O PAPEL DAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS E DO CONTROLE SOCIAL NO ENFRENTAMENTO DA CRISE CLIMÁTICA
Eduardo Gonçalves Gresse e Pedro Roberto Jacobi 26 de Abril de 2024 (atualizado em 26 de Abril de 2024)
Após o pleito nacional de 2022, as eleições municipais de 2024 serão muito importantes para os rumos das cidades e do país com relação à governança climática e às perspectivas de transformações necessárias para o desenvolvimento urbano sustentável
Enquanto
a ciência alerta para a iminência de não
atingirmos as metas do acordo de Paris e para os riscos que isso
representa 1 , os impactos das mudanças climáticas têm
aumentado a cada ano. O ano de 2023 foi o mais quente já
registrado na história 2 e inúmeras catástrofes
atribuídas à combinação entre aquecimento
global e o fenômeno climático El Niño foram
registradas no Brasil e ao redor do mundo 3 . Os chamados “eventos
climáticos extremos”, como por exemplo as recentes ondas
de calor com temperaturas médias bem acima do normal, têm
ocorrido com cada vez mais frequência e afetado a qualidade de
vida nas cidades. De acordo com o último relatório
síntese do Painel Intergovernamental sobre Mudança do
Clima da ONU (IPCC, para a sigla em inglês), os efeitos
negativos das mudanças climáticas já observados
têm prejudicado sobremaneira a saúde humana, seus meios
de subsistência e a infraestrutura de sistemas urbanos 4 .
As cidades são atores-chave para se entender os problemas e potenciais soluções para a crise climática. Mais da metade da população mundial vive hoje em cidades 5 , e projeções recentes revelam uma tendência crescente, indicando que até 2050 essa proporção poderá chegar a 70% 6 . Áreas urbanas consomem a maior parte da energia do mundo e são responsáveis por emitir uma grande parcela das emissões globais de gases de efeito estufa 7 . Ao mesmo tempo, elas são extremamente vulneráveis aos impactos e riscos associados às mudanças climáticas. Portanto, as cidades e seus respectivos processos de desenvolvimento têm enorme influência na governança climática em diferentes escalas de governança (local, regional, nacional e global), tanto no que diz respeito à redução das emissões (mitigação) quanto com relação à elaboração e implementação de estratégias de adaptação às mudanças climáticas que podem ser replicadas ou inspirar soluções em diferentes contextos socioambientais 8 .
Não há dúvidas de que as cidades brasileiras terão de estar cada vez mais preparadas para eventos climáticos extremos, sobretudo as crescentes ondas de calor e volumes de chuva que muitas vezes têm sido em um ou dois dias maiores do que o volume pluviométrico médio mensal
No Brasil, há municípios que têm se engajado em redes de ação climática e elaborado planos para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. No entanto, poucas são as cidades com planos e ações concretas implementadas e há enorme disparidade tanto no enfrentamento a eventos climáticos que já ocorrem com cada vez mais intensidade quanto na capacidade das cidades para adaptar-se às mudanças climáticas e minimizar os riscos e impactos iminentes 9 . Mesmo as cidades consideradas pioneiras em ação climática no Brasil ainda estão muito longe de um modelo de desenvolvimento sustentável e resiliente às mudanças climáticas. A cidade de São Paulo, por exemplo, tem um histórico de protagonismo nacional e internacional em redes de ação climática e de pioneirismo no estabelecimento de leis e políticas ambientais e climáticas. O Plano Diretor de 2014 originalmente contemplava ações climáticas promissoras, tais como os chamados “Eixos de Estruturação da Transformação Urbana” que pretendiam estimular o uso do transporte público, permitindo um maior adensamento nas faixas próximas aos corredores de ônibus e às estações de metrô. Tal medida ajudaria a evitar o espraiamento da cidade sobre reservas verdes e áreas rurais e, somado à eletrificação do transporte público, poderia reduzir significativamente as emissões e a poluição do ar 10 .
