Entre janelas, horizontes e vazios existenciais.
Cláudia Mariza Mattos Brandão[1]
Tatiana Brandão de Araujo[2]
Ana Luiza Timm Soares[3]
Estreou recentemente nos cinemas de todo país o filme “Ensaio sobre a Cegueira”, do diretor Fernando Meirelles baseado na obra homônima do escritor José Saramago. Meirelles, fiel à história de Saramago, nos apresenta a história de uma humanidade degradada em conseqüência de um mal de proporções epidêmicas, uma estranha cegueira que expõe a precariedade das relações e dos valores da sociedade contemporânea.
Saramago/Meirelles nos lembram que a compreensão do mundo atrela-se a uma sensibilidade mais ampla que está para além da visão, implicando no olhar demorado, perceptivo e sensível, que é construído por cada sujeito cotidianamente. Eles nos levam a refletir sobre a convivência numa realidade pautada pela visualidade e pelo excesso de luz, fato que não garante enxergarmos o mundo ao redor.
As bases da sociabilidade humana foram radicalmente alteradas nas sociedades modernas acabando por subverter por completo o modo de pensar e sentir tradicionais. Muitos são os artistas que ao longo do século XX, embora explorando diferentes linguagens, problematizaram a estagnação do processo civilizatório e o crescente afastamento dos homens entre si e em relação à natureza.
O presente artigo tem por objetivo discutir as propostas estéticas do artista plástico Edward Hopper (1882-1967) e da cineasta Sofia Coppola (1971), estabelecendo possíveis conexões entre as suas semânticas e a sensação de tédio e vazio existencial que resultam das relações fragmentárias dos indivíduos contemporâneos.
A estranha sensação, que muitas vezes nos agonia, de estar frente a um grande “buraco negro” - ou contaminado por uma “cegueira branca” como propõe Saramago - pode ter sua origem na própria estruturação das sociedades ocidentais a partir do modelo capitalista, do desenvolvimento de mentalidades que privilegiam a técnica, o mercantilismo e o lucro, colocando o ser humano e o próprio planeta como coadjuvantes do processo.
Hopper foi um artista que se dedicou a problematizar o esvaziamento das relações humanas. A análise de suas obras possibilita identificarmos as preocupações de um homem que vivenciou e questionou a ideologia norte-americana, elaborando com a objetividade de um pesquisador imagens inquietantemente iluminadas e silenciosas, carregadas de possibilidades heurísticas.
Suas metrópoles, vazias e silenciosas, gradativamente desvelam a "coisificação" do homem moderno. As imagens "Hopperianas" provocam o envolvimento do indivíduo com o real, estabelecendo uma ponte entre a razão e a sensibilidade.
Responsável pela construção de uma narração figurativa de extrema eficácia, com força de caracterização e extrema sensibilidade à miséria da solidão provocada pelo American Way of Life, Hopper costumava afirmar que não pintava somente o que via: ... o início e o fim de qualquer atividade artística é a reprodução do mundo a minha volta através do mundo dentro de mim. (RENNER, 1992, p.28)
Das relações composicionais que estabelece, surgem momentos congelados no tempo, como em estado de suspensão, tal e qual num instantâneo fotográfico. Para "flagrar" efeitos fixos de movimento, muitas vezes o artista cria o foco de tensão interior como decorrência da postura retesada de seus personagens (figura 1).
Figura 1: Edward Hopper, Hotel by a Railroad, 1952
O olhar de seus personagens é estruturado de acordo com a "metáfora da pirâmide visual”, de Leon Battista Alberti, cujo ângulo sólido imaginário tem o olho por cume e o objeto olhado por base (AUMONT, 1993, p.152). Esse “olhar para fora” (figura 2) remete ao vazio, ao infinito, e não localiza nada, ao contrário, ele determina um caráter aberto na estrutura, demonstrando que em Hopper a sintaxe é produtora de significado.
Figura 2: Edward Hopper, A Woman in the Sun, 1961.
Partindo da identificação provocada por imagens realistas que resultam da utilização de um "vocabulário" visual ligado ao cotidiano, Hopper leva o espectador a um outro tempo. Em sua obra a decalagem temporal é nítida, a integração de dois "tempos" - o real e o do universo representado - conduz à reflexão e ao questionamento. Como observador pseudo-real da cena, acompanhando o processo representado, o espectador é convidado a intervir com seu saber prévio para preencher as "lacunas" da representação.
