Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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23/05/2006 (Nº 17) AS ERVAS E O JARDIM DE GAIA
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AS ERVAS E O JARDIM DE GAIA

Lenilde Duarte de Sá.
Profa. Dra. do DESPP-UFPB. Pesquisadora do NEPHF/UFPB.

Ana Maria Cavalcante Lopes.
Mestre. Profa. do DESPP-UFPB. Pesquisadora do NEPHF/UFPB.

Rinalda de Araújo Guerra de Oliveira.
Mestre. Profa. do DFP/UFPB.. Pesquisadora do NEPHF/UFPB.

Edeltrudes de Oliveira Lima.
Profa. Dra. do DCF - UFPB. Pesquisadora do NEPHF/UFPB

Nosso relacionamento privado com a natureza pressupõe que esta seja viva e, pelo menos de modo implícito, usualmente feminina.(R. Sheldrake)

                O conhecimento científico fundamentado nos pressupostos do cartesianismo é separativo, excludente e atomizador. Tal forma de conhecimento tem levado a criatura ao longo do tempo, e principalmente no final do século XX, a constituir-se como uma ameaça à criação e à vida no nosso planeta. Tomando como base o conhecimento racional e mecânico, o ser humano passou a desenvolver relações dicotomizadas não apenas com a natureza, como também consigo mesmo. A partir de então, a criatura passou a olhar o planeta Terra como recipiente de reinos isolados onde a natureza existia para servi-la, passando então a ser encarada como uma reserva extrativista.
                Assim, no final do milênio olhando para o futuro que ora se faz, cientes do mal que causamos à Terra , nos posicionamos a favor da vida, antes do seu esgotamento total e final. Ancorados no passado, reflexivos no presente e, co-construtores de um futuro promissor, faz-se necessário a compreensão de que outrora habitamos em um jardim e, como diz Rubens Alves é de um jardim que temos saudade.
                Com o intuito de reaprender a cuidar desse jardim, convidamos Leonardo Boff a sentar conosco na mesa que nos ensina a reaprender a aprender a cuidar de nós, da criação, da vida, da terra. Assim, como ele, “ recusamos a rebaixar a terra a um conjunto de recursos naturais ou a um reservatório físico-químico de matérias-primas. Ela fundamentalmente se apresenta como Grande Mãe que nos nutre e nos carrega. É a grande Pacha Mama (Grande Mãe) das culturas andinas ou um superorganismo vivo, a Gaia...”1
                Considerar a vida na terra e toda os seres que nela habitam integrados em sistemas complexos, interagindo de modo recursivo requer que a chamemos de Gaia. O conceito de Gaia para James Lovelock está inteiramente ligado com o conceito de vida. Segundo ele,
                “o nome do planeta vivo, Gaia, não é um sinônimo para biosfera. A biosfera é definida como uma parte da terra onde os seres vivos habitam normalmente. E, muito menos, Gaia é o mesmo que biota, termo que designa simplesmente o conjunto de todos os organismos vivos. A biota e a biosfera juntas formam parte de Gaia, mas não toda ela. Gaia (...) tem continuidade com o passado que remonta às origens da vida e se estende para o futuro enquanto a vida persistir. Gaia como um ser planetário total, tem propriedades que não são necessariamente discerníveis somente pelo conhecimento das espécies individuais ou de populações de organismos vivendo juntas.”2
                Nos sentimos desconfortáveis quando nos lembramos que a principal diferença entre nós e os humanos das sociedades arcaicas e tradicionais, reside no fato dos primeiros sentirem-se indissoluvelmente vinculados ao Cosmo e aos ritos cósmicos, enquanto nós, que habitamos a sociedade moderna insistimos em nos vincular apenas a história.3 Nos sentimos desconfortáveis pois, em nome do chamado “conhecimento científico” rechaçamos a sabedoria dessas civilizações. Apoiados nos rígidos cânones do pensamento cartesiano, nos afastamos do sentido de holos e da idéia de physis e, afastado-nos da vida temos auxiliado a elaborar uma ciência sem consciência. Chegamos ao final do milênio e nos assustamos, pois, embora consideremos o fabuloso progresso do nosso saber, principalmente neste século, o conhecimento racional se mostra impotente para responder: o que é o mundo? a natureza? o homem? a realidade?4
                Perdidos entre a ciência das partes, saudosos de um jardim, paramos em meio ao passado e ao futuro... sentimos a necessidade de olhar para o passado nutrindo a esperança de nos encontrarmos no futuro. Concebendo o desenvolvimento humano permeando as voltas de uma espiral, onde passado e futuro se encontram e, se em seu meio traçamos imaginariamente uma seta que aponta para o alto, figuramos dessa maneira, um dos muitos símbolos antigos, ouroboros: a continuidade do humano em direção à plenitude. Nessa marcha, há repetida necessidade, no presente, de voltar a olhar o passado para caminhar em direção ao futuro, pois como afirma Hannah Arendt: “esse passado, além do mais, estirando-se por todo o trajeto de volta à origem, ao invés de puxar para trás, empurra para a frente, e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado.”5
                Voltemos ao passado. Abrimos as páginas do Gênese e relembramos que o Criador nos ofereceu Gaia como um jardim. Tal fora o Seu zelo que a criou em seis dias. Fazendo-nos criaturas nos legou a missão de cuidar desse jardim, de cultivá-lo e guardá-lo. Logo viu que a insensatez habitava os corações humanos e arrependeu-se de ter colocado em nossas mãos tão magnífica tarefa. Diante da terra que enchia-se de violência, feriu-se de íntima dor o Seu coração. Resolveu Ele exterminar o jardim. Porém, reconhecendo Noé como justo, resolveu dar uma nova chance a humanidade. Por Suas mãos, falou que não destruiria mais a criação e fez uma aliança com os humanos simbolizada pelo arco-íris. Parece que quando o Criador fez significativa aliança colocou nas mãos da criatura o destino de Gaia. A sua destruição seria então responsabilidade humana?
                Continuaram os humanos em marcha pelos caminhos da existência, distanciando-se cada vez mais do Criador, do sentido do cosmo e dos ritmos cósmicos. Seguiram construindo babéis de conhecimento perdendo a unicidade da língua nativa do holos. As criaturas desistiram do jardim e construíram cidades. Alguns, com as almas saudosas de habitar não uma cidade mas um jardim, resolveram marchar em direção ao futuro alimentados pela promessa de armar suas tendas em um lugar onde:

