A AMOROSIDADE NO ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA ESCOLAR1
Marina Patrício de Arruda2
Geraldo Antônio da Rosa3
O presente artigo apresenta reflexões de professores a respeito do conceito de amorosidade e seu desdobramento no espaço de convivência escolar tendo em vista os argumentos de teóricos contemporâneos como Edgar Morin e Humberto Maturana.
Considera-se que as relações humanas se mostram, a cada dia, mais conflitantes, aumentando a descrença na escola como espaço de construção de conhecimento, de alegria, de amorosidade e de formação de pessoas conscientes e solidárias. Nesse sentido, os sentimentos em relação à escola têm sido de desencanto e impotência diante dos inúmeros problemas cotidianos. Um deles, é ―[...] a não aceitação do outro como legítimo outro na convivência‖ (MATURANA, 1998, p. 23). Questões ligadas à compreensão, à afetividade, às emoções constituem problemas constantes no cotidiano da vida e exigem estratégias complexas de superação pois envolve questões políticas, econômicas, sociais e pedagógicas. Este desafio sinaliza que a possibilidade de transformação pode estar na busca de diálogo amoroso para os espaços de convivência.
As ideias de Maturana (1998) indicam que educar é conviver num espaço de aceitação recíproca, delineando assim, um novo caminho a ser percorrido pela escola. A educação exige de nós um olhar para a complexidade do humano como um exercício fundamental do pensamento contemporâneo (MORIN; 2011). E não se trata de um simples acessório para olhar diferente, mas um novo posicionamento que envolva a (re)construção do sistema de relações entre pessoas e sociedade. Para Morin (2002, p. 37): “Conhecer o humano não é separá-lo do universo, mas situá-lo nele”. Nesse sentido, a função docente inclui também o acompanhamento das mudanças decorrentes das transformações sociais que constituem tanto um espaço de aprendizagem quanto de afeto. O modelo educacional não pode ignorar a curiosidade das crianças nem a necessidade de se educar professores para que consigam sair de suas práticas disciplinares para dialogar com outros campos de conhecimento.
Para educar, o que menos importa é ter como meta uma educação conteudista, uma cabeça bem cheia de inúmeros saberes compartimentados. Só “uma cabeça bem feita pode tratar os problemas e permitir reflexões a partir da religação e organização dos conhecimentos que fazem sentido à vida dos alunos” (MORIN, 2011, p. 21). Parte-se da premissa de que a fragmentação do saber que se observa nas escolas origina-se do modelo cartesiano (Descartes), que resultou em diferentes disciplinas, desconectadas umas das outras, e que promoveu a hiperespecialização dos saberes
Evidenciar aproximações entre os teóricos contemporâneos Edgar Morin e Humberto Maturana permitiu-nos refletir sobre os sentidos e significados da amorosidade para a Educação e o espaço de convivência escolar. Para tanto, procedeu-se com um estudo bibliográfico com levantamento qualitativo de ocorrência das expressões amor e amorosidade em diferentes textos desses autores.
O espaço de convivência escolar
O modo de relacionar-se com os outros no espaço escolar é muito importante para que o conhecimento, a aprendizagem e o apreço pela escola se firmem em nossos alunos. Entretanto, nem sempre isso é possível. Investir numa prática pedagógica baseada em amorosidade é função de todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, entretanto é o professor que assume, muitas vezes sozinho, essa tarefa singular de criar as condições para uma relação humanizada. E o grande desafio para a educação do futuro pode estar na compreensão da importância da amorosidade para a aprendizagem. Humberto Romesin Maturana (1928-2021), biólogo chileno e doutor em Neurobiologia buscou ao longo de sua carreira profissional e acadêmica compreender a “Biologia do Conhecer”: uma teoria dos fenômenos cognitivos baseada na perspectiva do conhecimento‖ (MATURANA, 2001, p.18). Em sua teoria, ele tece as bases biológicas do conhecimento humano, refletindo sobre as relações humanas, linguagem e cognição. No entanto, a busca por uma explicação apoiada na Biologia não se limitou às explicações funcionais do cérebro ou de elementos que constituem o sistema nervoso. Maturana buscou esclarecer a linguagem, a cognição e fenômenos sociais como fenômenos biológicos. E, um dos aspectos dessa ontologia dos seres vivos seria explicar o papel das emoções no domínio das ações humanas. Há de se concordar com os autores Maturana e Rezpeka (2008, p.14), quando afirmam que “a educação é um processo de transformação que acontece na convivência no qual as crianças se transformam em seu viver de maneira coerente com o viver do professor”. O amor é a fonte de socialização do ser humano, por incluir as interações, a cooperação, o respeito como aspectos fundantes para a vida humana.
