MÚSICA E MEIO AMBIENTE: TRILHANDO O CAMINHO DA ECOLOGIA SONORA

Karine Wagner Oliveira Alves de Melo1; Francisco Nairon Monteiro Júnior2

1 Licenciatura em Ciências Biológicas, Universidade Federal Rural de Pernambuco

2 Departamento de Educação, Universidade Federal Rural de Pernambuco. naironjr67@gmail.com

Resumo: As paisagens sonoras modernas são ruidosas e as pessoas não estão atentas aos riscos. Pensando nisso, apresentamos dois relatos de experiências, onde buscamos promover a construção de consciências auditivas, por meio da escuta pensante na promoção da autonomia no cuidar da qualidade sonora dos ambientes.

Palavras-Chave: Música; Ecologia Sonora; Educação Sonora; Sensibilização da Audição.

Abstract: Modern soundscapes are noisy and people are not aware of the risks. With this in mind, we present two reports of experiences, where we seek to promote the construction of auditory awareness, through thoughtful listening in promoting autonomy in taking care of the sound quality of environments.

Keywords: Music; Sound Ecology; Sound Education; Hearing Awareness.

Introdução

O estudo do som na escola quase sempre é feito na disciplina física, partindo da ideia de uma onda mecânica longitudinal e que, ao alcançar a orelha humana, causa uma sensação no cérebro, após um processo de transmissão neurofisiológico. Por outro lado, na disciplina biologia, quase sempre se limita a explicar o mecanismo de funcionamento da orelha humana, seguido de um modelo explicativo básico sobre como a perturbação mecânica que alcança tal orelha se converte em sensação. Em ambas as disciplinas, pouco, ou quase nada, é abordado sobre as sonoridades das sociedades, cujas evoluções históricas, segundo Schafer (2001), torna os ambientes urbanos cada vez mais ruidosos e insalubres. O som, antes comunicação divina, transcendental, tornou-se um grande problema no cotidiano das pessoas. Ao mesmo tempo em que nos ensurdecemos, tornamo-nos auditivamente mal-educados. O constante ruído de fundo, ou como denominou Schafer (2001), o som fundamental, é algo incessantemente escutado e que as pessoas acabam habituando-se. Na verdade, as pessoas, em geral, sequer percebem que estão imersas num oceano de sons, do qual, o ruído de fundo pode ser danoso, tanto do ponto de vista neurofisiológico, quanto do ponto de vista psicológico.

Citarei no presente artigo o trabalho do biólogo americano Bernie Krause (2002) que grava paisagens sonoras naturais em todo o mundo. Ele nos mostra uma grande variedade sonora, como um concerto de sapos num lago americano (Mono Lake, Califórnia), os sons de larvas de insetos aquáticos captados por hidrofones, ou o rugido de uma onça na floresta amazônica. Além do interesse pelos ruídos naturais gravados e pela excelente qualidade da gravação, o interessante é o que Krause relata a respeito de quanto o ruído urbano afeta os animais, colocando-os em situação de risco.

Os sapos gravados por Krause na Califórnia ficavam sob uma rota aérea. O ruído dos sapos, antes rico e bem estruturado, apresenta consideráveis perturbações em seu perfil, após a passagem de um jato; muitos sapos se calam, enquanto outros coaxam de modo desordenado. Krause diz que é preciso esperar cerca de 45 minutos para que se restabeleça o modelo anterior, até que um novo jato venha novamente perturbar. No período que precede o equilíbrio, os sapos ficam expostos, pois, diferentemente de quando coaxam em seu modo típico, que tem como característica uma sonoridade difusa, que dificulta a localização dos animais, após a passagem do jato, quando se instala o desequilíbrio de sua manifestação sonora, alguns sapos podem ser facilmente localizados pelos predadores, pois o som expõe o local onde se encontram (KRAUSE, 2002).

Tais exemplos, dentre outros, apontam para as consequências de tais desequilíbrios para a preservação das espécies. A audição confere uma vantagem para a sobrevivência. Segundo Roederer (1998), “a interpretação da informação acústica oferecida pela linguagem e pelo ambiente tem uma importância biológica fundamental”. Ouvimos um som quando o tímpano entra em vibração, em frequências dentro da faixa sensível para cada espécie. Essa vibração é causada por pequenas oscilações de pressão de ar do canal auditivo, associadas a uma onda sonora de entrada. Por exemplo, os caninos ouvem sons bem mais agudos do que os seres humanos, numa faixa que vai de 15Hz a 45.000Hz, e atendem aos apitos de caça que, para nós, são inaudíveis. Os morcegos, por suas vezes, se utilizam muito mais dos sons do que da visão para se guiarem à noite, já que são criaturas de hábitos noturnos e são sensíveis a frequências de até 75KHz. O ouvir depende da neurofisiologia, anatomia, mas também depende do meio. A reverberação e o eco ocorrem devidos às especificidades do meio, o qual tem influência na forma como o som se propaga, sendo objeto de estudo da acústica. Tais exemplos nos mostram a importância de ações políticas que busquem minimizar os efeitos maléficos dos ruídos gerados pelas sociedades. Nasce, deste cenário urgente, a necessidade de mudança. Parece-nos que um possível caminho seria o desenvolvimento, nas pessoas, de níveis de consciência auditiva capazes de transformá-las de agentes ruidosos a policiadores da qualidade sonora dos ambientes, numa ação significativa em direção à educação ambiental sonora.

Ao estudarmos os princípios da ecologia, enfatizamos a importância da consciência como dirigente das ações do homem. É ela, também, responsável pela preservação do meio ambiente, pois faz com que o homem se perceba como parte do mundo e integrado a ele e que, portanto, toda ação espoliativa incidirá sobre o planeta e seus habitantes. A consciência é o fio condutor da ação do homem e da resolução de problemas. (FONTERRADA, 2004, p.87)

De acordo com a autora mencionada acima, é muito importante promover e conservar um pensamento ecológico que seja regido, também, pelo ambiente sonoro e convidar as pessoas a terem com o som uma relação positiva, de convivência e escolha, não de fuga. Mais uma vez, para que isso ocorra plenamente, a consciência tem de se fazer presente. Por meio dos sons, sentimo-nos íntegros, vivos e integrados a nós mesmos, aos outros homens e ao meio em que vivemos. Neste sentido, Capra (2006) corrobora com Fonterrada, trazendo um novo paradigma à ecologia, repartindo uma visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Esta ecologia, dita profunda, reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida, afastando-se de uma visão antropocêntrica, em direção a uma visão colaborativa, onde todos são igualmente importantes. Desta forma, a única maneira de superar a crise ambiental e criar condições saudáveis de vida na Terra é a organização ser baseada na estruturação da natureza e de seus ciclos. Os sistemas vivos, diz Capra (2002, p.238) “são redes autogeradoras, fechadas dentro de certos limites no que diz respeito à organização, mais permeáveis a um fluxo contínuo de energias materiais". O modelo alternativo, considerado por Capra o único capaz de superar a crise ambiental, baseia-se no mesmo modelo existente na natureza, denominado pelo autor de “teia da vida”. Sua principal característica é se organizar em redes dentro de outras. Nesse modelo, o resíduo (dejeto) de um sistema é alimento de outro; portanto, não se produz lixo e não se exaure a Terra, pois tudo é reaproveitado.

Nesta perspectiva da educação ambiental sonora como parte a integrar os estudos da educação ambiental, encontramos nos estudos de paisagens sonoras do educador canadense Raymond Murray Schafer (SCHAFER, 2001) um bom referencial para o desenvolvimento de uma escuta pensante, em direção à construção de níveis de consciência auditiva, para que as pessoas sejam capazes de decidirem sobre quais sons desejam estimular e quais desejam retirar de suas paisagens sonoras.

