ARTE & AMBIENTE NOS ENREDAMENTOS DE UM “MARCO TEMPORAL”
Cláudia Mariza Mattos Brandãoi
Resumo: O texto aborda questões relativas a mentalidades e comportamentos destrutivos das relações sociais e da natureza, utilizando a fotografia como elemento simbólico que (re)apresenta aos leitores/as recortes/sínteses capturadas nos trajetos cotidianos. Além disso, dialogo com Ailton Krenak e suas “Ideias para adiar o fim do mundo”.
No momento da escrita deste texto, o Congresso Nacional está mobilizado para a votação do Marco Temporal. Essa é uma tese jurídica que tramita no parlamento há quase 20 anos, segundo a qual os povos indígenas têm direito à demarcação de terras as quais já ocupavam ou disputavam na data de promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988.
Habitamos um território que foi roubado dos povos originários pelos colonizadores portugueses. São terras que continuam a ser incessantemente saqueadas em suas riquezas naturais. Não fizemos delas um lugar melhor. Ao contrário, a destruição granjeia cotidianamente.
O tema proposto para esta edição da nossa revista é “Educação Ambiental para repensar valores”. A frase sugerida para orientar as discussões é de Dean William Inge: “O importante da educação é o conhecimento, não dos fatos, mas dos valores”. E esta frase, frente ao que testemunhamos acontecer no nosso Congresso, me faz questionar: quais são os valores do povo brasileiro?
Se os posicionamentos manifestados pelos políticos representam o pensamento da maioria, me resta chamar Aylton Krenak para esclarecer:
A ideia de nós, humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua. (KRENAK, 2019, p. 22-23).
Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses, seguimos à risca o “modelito” civilizatório imposto: morte e degradação. Ódio e violência. Exclusão da maioria da população, riquezas para poucas pessoas. E neste caminho só conseguiremos destruir mais rápido as nossas condições de sobrevivência sobre o planeta. Sim, o planeta sobreviverá. Mais do que isso, Gaia se recuperará, com a diferença que a espécie humana não estará mais impedindo que a vida brote. Afinal,
O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias. (KRENAK, 2019, p. 23).
Figura 1
Neste contexto resta perguntar: em que mundo queremos projetar a nossa imagem/sombra? Será que estamos realmente decididos a substituir a vitalidade da natureza pela impermeabilidade do asfalto e do concreto? (Figura 1)ii
Creio que respostas certeiras para tais indagações não são possíveis. É preciso lembrar que um alto percentual da população brasileira está envolvido com a manutenção da própria vida, lutando por alimentação. Nessa perspectiva, reflexões críticas, isentas, sobre os direitos dos povos originários e a preservação da natureza são inviabilizadas.
A emergência de tais pautas não conquista muitos corações e mentes. De um lado temos uma parcela significativa de pessoas envolvidas com problemas básicos, cotidianos, do outro, uma minoria detentora de grandes poderes defendendo interesses nefastos, vinculados ao mercado, ao capital. A discussão é complexa e não tenho a pretensão de realizar tal análise.
Busco neste texto colaborar para a problematização acerca de mentalidades e comportamentos destrutivos das relações sociais e da natureza. Nesse sentido, utilizo a fotografia como elemento simbólico que (re)apresenta aos leitores/as recortes/sínteses capturadas nos trajetos cotidianos. Tais imagens destacam detalhes que muitas vezes se perdem na dinâmica dos deslocamentos diários, assim como os discursos da arte urbana.
Refiro-me a intervenções como a do artista Xadalu (Figura 2), no centro de Porto Alegre (RS), ou como as intervenções realizadas em 2019 num tapume, na frente do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (Pelotas, RS) (Figura 3).
Figura 2
Figura 3
São discursos que revelam pensamentos críticos, posicionamentos políticos claros frente à realidade vigente. Nós, habitantes das cidades, não podemos esquecer a nossa dívida impagável com os povos das florestas, que lutam pela sua existência física e cultural há mais de 500 anos:
Essa tensão (entre o Estado brasileiro e os povos indígenas) não é de agora, mas se agravou com as recentes mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro, que estão atingindo de forma intensa centenas de comunidades indígenas que nas últimas décadas vêm insistindo para que o governo cumpra seu dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus locais de origem, identificados no arranjo jurídico do país como terras indígenas. (KRENAK, 2019, p. 37-38).
Figura 4
Andarilhando pelo Brique da Redenção (POA, RS), uma feira de artesanato e antiguidades, me deparei com uma tenda com inúmeros adereços com “símbolos da pátria” (Figura 4). Fiquei pensativa enquanto registrava as imagens desse emaranhado de pins, fivelas e broches. O que tudo isso representa afinal? Morte, violência e ódio? Destruição, devastação e abandono?
O que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais – sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros -, é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza. (KRENAK, 2019, p. 37-38).
Figura 5
Complementando o panorama que atraiu o meu olhar enquanto andarilhava pelo Brique, avistei um cabide onde várias jaquetas estavam dispostas. Uma em particular chamou a minha atenção, pelo escudo que ostentava na manga. Trata-se do símbolo da Força Expedicionária Brasileira (Figura 5), a FEB, que lutou na Itália durante a 2ª Guerra Mundial. Ou seja, um símbolo explícito da morte e da destruição.
Será a “cobra que fuma” ainda uma representação válida do nosso país, dos anseios do nosso povo? Parece que sim, pois se assim não o fosse não estaria à venda. Creio que o número de clientes interessados nela pode não ser grande, mas existem, com certeza.
A discussão entabulada até aqui demonstra que reflexões acerca dos direitos indígenas, em especial à terra, e da preservação ambiental estão intrinsecamente implicadas. Não são assuntos diferentes. Ambos apontam para a necessidade de uma reorientação das mentalidades e, por consequência, dos comportamentos, pois:
Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmo vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos. (KRENAK, 2019, p. 44).
Figura 6
Em 2018, circulou no Instagram a imagem acima (Figura 6), com autoria anônima. Identifico nela uma bela e potente representação simbólica das Américas, dos diferentes povos originários americanos. São muitos e diferentes, porém, igualmente empenhados na preservação de Gaia, visto que entendem que ela é a fonte da vida humana. Como argumenta Krenak:
Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. (KRENAK, 2019, p. 69-70).
Os fatos políticos que estão em curso no país neste exato momento demonstram claramente o ideário do “homem como medida das coisas”. E enquanto tal parâmetro permanecer, tanto os povos indígenas como a natureza correm risco de “morte”, cultural e física.
Sonhar ainda é possível, mas lutar é mais do que nunca necessário!
Referência:
KRENAK, Ailton. IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
i Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), Mestre em Educação Ambiental, é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Artes. Coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).
http://www.photographein-pesquisa.com.br/
http://www.clamar-art.com
claummattos@gmail.com
ii Todas as imagens apresentadas no texto são de minha autoria.