Essa perspectiva de amorosidade parece nos mostrar os cominhos para a compreensão das relações humanas no espaço escolar. Lembrando que todas as ações humanas ocorrem num espaço de ação fundamentado por emoções. “Emoções são dinâmicas corporais para o agir. Na vida cotidiana, o que distinguimos com a palavra “emoção” são condutas (medo, agressão, ternura, indiferença, acolhimento)” (MATURANA, VARELA, 1997, p. 30). Por outro lado, estas emoções também se apresentam como possibilidade de transformação considerando o diálogo e o amor essenciais à construção de um espaço onde professor e aluno atuem como sujeitos que pensam, sentem, sofrem, amam e criam.
Quando falamos de emoções nos referimos às disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos também de domínio de ação. Isso porque quando estamos sob determinada emoção, há coisas que podemos fazer e coisas que racionalmente não podemos fazer (MATURANA, 2001). Assim, se quando muda a emoção muda também a nossa estratégia em relação a construção de argumentos de conversações, as emoções passam a ser elemento mobilizador para as práticas pedagógicas e, nesse ponto, nossa reflexão dá destaque à amorosidade.
No entanto, observamos que é no marco de várias contradições que a instituição de ensino tem sido pressionada a revisar-se como transmissora de conteúdos tradicionais e chamada a alterar esta função a uma outra de maior complexidade. Os sentimentos em relação à escola têm sido de desencanto e impotência tendo em vista os inúmeros problemas cotidianos de indisciplina e intolerância. A falta de discussão sobre questões ligadas à compreensão, à amorosidade e às emoções constantes em todas as relações humanas pode estar na base desse problema inerente ao espaço de convivência escolar do nosso tempo. O desafio dos professores está em fazer com que a aprendizagem seja significativa, estimulando experiências que irão possibilitar amadurecimento dos alunos de acordo com suas realidades. Cabe ao professor assumir interlocuções capazes de inovar a prática docente, tornando-a humanizada e amorosa. A ideia é de transformar o espaço escolar para que todos se sintam acolhidos e que, de forma recíproca, professores e alunos possam estabelecer um ambiente de amorosidade.
De acordo com a teoria de Maturana, o amor não se refere a um sentimento especial dedicado a algumas pessoas de nosso convívio mais íntimo. Para ele, “amar não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea‖ (1997, p. 78)”. Um fenômeno biológico e inevitável na constituição dos seres humanos e se refere à aceitação mútua, a aceitação do outro na convivência. Como justificativa o autor lembra que quando se quer travar uma guerra, há de se treinar os participantes para negar o amor, porque se não o negarem e se encontrarem um com o outro, a biologia da aceitação do outro, do amor, aflora. O amor é o princípio da socialização humana, e qualquer situação que inviabilize o amor, destrói essa socialização. Por fim, o amor é a fonte da socialização humana, e não o resultado dela, e qualquer coisa que destrói o amor, qualquer coisa que destrói a congruência estrutural que ele implica, destrói a socialização. A socialização é o resultado do operar no amor, e ocorre somente no domínio em que o amor ocorre (MATURANA, 1997, p.185).
Maturana (2001) também chama a nossa atenção quando enfatiza que as crianças não nascem nem amando nem odiando ninguém. Elas vão amar ou odiar na medida em que forem amadas ou odiadas. Afirma ainda que uma criança que cresce no respeito e em um ambiente de cooperação, acolhimento e amorosidade, será capaz de aprender qualquer coisa e de desenvolver todas as habilidades que desejar quando adulta. Seu aprendizado será tão mais facilitado quanto mais de amor e de acolhimento for seu ambiente de coexistência. E vai mais além ao afirmar que: ―[...] eu diria que 99% das patologias humanas são patologias do amor. E é por isso que, no desenvolvimento da criança, o amor — e o amor é aceitação do outro na convivência — é fundamental (MATURANA, 2001, p. 96). Segundo essa perspectiva, a formação humana compreende a estimulação de valores e atitudes numa visão holística do ser, trabalhando desde pequenos o respeito, a autoconfiança, a colaboração, a responsabilidade, a liberdade e a autonomia.