Convidar os alunos a um passeio auditivo, composto por trilhas sonoras, ou, na linguagem do Schafer, por objetos sonoros, pode ser o início de uma incrível viagem que pode levá-los a perceberem que estão envoltos por um oceano de sons que precisam ser percebidos, semântica e sintaticamente, compreendendo que as paisagens sonoras são como uma grande composição musical, da qual somos autores e, ao mesmo tempo, julgadores da qualidade da obra, sob pena de que, num mundo dominado pelo homem, quando o nome de uma coisa morre, ela é eliminada da sociedade e sua própria existência corre perigo.

Alinhados com o objetivo estético do Schafer, desenvolvemos uma oficina, intitulada “Música e meio ambiente: trilhando o caminho da ecologia sonora”, por meio da qual buscamos possibilitar a construção de níveis de consciência em estudantes da educação básica e graduandos, acerca do ambiente acústico e de si mesmos, enquanto seres produtores de som e corresponsáveis pela qualidade dos ambientes em que vivem. Nesta oficina didática, experimental e lúdica, envolvendo adaptações de alguns exercícios de sensibilização da audição e de produção de sons musicais, desenvolvidos originalmente por Schafer (2009), buscamos criar meios que permitiram a construção de níveis de consciência a respeito da ecologia acústica, percebendo-se enquanto imersos numa grande teia, onde cada um de nós é o centro auditivo e estético, corroborando com a visão de Wisnik (2017, p.61), a qual aponta que

para fazer música, as culturas precisam selecionar alguns sons entre outros: já falamos sobre o caráter ordenador de que se investe essa triagem, no qual alguns sons são sacrificados, isto é, jogados para a grande reserva dos ruídos, em favor de outros que despontarão como sons musicais doadores de ordem.”.

É este o sonho estético que nos motiva: embelezar o mundo e os corações das pessoas, entendendo tal processo como dialético, onde uma dimensão não pode ser alcançada sem a outra. Nas seções que se seguem apresentamos o percurso de ensino e pesquisa por nós trilhado.

Metodologia

A presente ação de pesquisa e ensino materializou-se em duas oficinas, intituladas “Música e meio ambiente: trilhando o caminho da ecologia sonora”. A primeira foi desenvolvida juntamente com alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola de referência da rede estadual de ensino do estado de Pernambuco, de forma presencial, no período de 03 de setembro a 10 de novembro de 2021. A segunda foi desenvolvida juntamente com alunos de graduação, participantes do “XXIII Encontro do Programa de Ensino Tutorial de Pernambuco (XXIII PET PE)” intitulado “PET PE R.E.C - Resiliência petiana, esperança para alcançar novos desafios e criatividade para inovar”, o qual aconteceu no período de 03 a 05 de dezembro de 2021, de forma on-line, e se deu no primeiro dia do encontro, 03 de dezembro de 2021, das 14:00h às 18:00h.

Ambas as oficinas foram desenvolvidas a partir de uma perspectiva lúdica e participativa, a partir do modelo de problematização desenvolvido por Delizoicov (2013). Nesta perspectiva, os conteúdos e habilidades não são dados de forma pronta, previamente planejada. Ao invés disso, tais aportes surgem como necessidades no entendimento dos desafios postos no debate, cabendo ao professor a mediação do processo. Tal problematização como mediadora das práticas docentes, em especial no ensino de ciências, materializa-se em dinâmicas didático-pedagógicas, conhecidas como treinamentos pedagógicos. Essa dinâmica fundamenta-se nas concepções de educação de Paulo Freire para o espaço escolar. Nesta perspectiva, os conteúdos nascem como necessidades formativas no entendimento de situações concretas da realidade dos sujeitos no mundo. A consciência, daí nascida, é, portanto, epistemológica, nascendo, dela, um novo homem e uma nova realidade. Aquilo que antes era apenas um quadro estático, passa a partir do desenvolvimento de níveis de consciência, a ter recortes, percebidos-destacados próprios do sujeito que ali se insere de forma comprometida. Como afirma Freire (2021a, p.108),

existir humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho e na ação-reflexão.”. “O diálogo é este encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, a relação eu-tu.”.

O que antes era apenas uma experiência sem profundidade, passa, a partir dessa visão crítica, a ter idas e vindas, onde o sujeito se percebe na medida que se percebe no mundo, como parte dele, como sujeito na história. Para Freire (2021ª, p.110), “não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda. Sendo o fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo.” Dessa forma, é, antes de tudo, um ato de amor respeitar o direito ao diálogo, valorizar a experiência dos participantes. Promover a autonomia como forma de ser no mundo, reinaugurando, a cada passo, a experiência original que deu origem ao próprio homem, qual seja o direito de ser.

Neste modelo de problematização já não cabe falar de professor e aluno, de quem sabe tudo e de quem não sabe nada, mas de sujeito estando-sendo no mundo, coletivamente desvelando-o, na medida que nos entendemos imersos nele, assim como quando nos percebemos imersos num grande oceano de sons que precisam ser percebidos de forma crítica, mediada por estruturas semióticas que devem, para serem autênticas, nascer deste processo problematizador do ser no mundo. Tal processo problematizador nasce de situações reais pensadas pelos alunos e gestados a partir dos desafios que são postos pelos professores, agora mediadores, num exercício que provoca neles curiosidade, imaginação, intuição, capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser, num pensar, ao mesmo tempo, semântico e sintático. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que está se verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço, admito várias hipóteses em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas, até que chego à sua explicação. Satisfeita com a curiosidade e com a capacidade de me inquietar, não haveria existência humana sem abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência.

A curiosidade é importante ponto de partida para processos de problematização do ser no mundo. Contudo, é preciso que a inquietação, dela nascida, possa ser mediada por atividades que levem à curiosidade epistemológica. Para Freire (2021b, p.84-85), “do seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “regoriza”, tanto mais epistemológica ela vai se o exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mas metodicamente perseguidora tornando.”.

Foi nessa perspectiva que pensamos e planejamos as oficinas. Buscamos valorizar a inquietação, a curiosidade, dando liberdade para falarem sobre suas experiências, dentro e fora de sala de aula, desafiando-os a exporem o que pensam sobre os assuntos mediados por nós, que vestimos as vestes da educação sonora, num processo de viver o mundo, perceber-se dentro dele, pés no chão, ouvidos atentos à escuta pensante, pensando sobre o que sente, tendo o problema como a gênese. Os sons registrados pelos participantes, na audição das paisagens sonoras urbanas e silvestres, foram classificados, na primeira oficina, em sons naturais, tecnológicos e humanos, visto que, tais termos se adequaram melhor ao entendimento dos alunos do ensino médio. Na segunda oficina, voltada aos graduandos que participaram do XXIII Encontro do Programa de Ensino Tutorial de Pernambuco (XXIII PET PE), os sons foram classificados em “Geofônicos”, “Biofônicos” e “Antrofônicos”, termos mais técnicos e retirados do artigo “Soundscape ecology: the science of sound in the landscape” (PIJANOWSKY et al, 2011).