Com um estilo muito pessoal, ele tinha por hábito pintar sentado em seu automóvel. Dessa forma mantinha-se "afastado" como um voyeur, não deixando que o ambiente o envolvesse. Essa característica fica evidenciada pela nítida preocupação do artista em promover a divisão do espaço em interior e exterior, utilizando para essa transição janelas e portas.
Suas janelas, repetidas em inúmeras obras, são metafóricas aberturas para um mundo do qual nos apartamos cada vez mais. Enfatizando o agravamento das tensões surgidas nas relações humanas as cenas isolam o mundo exterior realçando a oposição natureza/civilização (figura 3).
Figura 3: Edward Hopper, Morning in a City, 1944 e Morning Sun, 1952.
Seus personagens, com corpos retesados e rostos como máscaras, sem identidades definidas, apresentam-se imersos no grande silêncio do anonimato metropolitano. Posicionado como um narrador que manipula o pincel com a precisão de um “escritor” ele se comporta como um cronista visual do âmago da sociedade americana da primeira metade do século XX.
Edward Hopper constrói imagens dotadas da dureza dos generosos horizontes americanos, com uma pintura luminosa, silenciosa e oxigenada, cujo conjunto constitui um grande "plano geral pictórico" da sociedade norte-americana com cheiro de sol, de motéis esquecidos, de conversíveis, pneus, cavalos e néon.
A reflexão sobre a massificação e a perda identitária que levam à solidão e ao vazio existencial - tema tão caro a Edward Hopper – também está presente na produção contemporânea da cineasta Sofia Coppola.
Elegendo para análise o longa-metragem “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation, 2003), cujo roteiro original é da própria diretora, encontramos subsídios que mostram o estado de realidade de uma situação que se agravou como passar do tempo.
A história narra a trajetória dos personagens Charlotte (Scarlett Johanson) e Bob Harris (Bill Murray), que se encontram em Tóquio, ele para gravar um comercial e ela para acompanhar o marido que viajou a trabalho. Nesse pouco tempo em que ficam hospedados em um hotel na cidade acabam se conhecendo/encontrando, preenchendo aquele tempo que seria esvaziado com o estabelecimento de fortes laços.
É possível destacarmos os dois principais personagens do filme como exemplos de sujeitos que não se “encaixam”, que se sentem à parte em um mundo que reluta em aceitar as diferenças. Um mundo de indivíduos, mas que, como afirma Zygmunt Bauman (2007), é uma individualidade que não se dissocia do coletivo, portanto, existe um limite para a mesma ser exercida.
O distanciamento geográfico propiciou tanto a Charlotte como a Bob o tempo necessário para que pudessem perceber a si mesmos e as pessoas que o cercavam. Para Stuart Hall (2003), algumas identidades, tais como as de gênero, sexualidade e etnia - que antes eram vistas como fixas - estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno.
O feminismo, bem como os demais movimentos sociais que emergiram na década de 1960, contribuiu para o questionamento destas identidades fixas, as quais enclausuravam o indivíduo em determinador “papéis”. Assim, o fracionamento destas, que no passado fixavam indivíduos sólidos, tem como conseqüência o estabelecimento de novas relações, abalando as estruturas socialmente construídas e provocando crises identitárias entre/nos indivíduos. Essa perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada de deslocamento ou descentração do sujeito... (HALL, 2003, p.09).
O cenário do filme é uma metáfora para o desencontro dos personagens, consigo e com os outros. Sofia Coppola atualiza questões que são cruciais na obra de Edward Hopper, dando visibilidade ao fato de que a vida líquida alimenta a insatisfação do eu consigo mesmo (BAUMAN, 2007, p.19), com fórmulas de como viver bem.
A contemporaneidade vende as identidades que deveriam ser escolhas próprias, mas na realidade se tornam “produtos de consumos” que em pouco tempo são descartados. Mesmo com a separação de Bob e Charlotte no final, Coppola nos apresenta o lado bom do encontro com o outro, da troca e do diálogo, muito diferente da fugacidade das relações atuais, beneficiadas pelo avanço frenético das tecnologias:
E nós usamos nossos celulares para bater papo e enviar e receber mensagens, de modo que possamos sentir permanentemente o conforto de ‘estar em contato’ sem os desconfortos que o verdadeiro ‘contato’ reserva. Substituímos os poucos relacionamentos profundos por uma profusão de contatos pouco consistentes e superficiais (BAUMAN, 2005, p. 76).