Edgar Morin (2002), pensador da complexidade, por sua vez complementa o pensamento de Maturana ao argumentar em favor de uma reforma do pensamento e da educação, de modo a ultrapassar a fragmentação do conhecimento e a reformá-lo em patamares afinados com uma ecologia das ideias e da ação. Assim, a educação pode se apresentar como um espaço de apostas essenciais à compreensão e ao agir humano num mundo imerso na incerteza. No caminho sugerido por Morin (2011), é necessário ultrapassar o entendimento da educação como espaço reservado unicamente instrução e ao ensino formativo de uma profissão. “[...] A educação não pode ser reduzida ao ensino, pois sua missão está diretamente ligada ao processo de vida. Aprender a viver é o objeto da educação, e essa aprendizagem precisa transformar a informação em conhecimento, conhecimento em sabedoria (sabedoria e ciência) e incorporar essa sabedoria na vida ( p. 35)”.
Aqui é importante refletir sobre o sistema educacional como um mercado de informações, aquele que forma alunos-bancos-de-dados. Mesmo com a cabeça cheia de informações, ele não sabe como articular tantos e tão importantes dados para a leitura do real. É nesse sentido que Morin (2002) relembra Montaigne ao afirmar que mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. Os saberes necessários à educação no século XXI, segundo Edgar Morin (2011), indicam uma necessidade urgente de humanização das relações em sala de aula, porque a educação é um ato de amor e de coragem. Para tanto, promover a tomada de consciência individual e coletiva se torna necessário pois dela surgirão alternativas de colaboração para a transformação da realidade e formação de cidadãos e professores inovadores e criativos.
Compreendemos o quanto é difícil fazer com que os alunos com dificuldades se arrisquem para aprender porque, geralmente, se acham incapazes. Mas o professor é capaz de reconhecer limites e entender a necessidade de se criar condições para elevar a autoestima fazendo com que esses alunos reconheçam e valorizem os saberes que possuem. Quando isso ocorre, chega o momento de se investir num espaço capaz de contribuir para a superação de sentimentos e atitudes que muitas vezes inibem a aprendizagem. Sendo assim, o sucesso da aprendizagem escolar muitas vezes está no olhar o outro, no diálogo, na escuta, no viver e conviver, como diriam Morin (2015) e Maturana (1998). Desse modo, surge a importância da reforma do pensamento com vistas à interdisciplinaridade. Saberes conectados, dialógicos capazes de integrar não só as partes ao todo, mas que concebam o todo no interior de cada uma das partes. Em outras palavras, é necessário ver o mundo, a natureza e a sociedade em sua complexidade, ultrapassando o pensamento linear e fragmentado.
A religação de saberes diz respeito à necessidade de ligar o que por tanto tempo andou desconectado. Eis aqui a necessidade de construção de um pensamento complexo como aquele que pressupõe mudanças no sistema de ensino. Nessa direção, a amorosidade emerge tanto como uma qualidade posta para esse fazer educacional, mas também como um princípio balizador de posturas, atitudes e procedimentos nos caminhos e percursos metodológicos da ação, dada a complexidade do amor e suas interfaces. Assim, as ideias de Maturana são tomadas como uma referência importante para a compreensão do processo educativo. Para ele o emocionar não é uma limitação, mas a própria condição da aprendizagem humana. Isso porque é no “entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano‖ e muitas vezes somos impedidos de perceber que “Todo sistema racional tem um fundamento emocional (MATURANA, 1998, p.15). A tarefa da educação escolar é permitir e facilitar o crescimento das crianças como seres humanos que respeitam a si próprios e os outros. Por fim, a aprendizagem só será realmente possível se tiver como pressuposto uma conversação fundamentada num linguajar de amorosidade pois o amor é “O fundamento do fenômeno social e não uma consequência dele, e que os fenômenos sociais, em um domínio qualquer de interações duram somente enquanto o amor persistir nesse domínio‖ (MATURANA, 1997, p.185)”. Vale ainda buscar o conhecimento de Edgar Morin que fortalece essa reflexão para o século XXI. Segundo o autor precisamos desistir de um olhar unilateral que classifica o humano pela racionalidade e nos concentrar na sua complexidade alimentada por antagonismos pois o ser humano é a um só tempo ―sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e imaginarius (empírico e imaginário), economicus e consumans (econômico e consumista), prosaicus e poeticus (prosaico e poético)‖ (MORIN, 2000, p. 58).