Primeira ação de pesquisa e ensino

Na primeira ação de pesquisa, que se deu com alunos do primeiro ano do ensino médio de uma escola de referência da rede estadual de ensino do estado de Pernambuco, buscamos investigar que níveis de consciência os estudantes desenvolvem acerca do ambiente acústico e de si mesmos, enquanto seres produtores de som e corresponsáveis pela qualidade dos ambientes em que vivem, quando convidados a participarem de uma oficina didática, experimental e lúdica, envolvendo adaptações de alguns exercícios de sensibilização da audição e de produção de sons musicais, desenvolvidos originalmente por Schafer (2009). Neste percurso, além de investigar os níveis de consciência que os estudantes desenvolvem acerca das suas corresponsabilidades com respeito ao cuidar das paisagens sonoras, buscamos, também, 0duca-los para viverem em ambientes sonoramente saudáveis, tornando-os hábeis para cuidar da qualidade acústica dos ambientes. Para tanto, os convidamos a ouvirem e registrarem os sons que compunham a paisagem sonora do pátio de estacionamento da escola (figura 1) e, também, do salão de convivência.

Figura 1. Registro da paisagem sonora no estacionamento da escola (fonte: os autores).

Na sequência, classificamos os sons em naturais, humanos e tecnológicos e, no âmbito desta problematização, colocamos como desafio comparar tais paisagens, tomando a música como referente do belo. Para tanto, desenvolvemos os seguintes conteúdos: “Registrando e classificando paisagens sonoras”, “A música enquanto uma organização cultural de sons, ruídos e silêncio”, “Analisando o ruído de fundo e objetos sonoros utilizando o Lexis Audio Editor”, “O ouvido mecânico e as quatro funções da escuta” e “O violão: do todo às partes, interconexão e interdependência”.

A tabela 1 apresenta o cronograma das atividades desenvolvidas, bem como os recursos utilizados.

Tabela 1. Planejamento da oficina para os alunos do ensino médio (fonte: os autores).

DATA

ATIVIDADE DESENVOLVIDA

RECURSOS

UTILIZADOS

C.H.

24/09/2021

Registrando e analisando paisagens sonoras.

Quadro branco, papel e caneta.

2h

01/10/2021

A música enquanto uma organização cultural de sons, ruídos e silêncio.

Tubos sonoros.

2h

22/10/2021

Analisando o ruído de fundo e objetos sonoros utilizando o Lexis Audio Editor.

Lexis áudio editor.

2h

29/10/2021

O ouvido mecânico e as quatro funções da escuta.

O violão: do todo às partes, interconexão e interdependência.

Ouvido mecânico.

Violão.

2h

05/11/2021

Avaliação da oficina.

Questionário.

30 min



Para a segunda atividade, na qual problematizamos a relação entre música e meio ambiente, tomando-a como a paisagem sonora mais perfeita criada pelo homem, construímos um conjunto de 8 tubos sonoros, cujos comprimentos foram calculados para reproduzirem o padrão de intervalos da escala maior, conforme mostra a figura 2. Nesta atividade também colocamos à reflexão a concepção de música como uma organização cultural dos sons, evocando a análise antropológica apresentada por Wisnik (2017).

Figura 2. Atividade com os tubos sonoros (fonte: os autores).

Na terceira atividade, centramos a atenção na percepção do constante ruído de fundo a que estamos submetidos, mas que a maior parte das pessoas não percebe mais por estarem insensíveis ao oceano de sons no qual estamos imersos por imposição. Para tanto, pedimos que fizessem silêncio e, com o uso do software livre “Lexis Audio Editor”, fizemos a gravação e, na sequência, a reproduzimos e, circulando na sala, passamos com o celular próximo aos seus ouvidos (figura 3). Desta forma, os alunos perceberam o ruído de fundo pois, neste caso, esse ruído de fundo estava entrando nos seus ouvidos sobreposto ao natural da paisagem.

Figura 3. Audição do ruído de fundo (fonte: os autores).

As atividades 4 e 5 foram desenvolvidas no mesmo encontro, que se deu no dia 29 de outubro de 2021. Nestas atividades, buscamos discutir como se dá o fenômeno sonoro, da fonte (corpo sonoro) até o sistema auditivo. Para tanto, utilizamos o violão como fonte sonora (figura 4) e um modelo de ouvido mecânico, montado por nós, para investigar como a vibração, que chega ao canal auditivo, se converte em pulsos elétricos (figura 5).

Figura 4. Atividade com o violão (fonte: os autores).

Figura 5. Atividade com o ouvido mecânico (fonte: os autores).

Segunda ação de pesquisa e ensino

A segunda ação de pesquisa consistiu, como dito acima, numa das três oficinas oferecidas durante o XXIII PET PE que se deu de forma remota (figura 6). Em tal ação de pesquisa e ensino buscamos, igualmente, investigar que níveis de consciência os estudantes desenvolvem acerca do ambiente acústico e de si mesmos, enquanto seres produtores de som e corresponsáveis pela qualidade dos ambientes em que vivem.

Figura 6. Oficina remota (fonte: os autores).

Nesta ação, alcançamos um feedback maior, pois oito graduandos responderam a última pergunta do questionário, enquanto os alunos do ensino médio apresentaram dificuldades em respondê-la. Outro aspecto a ser considerado é que alguns dos participantes trouxeram para o debate exemplos de pesquisa no campo da bioacústica, muito embora os conteúdos desenvolvidos tenham sido os mesmos da primeira ação de pesquisa. Quanto aos recursos, houve algumas alterações, pois, neste caso, a oficina foi desenvolvida de forma remota e numa carga horária de apenas 4 horas, conforme mostra a tabela 2. Preocupados com a garantia das dimensões problematizadora e lúdica, utilizamos não apenas aparatos experimentais, que eles puderam apenas visualizar, mas também recursos das NTICs, tais como registros de áudio, apresentação de slides e software de gravação e análise de áudio. Nesta perspectiva problematizadora, convidamos os participantes a um passeio auditivo que se prestou a ser o início de uma incrível viagem que pode ter os levado a perceberem-se envoltos por um oceano de sons que precisam ser percebidos, semântica e sintaticamente, compreendendo que as paisagens sonoras são como uma grande composição musical, da qual somos autores e, ao mesmo tempo, julgadores da qualidade da obra, sob pena de que, num mundo dominado pelo homem, quando o nome de uma coisa morre, ela é eliminada da sociedade e sua própria existência corre perigo.

Tabela 2. Planejamento da oficina para os participantes do XXIII PET PE (fonte: os autores).

ATIVIDADES

RECURSOS

DURAÇÃO

Registrando e classificando paisagens sonoras.

Paisagens sonoras gravadas

1:10 min

A música: organização cultural de sons, ruídos e silêncio.

Tubos sonoros

30 min

INTERVALO

INTERVALO

20 min

Analisando o ruído de fundo e objetos sonoros utilizando o Lexis Audio Editor.

Lexis Audio Editor

40 min

A neurofisiologia do ouvido humano e as quatro funções da escuta.

Ouvido mecânico

Maquete do Ouvido

40 min

O violão: do todo às partes, interconexão e interdependência.

Violão

40 mim



Como podemos ver na tabela acima, a oficina foi desenvolvida em dois blocos de problematização, separados por um intervalo de 20 minutos. Iniciamos convidando-os a ouvirem duas paisagens sonoras gravadas, uma silvestre e a outra urbana, com duração de cinco minutos para cada uma delas. Ao mesmo tempo, pedimos que escrevessem num papel os sons que eles perceberam em cada uma delas. Na sequência, pedimos que cada um se apresentasse e falasse os sons que percebeu. Tais informações foram sendo, na medida em que falavam, anotadas numa tabela que estava sendo apresentada na plataforma de videoconferência que foi utilizada para o desenvolvimento da oficina. A tabela 3 apresenta a frequência com que cada som foi percebido e destacado pelos participantes.

Tabela 3. Registro dos sons das paisagens postas à escuta dos participantes (fonte: os autores).