No entanto, o Plano Diretor de São Paulo foi recentemente revisado e a lei de zoneamento atual deturpa esses instrumentos urbanísticos, estimulando a verticalização descontrolada e prejudicial às áreas urbanas. De fato, São Paulo carece de um planejamento urbano mais robusto e integrado e de uma gestão pública que alinhe o atendimento às demandas básicas da população com as necessárias transformações urbanas e sociais para que a cidade ofereça qualidade de vida e resiliência em um mundo com temperaturas médias mais altas. Entre elas destacamos a necessidade de investimento em infraestrutura e mobilidade sustentáveis, eficiência energética, a implementação de políticas e leis que garantam uma ambiciosa redução nas emissões de gases de efeitos estufa e com isso a melhoria na qualidade do ar, bem como uma gestão hídrica transparente e eficiente 11 .
Não
há dúvidas de que as cidades brasileiras terão
de estar cada vez mais preparadas para eventos climáticos
extremos, sobretudo as crescentes ondas de calor e volumes de chuva
que muitas vezes têm sido em um ou dois dias maiores do que o
volume pluviométrico médio mensal 12 . Segundo os dados
da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, no
ano de 2023, cerca de 14,5 milhões de pessoas foram afetadas
por eventos climáticos extremos e mais da metade dos
municípios brasileiros decretaram situação de
emergência ou estado de calamidade, gerando gastos de R$1,4
bilhão 13 . De acordo com o CEMADEN (Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), “o Brasil bateu
recorde de ocorrências de desastres hidrológicos e
geohidrológicos em 2023”, com 1.161 eventos de desastres
registrados, 716 deles associados a eventos hidrológicos, tais
como transbordamento de rios, 445 de natureza geológica, como
por exemplo deslizamentos de terra 14 . Neste contexto, cabe destacar
que persistentes problemas estruturais, tais como as enormes e
crescentes desigualdades sociais, o uso irregular da terra, bem como
a impermeabilização das várzeas de rios e os
consequentes problemas na drenagem de águas pluviais
contribuem para a intensificação dos efeitos dos
eventos climáticos extremos sobre a população e
o meio ambiente. Vale destacar também que os impactos e
efeitos adversos das mudanças climáticas sobre a saúde
e o bem-estar humano são especialmente pronunciados entre os
residentes urbanos que enfrentam marginalização
econômica e social 15 .
Entre
as principais causas do grande impacto dos eventos climáticos
extremos sobre a população brasileira destacamos a
ausência de políticas de ação climática
integradas e, neste contexto, a insuficiência ou incapacidade
das políticas públicas na gestão do uso do solo,
assim como a setorialidade na implementação de
políticas ambientais com impacto no planejamento urbano. Os
desastres mais comuns e devastadores após um evento climático
extremo expõem não somente as enormes vulnerabilidades
sociais e ambientais dos territórios, mas sobretudo o
despreparo das autoridades e a insuficiência de iniciativas de
prevenção de desastres climáticos, o que se
reflete na fragilidade na capacidade de enfrentamento aos impactos
das mudanças climáticas nas áreas urbanas 16 .
De fato, a grande maioria das cidades brasileiras ainda estão
mais preocupadas em resolver problemas de curto prazo através
ações e abordagens setoriais limitadas do que em
responder, de forma integrada e sustentável, aos impactos já
observados e iminentes das mudanças climáticas.
Diante da janela de tempo cada vez menor para evitarmos cenários climáticos ainda mais extremos, a mobilização de diversos atores da sociedade e o controle social são fundamentais para o enfrentamento da crise climática, que não é somente uma crise ambiental, mas já é também e acarretará múltiplas crises sociais e econômicas
O
maior desafio para as cidades brasileiras se tornarem sustentáveis
e resilientes é a implementação de políticas
que garantam a articulação entre desenvolvimento urbano
e a necessidade de mitigação e adaptação
às mudanças climáticas. Como destacado acima, há
ainda uma enorme lacuna em termos de implementação no
Brasil, na medida em que poucas cidades têm políticas
climáticas municipais, sendo que uma minoria das políticas
municipais existentes estabelece diálogo entre o seu
respectivo Plano Diretor e regulamentação ambiental,
como por exemplo as leis de uso e ocupação do solo 17 .