junto ao rio, às ribanceiras, de uma a outra banda, nascerá toda a sorte de árvore, que dá fruto para se comer: não fenecerá sua folha, nem seu fruto; nos seus meses produzirá novos frutos; porque suas águas saem do santuário; o seu fruto servirá de alimento e a sua folha de remédio.6

                Fascina-nos a marcha da humanidade rumo ao princípio que se deseja futuro. Entristece-nos o conhecimento que vem sendo produzido e, cada vez mais dessacralizado, afasta humanidade do jardim de Gaia reificando-a e condenando-a à destruição. Engravidam-nos de esperanças os retornos lidos nas entrelinhas da espiral evolutiva. Ao que parece, a humanidade no final do século XX, mais uma vez, volta o olhar para o passado. Retorna em busca de religar-se, permitindo-se voltar ao jardim instigada pela utopia edênica.
                Por falar em jardim, com muito cuidado resolvemos nos debruçar sobre as plantas que as escrituras dizem existir, principalmente aquelas que suas folhas servem de remédios. Com tal intento nos apoiamos em Keer por dizer que os vegetais são os seres mais antigos do planeta e que o estudo das ervas é uma autêntica viagem pelo caminho da alquimia e da natureza.7 Concordamos com ele, haja vista o Criador tê-las feito surgirem no terceiro dia da criação, após a luz, o firmamento e as águas. Assim, ousamos convidar o leitor a fazer uma viagem de volta na tentativa de fazer com que o passado e o presente se iluminem mutuamente.8
                As criaturas apontadas pela história como primitivas mantinham a sua visão de mundo calcada no mito, imposto mais pela emoção do que pela intenção e, baseado no estreito parentesco entre a alma humana e a ordem cósmica, resultava da crença e do ritual que estabelece simultaneidades entre desejos e emoções e os fenômenos naturais. 9 As criaturas da época paleolítica usavam as plantas para o tratamento de suas doenças, fato conhecido não somente através estudos das tradições dos povos, mas também pela investigação científica no campo da antropologia, da paleontologia e da arqueologia pré-histórica.10
                Pelo sentido de esconjurar a morte e prolongar a vida, relações de ordem mágico e mítica foram se estruturando entre esses espaços, através das plantas, muitas vezes extrapoladas às dimensões físicas alcançando o sentido divino.
                O homem primitivo, com o corpo exposto às intempéries do cotidiano, principalmente aos riscos de adoecer e morrer, encontrou nas plantas um dos recursos necessário a sua continuidade. Assim, quando a enfermidade era de caráter interno, os povos primitivos recorriam ao sobrenatural - queimavam ervas para afugentar os espíritos maléficos que traziam as doenças. Por outro lado, quando a manifestação da enfermidade assumia caráter físico, recorriam aos vegetais com o objetivo de tratar o ferimento visível.
                A forma simbiótica como a criatura - considerada como primitiva, e as sociedades tradicionais- se relacionava com a natureza nos leva a reconhecê-la como mãe: feminina , tal qual uma mãe fértil, que do seu ventre rebenta a vida que alimenta a própria vida. Tanto é que; em reverência a terra que alimenta, os camponeses friulanos, homens e mulheres benandanti, os considerados bons, usavam caules de erva-doce com os quais combatiam os maus, ou seja, aqueles que estragavam a colheita usando caules de sorgo.11 Poeticamente, Hildegarde de Bigen, nos diz :“o divino está presente no verdejamento da Terra na forma de uma reminiscência da poesia da fertilidade da religião celta pré-cristã de grande parte da Europa.”12
                A autora acima citada dizia que comparava “o grande amor entre o Criador e a Criação ao mesmo amor e fidelidade com o qual Deus une homens e mulheres. Tanto assim que juntos eles podem ser criativamente férteis”. Ilustremos essa relação com parte de um poema de sua autoria:

A Terra é ao mesmo tempo mãe
Ela é mãe de todos
Pois contidas nela
estão as sementes de todos
A terra da humanidade
contém toda a unidade
todo o viço
todo poder germinador
É fértil em tantos sentidos
(...)13

                Na idade primitiva a criatura se confundia e se fundia com a natureza e a crença. Quando ainda a história não era narrada pela escrita, a natureza apresentava uma farmácia viva e os seus usuários, aqueles que viviam em sociedades tribais e tradicionais, estabeleciam uma afinada sintonia entre humano-flora-fauna e cosmo.14
                Em seu curso a espiral evolutiva da humanidade evidencia o momento que a história registrou como Idade Antiga. É nessa fase que, a criatura deixando de temer a natureza passou a buscar a igualdade entre si e a mesma. A mortalidade passou a ser o sonho almejado e por ela fez nascer a alquimia.
                Para Ana Goldfarb, a alquimia, “tem origem nas técnicas arcaicas mágico - ritualísticas dos curandeiros, mineiros e ferreiros só pode instituir-se a partir de uma sabedoria que procura compreender a relação anímica do homem com o material. (...), e surge no período histórico que Karl Jaspers chama de “tempo eixo”- entre 800 a 200 a.C. É nesse período que se verifica o surgimento no oriente do confucionismo, taoismo e budismo e, no ocidente, do Zoroatrismo, das profecias judaicas e da filosofia grega.”15
                Para os povos da civilização antiga, era preciso vencer o tempo e a ordem da natureza até conseguir superar-se enquanto mortal, desvendar o sobrenatural e ultrapassar o mito. Mas onde entraria a relação com as plantas medicinais? Essa mesma autora afirma que “a essência vital encontrada no ouro alquímico, era por sua vez, extraída das plantas e animais e que, ao transmitirem ao metal comum sua carga energética suprimiam as deficiências do metal, alterando o processo de perfeição e tornando possível sua transmutação.”16
                Nesta mesma ordem a medicina arcaica procurou uma droga milagrosa que conferisse a longevidade e mesmo imortalidade a quem o ingerisse. Procuravam assim o elixir da longa vida, a poção de imortalidade, que segundo os alquímicos, concederia a eternidade. Dentre os povos antigos que se destacaram perante as práticas alquímicas encontram-se chineses, hindus, hebreus e egípcios.
                Diz Jacques Le Goff que com o aparecimento da escrita surge um conhecimento ‘sábio’ das plantas medicinais e das suas propriedades terapêuticas.17 Entre os documentos antigos que tratam do registro de plantas medicinais são citados exemplares históricos. Na biblioteca de Assurbanipal, em Nínive, em escrita cuneiforme foram mencionadas 150 plantas medicinais. Na Índia antiga se faz referência ao Susruta-samhita, que enumera 700 plantas medicinais e que teria sido composto por Buda.18
                A obra mais antiga sobre plantas medicinais parece pertencer aos chineses. Trata-se do Pên-Tshao, escrito pelo imperador Shen-Ming, três mil anos antes de Cristo, contendo 365 plantas medicinais.19 Até os nossos dias, a relação da criatura com a natureza constitui a base filosófica da medicina chinesa, uma vez que a mesma advoga que o ser humano adoece quando está em desarmonia com as leis do Universo. Como outros recursos terapêuticos, as ervas medicinais têm uma existência milenar, tendo como função recolocar a pessoa em harmonia com o universo.20
                Há informações sobre o desenvolvimento, na era pré-colombiana, das fitofarmacopéias eruditas nos impérios da América Tropical. Os conquistadores espanhóis descobriram na civilização Asteca, nos jardins imperiais de plantas terapêuticas, o médico Francisco Martinez que estudava as virtudes das plantas simples que cresciam naturalmente.21