PAISAGEM SONORA SILVESTRE

PAISAGEM SONORA URBANA

Sons

Geofônicos

Biofônicos

Antrofônicos

Sons

Geofônicos

Biofônicos

Antrofônicos

Pássaro


4


Trânsito



3

Macaco


2


Carro



3

Gorila


1


Buzina



4

Inseto


4


Motor



2

Água

4



Sirene



4

Folha

2



Falação



3

Pato


1


Freio



1

Urso


1






Sapo


1






A reflexão em torno da comparação entre a natureza dos objetos sonoros identificados em cada uma das duas paisagens postas à escuta foi seguida da discussão em torno de como os tubos sonoros filtram algumas frequências do amálgama difuso dos sons que compõem as paisagens sonoras, resultando na escala musical, cujo objetivo foi o de levá-los a perceberem que a música é uma organização cultural dos sons. Neste debate ficou evidente, em diversos momentos, a apropriação que alguns participantes fizeram de tais experiências em direção ao entendimento da música enquanto uma paisagem sonora caracterizada pelo belo, pela colaboração e pela harmonia.

Ao final das discussões em torno das atividades vivenciadas no primeiro bloco, pedimos aos participantes que, durante o intervalo, instalassem nos seus smartphones o aplicativo “Lexis Audio editor”. Na volta do intervalo, repetimos a mesma experiência feita com os alunos do ensino médio, qual seja a de gravar o ruído de fundo e pôr à escuta. Na sequência, assim como foi feito na escola estadual, abrimos novamente o debate em torno do fenômeno da escuta e de como se dá a percepção do som, considerando, além da discussão neurofisiológica, também a dimensão fenomenológica, na medida em que, diferentemente do que foi feito na escola, introduzimos as quatro funções da escuta de Pierre Schaeffer (2016). Neste percurso, utilizamos, além do modelo do ouvido mecânico e do violão, uma maquete da orelha humana (figura 7).

Figura 7. Neurofisiologia do ouvido humano e as quatro funções da escuta (fonte: os autores).

Em meio a esse debate, introduzimos, também, uma inquietação em torno do momento ou estágio da gestação em que um feto começa a ouvir, ou seja, o início da aventura sonora do bebê. O timbre da voz da mãe é reconhecido pelo bebê recém-nascido, que se conforta ao ouvir um som tão familiar, conforme os caminhos que seguimos em nossas vidas, experienciamos momentos marcados por sons e ruídos. O que seria de um filme sem uma trilha sonora? O que seria das lembranças dos muitos momentos especiais que nos ocorreram sem as músicas ali presentes? O que seria de uma festa sem música? E os concertos e festivais? A verdade é que, sem a música, a vida seria um exílio, ou, como evoca, Nietzsche, “sem música, a vida seria um erro”.

Resultados e conclusões

Ação de pesquisa e ensino com alunos do ensino médio

Na oficina realizada nas duas turmas de 1º ano do ensino médio tivemos uma audiência em torno de 20 alunos em cada turma, visto que, por conta da pandemia, alguns não estavam indo à escola e outros não participaram de todas as atividades da oficina. Desta forma, buscamos, dentre os 37 questionários que foram coletados, tirar uma amostra de 15, tomando como parâmetros aqueles questionários que foram respondidos em sua totalidade, bem como aqueles cujas respostas contemplaram os objetivos propostos pela oficina. Tais parâmetros revestem-se de fundamental importância na medida em que nossa análise busca identificar algum nível de comprometimento e seriedade no seu preenchimento, uma vez que notamos que muitos questionários tinham respostas incompletas ou vagas, o que, para nós, que estamos envolvidos com uma pesquisa, é preocupante, pois, mais uma vez, vem apontar a importância do processo de educação da escuta. As seis perguntas que compuseram o questionário, bem como as respostas dadas pelos quinze participantes cujos questionários entraram na amostra acima descrita estão transcritas a seguir, respeitando o “ipsem litem”.

1. Sons: naturais, humanos e tecnológicos. Diferencie.

R1. Naturais são sons que os animais emitem. Humanos são sons que os humanos fazem, tipo vozes e passos. Tecnológicos são sons que as máquinas emitem, tipo motor.

R2. Naturais: São sons de chuva, árvore, etc. Humanos: são sons de risos, palmas. Tecnológico: são sons de ventilador, avião e etc.

R3. Sons naturais são os que são encontrados na natureza, sons humanos são os sons feitos por humanos, sons tecnológicos são sons de: motos, carros, televisão.

R4. Sons naturais são os sons produzidos pela natureza, ex: sons das ondas do mar, árvores e etc. Sons humanos são sons produzidos pelo ser humano (corpo do ser humano) ex: bater palmas. Sons tecnológicos são sons vindo de algo que o ser humano criou. ex: televisão.

R5. Naturais são produzidos pela natureza, sem interferência de humanos. Humanos é o som que nós produzimos através de nosso corpo e os sons tecnológicos, são feitos da matéria que o homem criou ( pela criação do homem).

R6. Naturais = pássaros, chuva, trovão. Humanos = música, fala, gritos. Tecnológicos = máquinas, carros, celulares.

R7. Naturais são os sons que vem da natureza. Humanos são sons que somos acostumados a ouvir no dia a dia. E sons de tecnologia.

R8. Sons naturais: canto dos pássaros, queda d'água, trovão, ondas. Sons tecnológicos: assobios, batidas de palmas, conversas.

R9. Sons naturais são diferentes, portanto vem da natureza. Sons humanos são sons diferentes porque os humanos fez o som deles e a tecnologia porque é diferente de todos os sons.

R10. Sons naturais são sons gerados pela natureza. sons humanos são produzidos pelo ser humano como a voz. Sons tecnológicos são sons criados por máquinas ou algo inventado pelo ser humano.

R11. Naturais - Sons produzidos pela natureza. Humanos - Sons quando os humanos produzem som. Tecnológicos - São sons produzidos por aparelhos celulares etc.

R12. Sons naturais são sons que vem da natureza e não sofrem modificação humana. O som humano sofre a intervenção humana. Sons tecnológicos são feitos pelo homem.

R13. Sons naturais são sons não feitos pelo ser humano, são feitos pelos animais etc. Sons humanos são sons que os humanos fazem tipo passos, falar e etc. Sons tecnológicos são sons de máquinas tipo carros, aviões, motos e etc.

R14. Naturais - barulhos naturais. Humanos - barulhos produzidos pelo homem. Tecnológicos - barulhos criados pelo homem.

R15. Sons naturais são sons da natureza. Sons humanos são sons que escutamos no dia a dia. Sons tecnológicos, são sons da tecnologia.

2. De onde vêm os sons?

R1. É uma é que ondas que se formam na atmosfera devido a um estímulo capaz de movimentar tão rapidamente o ar.

R2. Das vibrações.

R3. Um movimento rápido que causa oscilações no ar.

R4. De vibrações sonoras.

R5. O som vem de ondas sonoras que através do ar ele se espalha.

R6. Os sons têm origem natural ou humana.

R7. Depende do atrito.

R8. Da natureza.

R9. Vem da música da natureza de instrumentos e objetos.

R10. De todos os cantos.

R11. Os sons vêm das ondas que se formam na massa atmosférica.

R12. Som nada mais que ondas que se formam na atmosfera devido a um estímulo capaz de mover-se rapidamente do ar.

R13. O som nada mais é que ondas que se formam na atmosfera devido a um estímulo que faz.

R14. Os sons vêm de ondas sonoras.

R15. De todos os cantos.

3. O que é ecologia acústica?

R1. São sons harmoniosos que não prejudicam a audição.

R2. É uma disciplina científica que nasceu da experiência da música e ecologia de Bernie Krause.

R3. A parte da ecologia que estuda os sons.