O desenvolvimento urbano brasileiro têm sido historicamente
influenciado pela pressão do setor imobiliário e por
agendas de uso e ocupação do solo imediatistas em
detrimento de ações mais efetivas e de longo prazo,
como por exemplo as chamadas SbN (soluções baseadas na
natureza), que utilizam os processos naturais para proteger as
cidades e reduzir os impactos das mudanças climáticas
18 . Tais soluções podem incluir a conservação
e a implantação de áreas verdes e a recuperação
de ecossistemas, como mangues e florestas, que ajudam a controlar
enchentes, absorver carbono e reduzir a poluição
atmosférica 19 .
É
preciso reconhecer que processos de transformação tais
como os necessários para se promover resiliência
climática costumam envolver muitos conflitos e demora na sua
realização. Diante da janela de tempo cada vez menor
para evitarmos cenários climáticos ainda mais extremos,
a mobilização de diversos atores da sociedade e o
controle social são fundamentais para o enfrentamento da crise
climática, que não é somente uma crise
ambiental, mas já é também e acarretará
múltiplas crises sociais e econômicas. É
igualmente importante que os planos de governo e gestores públicos
incluam a participação social e a justiça
climática como pontos centrais da ação climática
municipal. Após o pleito nacional de 2022, as eleições
municipais de 2024 serão muito importantes para os rumos das
cidades e do país com relação à
governança climática e às perspectivas de
transformações necessárias para o
desenvolvimento urbano sustentável. Afinal de contas, é
nas cidades que os principais desafios e as principais ações
de enfrentamento às mudanças climáticas se fazem
presente.
Portanto, para que o desenvolvimento urbano sustentável e resiliente seja possível, é preciso promover o fortalecimento da democracia e de agendas políticas municipais que priorizem a ação climática como necessidade emergencial e até mesmo como oportunidade de promover o desenvolvimento sustentável. Além disso, é preciso mobilização e controle social para combater o negacionismo climático, bem como desarticular as narrativas e agendas políticas baseadas no chamado “retardamento climático” (do inglês “climate delayalism”), que aceitam a existência das mudanças climáticas, mas justificam a inação ou esforços e abordagens convenientes ao status quo e portanto inadequadas para o enfrentamento da crise climática 20 . Tais ações são necessárias não somente em anos eleitorais, mas também ao longo das gestões municipais. Por isso, para além do voto é extremamente importante que a população pressione os governantes ao longo de seus respectivos mandatos de modo a garantir que políticas climáticas não sejam ex-post, ou seja, mera reação a catástrofes já ocorridas, mas ex-ante: medidas que garantam a prevenção de riscos e impactos e promovam transformações rumo a um modelo de desenvolvimento que garanta justiça social, prosperidade econômica e sustentabilidade ambiental nas cidades e em todo o país.
BIBLIOGRAFIA
Anelli, Renato L. S. (2020). As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology and Sustainability, v. 3, p. 4-17. Disponível aqui.
Anelli, R., & Lima, R. P. (2023). Plano de Drenagem Urbana do município (PDD) e Plano Diretor Estratégico (PDE): resistência à integração e seus efeitos nos impactos das mudanças climáticas em São Paulo...
Eduardo Gonçalves Gresse é cientista político e sociólogo, pesquisador sênior no CLICCS (Centro de Excelência “Climate, Climatic Change, and Society”) na Universidade de Hamburgo, Alemanha, e pesquisador visitante no IEE-USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo).
Pedro Roberto Jacobi é sociólogo e especialista em planejamento urbano, professor titular sênior e pesquisador do IEE-USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) e desde 2011 é Presidente do Conselho de Governos Locais pela Sustentabilidade ICLEI-América do Sul.