Crônica Visual de uma Morte Anunciada

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[1]

Elisa Viana Salengue[2]

 

Desde o início a luz nos fascina, sendo que o êxtase pela descoberta do fogo demarca trajetos do homem em busca da claridade. Essa intrínseca ligação foi interpretada por Platão no livro VII da República através do seu Mito da Caverna, instituindo uma metáfora da própria relação do homem contemporâneo com a imagem.

O fato é destacado pelo escritor José Saramago no documentário “Janela da Alma” (2001), uma opinião também compartilhada pela estudiosa Susan Sontag (1991, p.3) quando declara que a humanidade permanece irremediavelmente presa dentro da caverna de Platão, regalando-se ainda, como é seu velho hábito, com meras imagens da realidade.

Como uma forma de transformarmos a visão banalizada em olhar perceptivo, a autora aponta a contribuição do olho que fotografa para modificarmos os termos do confinamento dentro da caverna, o nosso próprio mundo.

Assim como as paredes da caverna de Platão, a fotografia é um suporte para as imagens, no entanto, mais do que projeções ela nos possibilita pensarmos no próprio movimento da espécie humana em busca da visibilidade. Os recortes fotográficos exercitam a imaginação como a faculdade de reformar as imagens fornecidas pela percepção (BACHELARD, 2001, p.1) libertando-nos das imagens primeiras. Além da ação imaginante que detona, eles também acionam as ausências, as memórias que nos fundam como sujeitos.

Vivemos em um mundo onde nossas necessidades ultrapassam os limites possíveis, tencionando a natureza de forma a levá-la ao seu limiar, submetendo-a a abusos traumatizantes e transformando-a de maneira irreversível. Infelizmente, se não observarmos os acontecimentos ao nosso redor, por mais simples que eles sejam, estaremos abdicando de desvendar, conhecer e compartilhar tudo aquilo que prodigamente Gaia nos oferece. Tal oferenda é generosa, mas se não for respeitada em seus atributos, sucumbirá, levando consigo a vida em toda sua multiplicidade.

Os instantes capturados e perpetuados ao longo do tempo nas imagens fotográficas tornam-se muitas vezes apenas uma réplica de algo que um dia foi verdadeiramente real, mas que deixou de existir antes mesmo que muitos soubessem sobre a sua existência. Esses instantes congelados talvez sejam as únicas lembranças de um passado sem perspectivas, da vida que teve o futuro estilhaçado por cifras e triturado pelo interesse particular de poucos que se sobrepuseram a muitos.

O meio ambiente percebido como parte integrante das relações sociais e do processo histórico de construção de mundo solidifica a consciência planetária das ameaças da civilização industrial-tecnológica. A relação homem-natureza e dos grupos sociais entre si, bem como a forma de apropriação dos recursos naturais, são fatores determinantes da qualidade de vida da sociedade.

Nesse sentido, as fotografias apresentadas neste artigo constituem-se em pequenos focos iluminadores que nos possibilitam refletir sobre a degradação das relações estabelecidas entre o homem e o meio natural em seus trajetos na busca pelo tão famigerado progresso.

 

Figura 1: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

 

A Vila do Seival (figura 1) situa-se na cidade de Candiota, cerca de 400km da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, no extremo sul do Brasil, mais especificamente a sudoeste do estado, próxima a fronteira oeste com o Uruguai.

Quem visita hoje em dia o povoado, não imagina que nas primeiras décadas do século XX ele era um importante entreposto comercial da ferrovia que ligava a fronteira oeste ao litoral. Dali, os trens partiam carregados de produtos manufaturados e produzidos regionalmente. Sendo que, por muitos anos, através de um setor produtivo e variado, a vila foi responsável pelo suprimento de muitas cidades e distritos rurais da região.

Todavia, com o fechamento do “Banco Pelotense” na década de 30, uma importante instituição financeira do sul do estado, e o deslocamento da ferrovia na década de 60 a vila quase caiu no esquecimento. Seu destino foi traçado de forma definitiva em 1996 com a desativação da mina de carvão.

 

Figura 2: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

Encravada na transição entre a Depressão Central e o Escudo Sul-Rio-Grandense, em áreas de terreno sedimentar-deposicional, a região apresenta peculiaridades que envolvem as condições perfeitas para o estabelecimento e desenvolvimento de pequenas plantas da família das cactáceas (figura 2).

Verdadeiras guerreiras, essas plantas suculentas distinguem-se dos demais grupos vegetais por apresentarem características próprias, que lhe permitem resistir ao stress hídrico (suculência e folhas transformadas em espinhos) e a crescer em solos rasos e pobres, por exemplo. Apesar disso, é capaz de produzir flores de beleza sem igual que efemeramente inebriam os olhos de quem as observa. Sem as flores, os cactos passariam facilmente despercebidos, pois crescem disfarçadamente em meio ao pasto e ou mimetizados por entre as rochas (figura 3).

 

Figuras 3: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

 

Atualmente, a despeito do contexto em que se encontram os exemplares dessas espécies endêmicas, restritas ao local, distribuem-se ao longo do que é um dos únicos, se não o único, hábitat até então conhecido em todo mundo. Contudo, até quando resistirão esses pequenos focos de luz que colorem a paisagem escurecida pelo carvão (figuras 4).