R4. Se refere a um único estímulo, o efeito do ambiente acústico.

R5. Um estudo do som ambiental, na natureza e em locais comuns, serve para ver como está a saúde da natureza, se por causa do homem mudou ou não.

R6. É a ciência que estuda o som.

R7. Sons que não prejudicam.

R8. A ecologia acústica tem a perspectiva macro e micro em todo o arranjo complexo de sons biológicos e outros sons ambientais que ocorrem em um local, sejam biológicos ou antropogênicos. A biofonia é todo o som que é gerado por organismos vivos, não humanos , no natural.

R9. A ecologia acústica e a natureza etc.

R10. São sons harmoniosos que não prejudicam.

R11. É uma disciplina científica que nasceu de um músico e ecologista.

R12. Se refere a ciência que estuda os efeitos do ambiente desde de suas paisagens.

R13. É uma disciplina científica que nasceu da existência do músico e ecologista Bernie Krause.

R14. Ciência da audição.

R15. São sons que não prejudicam.

4. O que é preciso para ouvirmos o som?

R1. Ouvido e que alguém ou algo faça som.

R2. Ouvidos, um bom tímpano e silêncio.

R3. Ouvido e alguém que faça som.

R4. Silêncio e ter audição.

R5. De ouvido. Mas o som sai através dos instrumentos musicais e com um conjunto de acordes.

R6. É necessário que o vento traga o som até você.

R7. Receptor.

R8. Ficar em silêncio.

R9. Ouvir, ouvindo objetos, instrumentos, carros, motos, árvores, pessoas e etc.

R10 É preciso de ouvido e também que alguém ou algo faça som..

R11. É preciso silêncio e audição.

R12. Ter ouvidos e não ser surda.

R13. O intervalo de frequências ouvido pelos seres humanos.

R14. Os timpanos.

R15. Atenção e calmaria.

5. Quais lições você aprendeu com a oficina de ecologia sonora?

R1. Eu aprendi a escutar sons mais calmos ou barulhentos.

R2. Há sons em todo canto e há todo tipo de som.

R3. Que existem sons em todo canto.

R4. O que são ruídos, sons naturais, humanos e tecnológicos, de onde vem o som.

R5. Que com o tempo e os progressos da humanidade com suas tecnologias avançando é cada vez mais difícil escutar o som natural e limpo.

R6. Aprendi que os seres humanos conseguem produzir paisagens sonoras harmoniosas e também paisagens sonoras ruins.

R7. Ouvir melhor os sons que não somos acostumados a ouvir.

R8. Ficar em silêncio e ter paciência.

R9. Muitas lições principalmente de onde vem o som.

R10. Que com o tempo com os sons tecnológicos, fica difícil ouvir os sons naturais, os sons limpos.

R11. Que é preciso silêncio para ouvirmos o som; que o som é uma melodia; e que às vezes é preciso só vento para alguns instrumentos.

R12. Que existem diferenças de sons existem sons bons e sons ruins.

R13. Aprendi que existem som naturais , humanos e tecnológicos, sobre audição e etc.

R14. Aprendi a diferença de som e ruído.

R15. Aprendi a focar mais nos sons.

6. Por que é que o homem, que criou a música, que é uma paisagem sonora harmônica e bonita criou também paisagens sonoras tão ruidosas e insalubres, como as que foram analisadas durante a oficina?

R1. Por causa da tecnologia que está avançando e por isso fazem sons.

R2. Porque além da música, eles também criaram máquinas, e elas produzem boa parte desse som.

R3. A música foi criada para relaxarmos, as paisagens sonoras ruidosas não foram criadas para ser agradável , só são resultados sonoros de algumas coisas. Ex: martelada, barulho de ônibus… existem também os que servem de alerta: buzina, sirene.

R4. Acho que para mostrar as partes boas e ruins das paisagens.

R5. Pelos avanços tecnológicos , para facilitar a locomoção das pessoas, criar veículos, para ganhar mais dinheiro, criar fábricas que atrapalham e causa bastante barulho.

R6. Vários sons misturados e fora de ordem causam paisagem sonoras ruins.

R7. O interesse pela música.

R8. Aprendi a escutar melhor.

R9. Criou para ouvir , para se expressar seus sentidos o que se sente. paisagens sonoras é o que ouvimos que vem da natureza, muitas foram analisadas umas boas outras ruins no toque ou ruído.

R10. Os homens criaram os sons que por causa da tecnologia que está cada vez mais avançando.

R11. Porque às vezes o som precisa de algo mais agudo para formar uma paisagem.

R12. O efeito da linguagem musical nas civilizações primordiais era expresso para fins religiosos.

R13. Os humanos criaram a música para servir o som e sentir a música.

R14. Para que haja diferença.

R15. Foi muito boa.

Com respeito à primeira questão, observamos, na análise das respostas, que R1 pecou ao definir sons naturais, R2, R6 e R8 apresentaram os conceitos por meio de exemplos, não os conceituando. R3 definiu sons tecnológicos por meio de exemplos. Das quinze respostas da questão 1, merecem destaque R4, R10, R11 e R13, pois, além de definirem, trouxeram exemplos. R5, por sua vez, se destaca pela precisão das definições, inclusive fazendo uso, de forma intuitiva, do conceito antropológico de cultura enquanto o acrescentamento que o homem faz àquilo que ele não fez, como cita Freire (1963, p.17|). Encontramos, ainda, algumas respostas incompletas e ou vagas (R7, R14 e R15). R12 confundiu as definições de sons humanos e tecnológicos. Por fim, algumas definições apresentaram textos originais, sem lançar mão do que foi discutido ao longo da oficina (R9). Contudo, percebemos, no geral, um bom feedback com respeito à precisão das respostas, mesmo sendo algo novo para eles.

Com respeito à questão 2, buscamos investigar se houve o entendimento de que o som nasce da vibração de corpos sonoros. Aqui, cabe-nos definir que corpo sonoro é aquele que vibra em frequências para as quais a orelha humana é sensível. Nesse sentido, percebemos que apenas R2 e R4 fizeram menção à necessidade das vibrações, muito embora não tenha ficado claro que essa vibração fosse de um corpo físico. Merecem destaque ainda as respostas que evocaram o mecanismo de propagação pelo ar (R1, R3, R5, R11, R12 e R13), muito embora este seja apenas um dos muitos meios elásticos através dos quais o som pode se propagar. Apesar da problematização em torno desse conceito, houve uma dificuldade, por parte dos estudantes, em perceberem as fontes sonoras.

Com respeito à questão 3, ficou evidente que conseguimos, por meio da contextualização dos conteúdos, incentivar os alunos a desenvolverem o gosto pela pesquisa e por colocarem em prática os conceitos tanto vistos em sala de aula, como em sua casa, como podemos ver em suas respostas (R2, R8, R11, R12, R13). Já as respostas (R1, R3, R4, R5, R6, R7, R9, R10, R14, R15) revelaram que esses não foram à busca e se limitaram aos conceitos prévios vistos em sala de aula.

A questão 4 foi um tanto problematizadora, bem como consistiu no cerne de nossa intervenção, pois é uma pergunta diálogo, uma vez que mexe com a dificuldade dos estudantes no que tange a fazerem silêncio, visto que era uma turma bem barulhenta e que os professores revelaram uma certa dificuldade ao lidar com eles por essa questão. Então o convite a ouvirem, a pensarem, e responderem sobre o que é preciso para ouvir o som, os levou a perceberem-se enquanto agentes ruidosos. Na análise, observamos respostas diretas e com pouca filtragem. Muito embora todas as respostas tenham levantado elementos necessários ao fenômeno auditivo, tais como a orelha, a fonte sonora, o silêncio, a faixa de frequência para a qual o ser humano é sensível, nenhuma delas forneceu uma compreensão mais integradora, considerando todas as dimensões do fenômeno, quais sejam a física, a neurofisiológica, a psicofísica e a fenomenológica. Evocando Capra, poderíamos dizer que nenhuma das respostas apresentou um pensamento sistêmico.