Figura 4: Sofia Coppola, Encontros e Desencontros, 2003.
O movimento diário que nos leva a olhar, a procurar aquilo que ainda nos falta e nos preenche, é uma escolha contínua e não cessa. Nesse sentido, o simbolismo presente na cena em que Charlotte caminha na direção contrária aos demais (figura 4), demonstra o deslocamento da personagem em relação ao contexto no qual ela se insere. Este fato se faz representado pela ambientação do filme – Charlotte, americana, no mundo oriental. No entanto, a descentralização do sujeito tem raízes mais profundas. A personagem pertence a uma sociedade cujo cerne tem como base a sexualidade dos corpos, legitimada pelo discurso da mídia, do senso comum, assim como da ciência, criando ...paradigmas físicos, morais, mentais cujas associações tendem a homogeneizar o “ser mulher” (SWAIN, 2001, p. 12). Porém não devemos pensar nessas questões como um fator isolado, os paradigmas da sociedade contemporânea atingem também aos homens.
Assim como em “Encontros e Desencontros”, também em seus outros três filmes (um curta e dois longas-metragens) Sofia Coppola opta por apresentar indivíduos deslocados, principalmente os femininos, que independente do tempo histórico da narrativa, a diretora explora o confronto de identidades internas que são demonstrados através de personagens introspectivos como Charlotte, e também como Bob Harris.
Analisando os outros filmes, percebemos que, enquanto a saída encontrada pelas meninas Lisbon no longa “Virgens Suicidas” para o conflito identitário foi a morte, em “Maria Antonieta”, a solução para os conflitos da personagem principal, que dá título ao filme, é a de procurar formas para adequar-se em uma sociedade que não a aceitava, enquanto que Charlotte escolhe ser ela mesma. Ela se encontra no outro, não o marido, mas aquele homem mais velho que acabara de conhecer em Tóquio. Por razões diversas, ambos sentem-se deslocados, porém desde o primeiro momento um tem no outro a relação de reciprocidade que não conseguem conquistar com seus respectivos parceiros.
Figura 5: Sofia Coppola, Lick the Star, 1998; Maria Antonieta, 2006; Virgens Suicidas, 1999; Encontros e Desencontros, 2003,.
Entendemos a presença constante do objeto “janela” nas narrativas de Coppola como simbólicos, enfatizando a busca por respostas que talvez não existam. Suas “janelas” não são apenas as das casas e edifícios, mas há também as dos carros em movimentos, que revelam personagens com olhares perdidos, a procura de algo, provavelmente o que lhes falta. Entendemos que essas cenas nos mostram um dos questionamentos mais fortes em seus filmes: a solidão dos que optam por caminhos diferentes dos ditados pela regras sociais.
Espero que tanto como indivíduos, grupos ou uma sociedade, façamos uma pausa para pensar na condição humana na virada do milênio. Na sua forma mais brutal, o individualismo continua sendo uma fórmula para catástrofes. É preciso repensar a forma como coexistimos no mundo[4]. Sebastião Salgado
A arte Modernista do início do século XX é a expressão dos questionamentos de indivíduos que assim como Edward Hopper desvelaram a crise de valores instaurada pela relativização de uma ideologia apoiada na produção e na troca, no lucro. No século XIX, os artistas continuam problematizando a questão, buscando apresentar para seus interlocutores/espectadores a confrontação com experiências de despersonalização, comprovando que ainda não encontramos uma saída para a massificação e a conseqüente dissolução dos sujeitos, provavelmente por ainda não conseguirmos enxergar o outro.
Referências bibliográficas
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
________________. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
KRANZFELDER, Ivo. Edward Hopper 1882-1967: visão de realidade. Alemanha: Taschen, 1996.
RENNER, Rolf Günter. Edward Hopper 1882-1967: transformações do real. Lisboa: Taschen, 1992.
SWAIN, Tânia Navarro. Feminismo e representações sociais: a invenção das mulheres nas revistas “femininas”.In: História: Questões e debates. Curitiba: Ed. da UFPR, v. 18, n° 34, jan/jun, 2001.
[1] Mestre em Educação Ambiental, professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas, CEFET-RS, coordenadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, FURG/CNPq.
[2] Acadêmica do curso de História Bacharelado (FURG, Rio Grande,RS), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, FURG/CNPq
[3] Bachareal em História (FURG, 2007), Mestranda em História (UFPR)
[4] Trecho retirado do site oficial do fotógrafo: www.terra.com.br/sebastiaosalgado/