com/story/-gUhK9JtTdxIKA?hl=pt-BR

iii É possível encontrar reprodução do exemplar, publicado em 23/02/1972, no Acervo Digital Veja: veja.abril.com.br/acervodigital, que no momento passa por reformulações. Cito a entrevista, pois tenho um exemplar guardado.