Uma reforma do pensamento inclui ultrapassar o modo de pensar reducionista que separa razão e emoção para encontrar no pensamento complexo a possibilidade de se emocionar ao aprender, assumindo assim a amorosidade como fundamento pedagógico.
Considerações Finais
As reflexões provocadas neste artigo sobre convergências entre estes dois importantes teóricos contemporâneos, nos leva a pensar o amor/amorosidade, para além de uma compreensão linear, simplória e reprodutiva inspirada em modelos tradicionais de ensino. A ação humana e especialmente o processo pedagógico permite a construção de um espaço de convivência respeitoso e amoroso de modo a permitir uma consciência crítica e criativa de professor e aluno. O sonho de um processo que leve a amorosidade às estruturas do ato educativo só será possível por meio de práticas de cooperação, colaboração e respeito. Por esse encaminhamento e reflexão, o amor é a fonte de socialização do ser humano por incluir esses aspectos fundantes da vida humana. Nssa perspectiva, as relações humanas no espaço escolar impõem discussões sobre a falta de diálogo amoroso para o crescimento tanto das possibilidades de aprendizagem quanto de socialização entre aluno e aluno, professor e aluno e vice-versa. É preciso compreender o aluno não só como um ser que necessita cumprir as ordens impostas pelo sistema escolar, mas como sujeito que tem sentimentos, sonhos, conhecimentos, desejos, que chora, sorri, brinca, ou seja, realiza muitos movimentos para demonstrar o que sente. Em outras palavras, ver a criança como um ser que é corpo e mente, interligado com o seu contexto, sem deixar nos portões da escola suas experiências anteriores e especificidades desafia o professor a assumir uma educação não fragmentada. O sentido da aprendizagem poderia reformar práticas pedagógicas e harmonizar posturas para a construção de conhecimentos e superação de obstáculos. Daí a importância do entendimento sobre a necessidade de uma ―reforma do pensamento‖ tendo por base a amorosidade e a religação de saberes visando superar a fragmentação do conhecimento em busca da articulação entre ideias e ação. É função dos professores a busca de interlocuções para inovar a prática docente, é função de pais e alunos a retroalimentação de um sistema de ensino mais humano e amoroso. Nesse contexto, o professor se caracteriza como mediador de emoções (ARRUDA, 2008;2012) e de conhecimento, apreciando, escutando e respeitando o estudante, criando, na escola, um lugar de vínculo positivo e acolhedor. Tão importante quanto mediar conhecimento é também mediar emoções e promover relações afetivas em sala de aula por meio de estratégias inovadoras para o cenário educativo. Que a evidência da necessidade de amor ao próximo amplie nossa reflexão sobre a necessidade de amorosidade nas escolas.
Referências Bibliográficas
ARRUDA, Marina Patrício. O mediador de emoções. Pelotas: Livraria Mundial, 2008. _____. O paradigma emergente da educação: o professor como mediador de emoções. Educação Temática Digital - ETD, v. 14, n. 2, 2012. Disponível em: . Acesso em: jan. 2021.
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
_________. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
_________. Emoções e linguagem na educação. Tradução de José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
_____.; REZEPKA, Sima Nisis. Formação humana e capacitação. Tradução de Jaime A. Clasen. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
_____.; VARELA, Francisco. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. 3. ed. Tradução Juan Acuña Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
EDGAR MORIN. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
_____. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2015.
_____. Os sete saberes necessários a educação do futuro. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNISCO, 2011. VIEIRA, Renata de Almeida; ALMEIDA, Maria Isabel de. C
AMOROSIDADE NO ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA ESCOLAR pela Revista HISPANISTA – Vol XXIII – 90– Julio - Agosto – Septiembre de 2022 Revista electrónica de los Hispanistas de Brasil – Fundada en abril de 2000 ISSN 1676 – 9058 (español) ISSN 1676 – 904X (portugués)
1 O presente artigo foi publicado na integra como “AMOROSIDADE NO ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA ESCOLAR” pela Revista HISPANISTA – Vol XXIII – 90– Julio - Agosto – Septiembre de 2022 Revista electrónica de los Hispanistas de Brasil – Fundada en abril de 2000 ISSN 1676 – 9058 (español) ISSN 1676 – 904X (portugués).
2 Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Formação cultural, hermenêutica e Educação GPFORMA SERRA(UCS- RS)
3 Professor e pesquisador do grupo de pesquisa Formação Cultural, Hermenêutica e Educação - GPFORMA SERRA(UCS- RS)