Na quinta questão, buscamos valorizar o ‘feedback’ com respeito à forma como eles foram atingidos pelos exercícios de sensibilização da escuta. Na análise das quinze respostas, observamos que a grande maioria apresentou elementos ligados à sensibilização da audição, numa visão antropocêntrica ou centralizada no ser humano, a qual o enxerga acima ou fora do meio (R1, R2, R3, R4, R7, R9, R11, R12, R13, R14 e R15), ou ainda relacionados com a ecologia profunda, a qual não separa seres humanos ou qualquer outra coisa do meio ambiente (R5, R6 e R10), na qual os problemas que eu crio se voltam, também, para mim mesmo. Apenas uma resposta (R8) apontou que, com o advento das tecnologias, vieram também a falta de paciência, o pensamento acelerado, a dificuldade de parar para pensar, sentir o ambiente, experimentar a cada vez mais rara oportunidade de ficar num lugar calmo, sereno, silencioso. Por fim, nenhuma das respostas apresentou elementos ligados ao pensamento restaurador da qualidade sonora dos ambientes.

Na sexta questão buscamos investigar se os estudantes construíram níveis de consciência a respeito da relação entre o que é bom, saudável, relacionado ao equilíbrio dinâmico e o que é mau ou insalubre, o que está, por sua vez, relacionado ao desequilíbrio. Ainda mais profundamente, se relacionaram tal desequilíbrio aos problemas socioeconômicos que caracterizam as sociedades contemporâneas, ficando evidente o pensamento deles e seus valores, colocando essas tendências opostas, lado a lado. Cinco das quinze respostas apresentaram compreensões ingênuas, considerando os desequilíbrios como sendo uma consequência natural da evolução das sociedades (R1, R2, R3, R4, R6). Nesta perspectiva, a tecnologia não pode ser vista como algo dissociado, mas integrado, e as sociedades, por suas vezes, poderiam ter adotado modelos de desenvolvimento sustentáveis, menos agressivos, a partir de núcleos ou comunidades sustentáveis, que busquem satisfazer suas necessidades sem diminuir as perspectivas do outrem ou de gerações futuras. Encontramos, também, algumas respostas vagas, confusas ou fora de contexto (R7, R8, R9, R10, R11, R12, R13, R14, R15). Apenas uma resposta apontou, ainda que de forma superficial, elementos de uma análise crítica, onde se enxerga tais problemas como resultado de sociedades de capital (R5).

Ação de pesquisa e ensino com graduandos

Na oficina realizada durante o XXIII Encontro do Programa de Ensino Tutorial de Pernambuco (XXIII PET PE), abrimos, em vários momentos, espaço para que os participantes pudessem falar a respeito do que ouviram e experienciaram. Num desses momentos, por ocasião do debate que se deu em torno da classificação dos sons registrados na audição das paisagens sonoras, silvestre e urbana, ouvimos comentários que apontam para a formação de consciência a respeito das características de tais paisagens, em sintonia, inclusive, com alguns princípios da ecologia profunda apontados por Capra (2006). Por exemplo, os participantes se referiram à paisagem silvestre como sendo “mais fácil de ouvir”, “ambiente de floresta”, “riqueza de sons”, “tranquilidade”, “bem-estar”, enquanto que, ao se referirem à paisagem urbana, relacionaram-na com “stress” e “bastante barulho”. Parece-nos evidente nas falas a percepção da diversidade de sons que compõem a paisagem silvestre, onde tais sons não competem. Ao contrário disso, harmonizam-se, o que de certa forma, está refletido nos termos “tranquilidade” e “bem-estar”.

Os participantes também perceberam a riqueza que pode ser ouvida na paisagem silvestre, formada por sons geofônicos e biofônicos, enquanto que na urbana, o predomínio do som das máquinas, reiterando a mesmice que caracteriza os grandes centros urbanos. Nos dias de hoje, a abundância de estímulos musicais é uma realidade inescapável. Somos bombardeados com informações de diferentes paisagens sonoras. Afinal, o que estamos ouvindo? Aonde a música está nos levando? Esta reflexão nos remete a um pensamento de Arthur Schopenhauer, qual seja o de que “a música exprime a mais alta filosofia em uma linguagem que a razão não compreende.”.

Ficamos felizes pela receptividade dos participantes que pôde ser percebida tanto pelos elogios, ao final da oficina (figura 8), bem como pelo alto número de respostas do questionário de avaliação final, veiculado via ‘google forms’, que teve uma frequência de 66,7%, considerando que responderam por vontade própria, sem vínculo com o certificado de participação.

Figura 8. Percepções dos participantes acerca da experiência vivenciada (fonte: os autores).

É importante dizer que a paisagem sonora silvestre colocada à escuta dos participantes não continha, de forma aparente, nenhum som antropogênico, o que pode ser observado na tabela 3. A afirmação freiriana que a cultura é o acrescentamento que o homem faz àquilo que ele não fez se reveste de singular significado quando pensamos nas paisagens enquanto acrescentamentos culturais. Assim sendo, surge a inquietação do porquê o mesmo homem ter produzido paisagens sonoras tão ruidosas e insalubres, em contraste com a música, paisagem sonora harmônica, salubre e que transcende a um nível de relação com a natureza constitutivo de várias virtudes. A música é referência do belo, da cooperação, da harmonização, da linguagem universal, da volta à nossa origem primata, nos reconectando com este mundo natural do qual viemos. É como o mito da caverna narrado por Platão, o qual, assim como a música, nos leva a uma realidade que transcende o usualmente percebido.

Nesse processo de escuta que os levou a ouvirem, a reconhecerem e organizarem os sons, foi necessário que eles se aproximassem deles. O curioso é que os sons já estavam lá, mas não foram percebidos, ou, como diz Freire, não estavam postos por si. Com os exercícios de sensibilização da audição é que tais sons passaram a ser percebidos e, portanto, tornaram-se objetos sonoros. O que antes era apenas um todo despercebido, passou a ter profundidade, percebidos destacados intencionais da escuta, agora pensante. Nessa dialogicidade, reconhecemos que é preciso nos conscientizarmos da necessidade de mudar a relação do homem com o meio ambiente, pois, quando levamos os participantes a interagirem mutuamente, tendo em vista estas virtudes apresentadas por Capra, o relacionamento entre eles e nós, mediadores, tornou-se mais afetuoso, houve mais concordância e confiança, ampliando o agir desse ser cultural, desse ser humano, com respeito ao meio ambiente. As seis perguntas que compuseram o questionário, bem como as respostas dadas pelos oito participantes que acessaram a plataforma estão transcritas a seguir, respeitando o “ipsem litem”.

1. O que são sons biofônicos, biofônicos e antrofônicos?

R1. Biofônico sons ocasionados por seres vivos, geofônico sons da natureza e antrofônico sons causados por máquinas, carros.

R2. Sons biofônicos são os provenientes de seres vivos, os geofônicos são os que vêm de seres não vivos (natureza física) e o antrofônico são os que a humanidade produz.

R3. Biofônico - sons gerados por organismos vivos. Geofônico - sons gerados por forças inanimadas da natureza. Antrofônico - sons gerados pelo homem.

R4. São sons naturais biológicos, são sons naturais não biológicos, são sons dos humanos.