 

Figuras 4: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

 

Uma região como a de Candiota, que apresenta uma história natural e cultural de suma importância para as memórias sul-rio-grandenses, não pode esfacelar-se por falta de conhecimento. Ao contrário, ela deve ser experimentada antes que seja destruída por completo e, para isto, necessita de reconhecimento e de atenção.

Apesar de “ambientalmente condenável” pelo baixo teor calórico e pela alta produção de cinzas, o carvão da Jazida Grande Candiota, que pertence à Companhia Rio-grandense de Mineração (CRM) voltou a ser objeto de cobiça para o setor privado que está investindo bilhões na extração do combustível fóssil.

A retomada das atividades na Mina do Seival é apenas um dos objetivos de um grupo de investidores interessados em transformar a região em um pólo Termohidroelétrico, colocando em perigo a vida dessas pequenas jóias produzidas pela natureza (figura 5).

 

Figuras 5: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

 

As características do empreendimento, somadas as demais atividades já desenvolvidas na região, podem desencadear uma enorme perda para a biodiversidade gaúcha. Dentre as várias conseqüências é possível destacar-mos a chuva ácida, por exemplo, uma dolorosa experiência vivida pela cidade paulista de Cubatão no final do século XX.

Quanto aos possíveis problemas ambientais causados à região do Seival, a mineradora anuncia em reportagem concedida ao jornal Diário Popular, da cidade de Pelotas (RS), em 06/04/2008, a intenção de investir 390 milhões para a preservação ambiental (p.16):

 

O primeiro passo da mineração consiste na RETIRADA DA CAMADA DE VEGETAÇÃO E DO SOLO ORGÂNICO ORIGINAL, além da DETONAÇÃO PARA ATINGIR AS CAMADAS MAIS PROFUNDAS onde se encontra o mineral (de 10 a 25m de profundidade). Depois de extraído, o carvão é fragmentado em uma instalação de britagem na própria CRM e transportado para a termelétrica Presidente Médici – em uma esteira de 2,5 quilômetros – onde é pulverizado e queimado em caldeiras. Após, O SOLO É REGENERADO COM PLANTIO DE ÁRVORES (eucaliptos e acácias ou árvores nativas e arbustos).

 

O superintendente da mina anunciou a implantação de vários equipamentos que contribuem para a redução das emissões atmosféricas (p.18), citando uma série de avançados aparatos tecnológicos que combatem a poluição do ar.

No entanto, a RETIRADA DA CAMADA DE VEGETAÇÃO E DO SOLO ORGÂNICO ORIGINAL, será compensada pelo PLANTIO DE ÁRVORES (EUCALIPTOS e ACÁCIAS ou árvores nativas e arbustos)...

Como assim??

Quer dizer, então, que esses lindos exemplares (figura 6) serão RETIRADOS? Extintos, melhor dizendo!!

 

Figuras 6: Elisa Salengue

Fotografia digital, 2007.

 

O comprometimento da existência de espécies de plantas endêmicas, que não ocorrem em nenhuma outra parte do mundo senão ali, é apenas um dos exemplos das implicações devastadoras que modificarão para o sempre a história de Candiota.

Entretanto, na percepção de uma parcela da comunidade local, os benefícios conseqüentes das atividades relacionadas à extração de carvão são maiores que os custos, muito embora os resultados negativos possam estar sendo subestimados.

Talvez, em um tempo menor do que o previsto, boa parte da região seja removida, transformada em cinzas, sem cor, sem vida!

Talvez, tudo o que reste sejam as fotografias, testemunhas irrefutáveis dessas pequenas maravilhas que o solo do Seival é capaz de produzir.

Acreditar no passado e lutar no presente por um futuro promissor, exige refletirmos sobre nossas vivências para que estas sejam capazes de levar-nos a experiências reveladoras, que transcendam e ressoem para além dos obstáculos que nos inibem.

 

Referências bibliográficas:

 

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DIÁRIO POPULAR. Jornal. Pelotas, RS, 06/04/2008. 

FRITZ, Karen B. B. & WAQUILl, Paulo D. A percepção da população do município de Candiota sobre os impactos sociais, econômicos e ambientais decorrentes da produção e do emprego do carvão mineral. Teoria e Evidência Econômica. Revista. Passo Fundo, v.11, n.20, maio 2003.

JANELA DA ALMA. Direção: João Jardim, Walter Carvalho. São Paulo: BR distribuidora; Brasil Telecom; Ravina filmes; 2001. Filme, 73 min. Color. Son. DVD.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre Fotografia. São Paulo: Arbor, 1991.

TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 6ª Edição - Petrópolis, RJ:  Editora Vozes, 1999.

 



[1] Mestre em Educação Ambiental, professora de Artes do Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas, CEFET-RS, coordenadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, FURG/CNPq.

[2] Especialista em Manejo e Conservação da Biodiversidade, graduada em Turismo, é pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, FURG/CNPq.