R5. Sons gerados pelos animais e plantas, pela Terra e pelas coisas criadas pelo homem.

R6. São sons emitidos por seres vivos, seres não vivos naturais e seres humanos.

R7. Biofônico- são sons produzidos por animais, os geofônicos são produzidos pela natureza, os antrofônicos são sons produzidos por humanos.

R8. Biofônico - sons produzidos por organismos vivos, porém não de origem humana. Geofônico - sons provenientes da natureza. Antrofônico - sons emitidos por humanos ou de objetos de origem humana.

2. De onde vêm os sons?

R1. Os vem de atividades sejam naturais, biofônicas ou antrofônico. Depende do ambiente que você está.

R2. O som vem de um ente físico que produz ondas sonoras, e para se produzir ondas sonoras é necessária a capacidade de vibrar.

R3. Das ondas.

R4. Das ondas físicas.

R5. De todo o ambiente, seres vivos e não vivos.

R6. De qualquer coisa que vibra gerando uma onda de propagação.

R7. Da vibração de algum objeto.

R8. Da existência.

3. O que é ecologia acústica?

R1. A ecologia acústica trata de todos os sons que nossos ouvidos conseguem capturar.

R2. É um ramo da ecologia onde se pode avaliar a paisagem sonora de ambientes e verificar até suas condições e se os ruídos provenientes de determinado local estão de fato de acordo com o que deveria.

R3. Estudo dos sons de um ecossistema.

R4. São sons da natureza.

R5. A percepção da ecologia por meio dos sons, cada ser tem uma assinatura acústica.

R6. É um estudo de paisagens sonoras.

R7. Uma área que estuda as propriedades do som e sua interação entre o ambiente e os seres humanos

R8. É a sonoridade proveniente das assinaturas únicas vindas da biodiversidade.

4. O que é preciso para ouvirmos o som?

R1. Basta ter uma boa concentração, pois sons muitos repetidos podem passar despercebidos pelo fato de se repetir.

R2. O aparelho auditivo funcional, com o perfeito funcionamento dos órgãos do sistema auditivo/labiríntico.

R3. Meio de propagação.

R4. Ter um aparelho auditivo saudável.

R5. A capacidade de perceber as frequências.

R6. Que tenha vibração.

R7. Tímpano, martelo, bigorna, estribo, cóclea são essas partes do corpo, as quais funcionam em conjunto, que precisamos ter para conseguir ouvir o som.

R8. Capacidade auditiva sensível às frequências sonoras.

5. Quais lições você aprendeu com a oficina de ecologia sonora?

R1. Que devo me concentrar mais, ouvir mais sons e apreciar os sons da natureza. A música é uma arte e os sons vem da música.

R2. Eu confesso que não conhecia a maioria dos conceitos que foram trabalhados, esses debates sobre ecologia acústica nunca foram trabalhados em nenhum âmbito que eu já passei, vou sair certamente com mais repertório.

R3. Muitas coisas

R4. Os sons precisam ser harmônicos para ser agradável.

R5. A importância da bioacústica e como afetamos o ambiente pelos sons que produzimos, assim como somos afetados por ele, toda a importância relacionada ao ambiente e a música, como nós nos habituamos aos sons de fundo.

R6. Que existe som em todas as partes e que devemos passar a ouvir mais para entender melhor algumas coisas.

R7. Sobre o tipo sons que são biofônico, o geofônico e o antrofônico, sua relação com o ambiente, o que o ruído branco, as partes do ouvido que são responsáveis pela captura da vibração sonora, só que nessa oficina teve outras coisas mais a internet não colaborou muito.

R8. Que estamos acostumados com pequenos ruídos e isso nos faz não ouvi-los; Que existem vários tipos de nomeações para determinadas origens sonoras; Somos seres extremamente áudio-localizados.

6. Por que é que o homem, que criou a música, que é uma paisagem sonora harmônica e bonita criou também paisagens sonoras tão ruidosas e insalubres, como as que foram analisadas durante a oficina?

R1. Porque tudo faz parte, e os sons dependendo de qual seja a classificação, continua sendo uma arte.

R2. Os excessos e repetições resultantes do funcionamento dos ambientes sociais já se instauraram como som "ambiente" do meio humano, e não tem exatamente uma intencionalidade nem um único responsável. Diferente da música que é um

movimento voluntário de produzir sons agradáveis.

R3. Porque o homem é inconstante.

R4. Pelo aumento das tecnologias como indústrias em execução.

R5. Devido aos processos mecânicos, industriais e urbanos por ele desenvolvido, que produz sons e ruídos de maneira desordenada e caótica.

R6. Que existe som em todas as partes e que devemos passar a ouvir mais para entender melhor algumas coisas.

R7. Porque o ser humano produz aquilo que entende ter necessidade, então ao passo que precisamos de coisas bonitas e harmônicas para que possamos ter um laser, calma, etc, também precisamos das grandes cidades e os materiais envolvidos nela.

R8. Isso foi consequência de suas criações, e os quais também servem para usar como sinal como buzina de carro, pois é mais fácil chamar a atenção de alguém ao meio como um ruído do que uma melodia, porém quando se junta muitos carros e todos buzinando vai criar um ambiente estressante e vai fazer com que os motoristas buzinam mais. Então essa paisagem sonora ruidosa é consequência humana pelo fato de não saber utilizar com moderação as suas criações que causam ruído e por usar demais acaba fazendo outros usarem também. O ser humano não se contenta com o básico, e isso pode ser bom e ruim, ao mesmo tempo.

Com respeito à primeira questão, todas as oito respostas estão de acordo com a fundamentação encontrada em Krause (2016), como pode ser visto acima. Um dos participantes construiu ainda uma diferenciação a partir dos conceitos de natural e de cultural (R4), ao afirmar que “são sons naturais biológicos, são sons naturais não biológicos, são sons dos humanos”, sintetizando o que havia sido discutido no coletivo.

Na segunda questão tivemos por objetivo investigar se eles internalizaram a forma de pensar que aponta para a necessidade de corpos vibrantes como a fonte das ondas. Das oito respostas catalogadas, três apontaram para tal necessidade (R2, R6 e R7). Interessante notar que três das respostas tiveram relação direta com a pergunta anterior, onde os participantes, de forma genérica, apontaram para fontes biofônicas, geofônicas ou antrofônicas (R1, R5 e R8). Por fim, duas respostas (R3 e R4) apontaram que o som vem das ondas, entendendo-as como fonte e não meio de transferência de energia. Contudo, fica clara a presença de elementos da física e da biologia nas respostas.

Na terceira questão, que trata da ecologia acústica, percebemos que cinco das oito respostas (R1, R3, R4, R5 e R8) centraram a atenção na análise dos sons da natureza (bioacústica), afirmando coisas do tipo “todos os sons que nossos ouvidos conseguem captar", “estudo do sons de um ecossistema”, “sons da natureza”, “percepção da ecologia por meio dos sons” e “sonoridade proveniente das assinaturas únicas vindas da biodiversidade”, ao invés de centrarem a atenção no estudo da relação, no estudo do equilíbrio/desequilíbrio. Apenas duas respostas parecem apontar para esta dimensão, onde aparecem os termos “avaliar” (R2) e “interação” (R7). Por outro lado, apenas uma resposta citou os estudos de paisagens sonoras (R6), mas de forma vaga.

Na quarta questão buscamos investigar se os participantes conseguiram, apesar do curto espaço de tempo da oficina, sintetizar as discussões em direção a um modelo explicativo que considerasse toda a aventura sonora, desde a fonte que vibra, o meio no qual se propaga, o mecanismo neurofisiológico da orelha humana, e a percepção cultural e fenomenológica do som. Neste sentido, nenhuma das respostas contemplou de forma holística a aventura sonora. Com exceção da primeira resposta (R1), a qual considerou a necessidade da sensibilização e do pensar auditivo, as outras sete respostas consideraram apenas aspectos neurofisiológicos e ou físicos em suas explicações.

Na quinta questão, buscamos, de forma aberta, ouvir o feedback do significado para eles das experiências vivenciadas. Das oito respostas catalogadas, três (R1, R5 e R6) apontaram para o objetivo central de nossa investigação, qual seja o de que precisamos sensibilizar as pessoas para os problemas dos ambientes acústicos, como forma de construir ações conjuntas de melhoria. Tais respostas evocaram percebidos do tipo “concentrar mais, ouvir mais sons e apreciar os sons da natureza”, “os sons precisam ser harmônicos para ser agradável”, “a importância da bioacústica e como afetamos o ambiente pelos sons que produzimos, assim como somos afetados por ele” e “devemos passar a ouvir mais para entender melhor”, o que aponta fortemente para a viabilidade de atividades do tipo da que desenvolvemos como meio para a educação sonora.

Por fim, na sexta questão buscamos investigar se eles perceberam que os problemas dos ambientes acústicos são, em suas origens, semelhantes aos problemas que geram os outros tipos de poluição, analisando-os a partir de uma perspectiva crítica. Neste viés, não percebemos em nenhuma das respostas uma análise a partir desta perspectiva. Das oito respostas catalogadas, quatro delas (R2, R4, R5 e R6) apontam que os problemas dos ambientes acústicos são uma consequência natural do processo de evolução das sociedades, em detrimento a uma análise histórico-crítica que poderia revelar outros níveis de consciência a respeito do objeto de estudo. Outras duas respostas (R1 e R3) parecem apontar para a vertente de que tudo é arte e a inconstância do ser humano está refletida nestes extremos música-ruído.

Este questionário foi necessário para nossa compreensão, análise e reflexão crítica, para que percebêssemos que o processo de avaliação da aprendizagem segue em busca de novos conceitos e compreensões, analisadas pela reflexão dos docentes. Este movimento de ida e vinda, que é práxis em sua essência, nos coloca novos desafios a serem trilhados, reinaugurando a pesquisa e o ensino, que, nesta perspectiva crítica, são indissociáveis.

O nosso projeto de pesquisa e ensino, intitulado “música e meio ambiente: trilhando o caminho da ecologia sonora”, com público alvo alunos do ensino médio e alunos do ensino superior foi um grande desafio, por ser apresentado um universo novo, interativo e interdisciplinar, no qual foram abordados conteúdos referentes à ecologia, fisiologia do ouvido, música e física, em uma perspectiva contextualizada, onde os estudos de paisagens sonoras e a educação sonora constituíram-se na ponte entre tais conteúdos o objetivo central de embelezar o mundo e o coração das pessoas. Em minha vivência como futura educadora, foi e continuará sendo muito importante poder executar essa rede de conteúdos e entender que as limitações precisam ser vistas como obstáculos do bem que, para serem alcançados e reverberados de forma positiva e inclusiva, precisa-se de amor, simplicidade e dedicação, a fim de que se possa inovar e incluir, para que todos possam ser tocados. Não me limitou o fato de ser graduanda em licenciatura em ciências biológicas ajudar uma menina surda que assistia uma aula de física. Convidada pelo supervisor da sala, entrei como tradutora, em libras, dos conteúdos e isso sensibilizou tanto a aluna, quanto os professores presentes. Ficaram emocionados e parabenizaram a ajuda à jovem surda que se sentiu acolhida e veio falar comigo para agradecer e se tornou uma grande parceira amiga.

A ecologia sonora nos ajuda e me a ajudou a entender que assim como a natureza, de forma orgânica, organiza suas paisagens, assim também é o homem organizando suas paisagens urbanas. Essa organização parte de baixo para cima, vem do ser humano, cidadão, indivíduo que se expressa na vida da cidade, ou meio no qual está inserido, seja cidade ou campo. É difícil uma pessoa sozinha querer compor um som de uma cidade de cima. O que é possível é que, a partir do momento de conscientização do ser humano, do cidadão, ele entende que tanto o som que ele ouve quanto o som que ele produz afeta esse todo. Daí a necessidade de cuidar daquilo que vou produzir e o que vou colocar de impulso sonoro em meu ambiente. Se eu tenho consciência de que isso está afetando os outros e escuto o que vem de retorno, esse “eu” se torna “nós” e vamos começar, sim, a compor, e, se um dia eu tomo essa atitude, junto com todos os outros, assim como numa orquestra, eu não vou querer impor meu som sobre todos os outros. Eu vou querer ouvir o do próximo também. É essa qualidade sonora que de fato fica interessante e criativa. Dessa forma, esse exercício de sensibilização pressupõe que é importante eu ter consciência do que escuto e também do que produzo. Se eu acho que só o som que produzo é importante, eu vou, de forma autoritária, impor e com isso só temos a perder, gerando estresse, competição e desarmonia.

O que observamos de início foi uma sala em que os alunos faziam muito barulho e não se escutavam e nem escutava o que os professores falavam e, nesse exercício de sensibilização de escuta, eles puderam prestar mais atenção e ficaram em silêncio. Os elementos evocados por Capra, utilizados por nós na oficina, relacionados à cooperação, restauração, harmonia, equilíbrio e a importância com o todo, fizeram se importarem com a audição pensante, tanto internamente quanto externamente ao ser.

Assim como Pitágoras via o mundo por meio dos números, expandindo essa visão ao universo macro e, também, micro, observa relações matemáticas na música, admitindo que existem determinadas frações que causam uma consonância, uma coisa agradável em nós. Essa relação fracionada, conectada com os números perfeitos para os pitagóricos, que são 1, 2, 3 e 4, gera essa consonância, esse som agradável aos ouvidos. Essa semente, nascida lá na Grécia antiga, atravessa os séculos e chega ao mundo de hoje fortalecida e expandida na mesma medida em que a matemática se expandiu frente aos crescentes desafios da ciência emergente. Fiéis à esta maravilhosa relação entre ciência, matemática e música, também trouxemos à discussão elementos fundamentais da acústica, os quais causaram surpresa, pois muitos dos participantes sequer tinham noção que havia afinidades entre estes mundos aparentemente díspares.

Em nossa perspectiva freiriana, como educadores sonoros, devemos trazer luz ao conhecimento e revitalizar esse diálogo professor-aluno por meio dos exercícios de sensibilização da escuta, para o qual é preciso haver solidariedade entre o refletir e o agir de seus sujeitos e, assim, caminhamos em direção a um mundo transformado e humanizado. Com isso, não podemos reduzir nossa ação docente a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, mas promover o diálogo e a autonomia, enaltecer a capacidade intelectual do ser humano como potência que deve ser valorizada e desenvolvida.

Esse universo de múltiplas possibilidades tem sido o motor, a inquietação, o grau de beleza que nos motiva. O ‘ideal’, platônico ou não, é o embelezamento do mundo das paisagens sonoras, sendo a música o referente do belo, a paisagem sonora ideal, ponte entre a mundanidade e a transcendentalidade. Contudo, tal embelezamento, numa indissociável relação dialética entre homem e mundo, “ser” e “não ser”, não pode ser alcançado sem que a beleza se constitua, também, no coração das pessoas. Assim como Freire (1978, p.12) afirma que é ilusão achar “que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres, deixando virgens e intocáveis as estruturas sociais”, também é impossível mudar a relação com o meio ambiente, sem mudar o coração das pessoas.

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