                O papiro egípcio de Ebers, datado de 1500 anos antes da era cristã e que mencionava 150 plantas medicinais, faz referência a fontes mais antigas, até 3000 anos a.C, assim como a fontes exteriores ao Egito.22 No Egito a figura de sábio Thot, chamado pelos gregos de Hermes Trimegistro, estava associada à elaboração dos livros mais famosos da antigüidade sobre o valor terapêutico das plantas. A terapêutica vegetal egípcia parece ter se desenvolvido com a presença dos hebreus naquele país. Diz-nos Castro que os hebreus praticaram a cura pelas plantas e que os processos de cura dos egípcios estavam assentados nos fundamentos da terapêutica hebraica.23
                Consideramos que as civilizações antigas amargaram a presença de conquistadores em seus domínios, fazendo surgir, em conseqüência, outros tipos de civilizações culturalmente diferenciadas. Em consonância com esse pensamento, podemos citar o exemplo da Grécia. A Grécia antiga atingiu seu apogeu por volta de 426 a.C., simultaneamente com o período denominado de civilização helenística, resultante da fusão da cultura helênica (grega) com a cultura do Orienta Médio, principalmente a persa e a egípcia. Os gregos conquistaram os povos do Oriente Médio, e por volta de 330 a.C., impregnada de razão, impediu, de certo modo que o conteúdo da mística oriental fosse apreendido. Diante deste contexto, crê-se que desta época origine-se a valorização da matéria em detrimento da metafísica, o que provocou uma cisão entre homem e natureza, espírito e corpo, até o momento não refeita.
                No tocante as plantas medicinais, admite-se que Alexandre Magno ao voltar para o ocidente, introduziu novas drogas à terapêutica grega. Entre os gregos se destacam Empédocles, Anaxágoras, Aristóteles que em seus estudos compararam os órgãos vegetais aos órgãos humanos, retirando dessa analogia o valor medicinal das plantas. Diz-se que Aristóteles descobriu as ervas adstringentes, antiespasmódicas, laxativas e purgativas. Por sua vez, Dioscórides descreveu mais de 500 plantas, 40 tipos de adulteração e formas de conservação vegetal. Entre os Romanos são apontados os estudos de Galeno e Plínio. Baseando-se nos estudos de Dioscórides, Plínio escreveu a História natural em 37 volumes. Galeno em mais de 200 obras falou sobre a adulteração de espécies vegetais, fundado os alicerces da farmácia galênica.24
                A Idade Antiga legou a humanidade uma adição considerável no campo do conhecimento. Entretanto, percebemos que, o mundo ocidental aproveitou da civilização oriental apenas a matéria em si, esquecendo-se de apropriar-se da compreensão que os mesmos tinham a respeito do homem, da natureza e dos símbolos, como organismos inseparáveis. Formava-se portanto, o embrião da técnica. Nesta volta, a espiral da evolução marca o começo de uma sensível distância entre o homem e a natureza.
                A Idade Média, caracterizada por intenso misticismo e noções de pecado, foi um período dominado pelos dogmas católicos e que impunha a concepção da doença como resultantes de castigos divinos. O conhecimento elaborado na antigüidade, em grande parte, foram enclausurados nas sombrias bibliotecas dos mosteiros medievais. Outra parte teria sido apreendida pelos árabes. Estes continuaram a desenvolvê-la, uma vez que não estavam impregnados pelos dogmas cristãos.
                Nesta época a pratica ervanária era exercida com freqüência nos mosteiros, dotados de jardins de plantas medicinais e de bibliotecas ricas em documentos médicos reproduzidos pelos monges copistas. A composição desses jardins medievais de plantas medicinais nos é dado a conhecer graças ao Capitulare de Villis, capitular carolíngio de 812, que prescreve a cultura de 76 plantas herbáceas e 16 espécies vegetais de interesse médico ou dietético. No século XV, com o intuito de instruir os monges sobre plantas medicinais foram impressos os primeiros herbários - verdadeiros tratados sobre plantas medicinais. Paracelso dizia que, a maioria das ervas medicinais já era conhecida na Idade Média.25
                Tal era a importância dada a esses tratados que com a invenção da imprensa, duas foram as classes de livros mais divulgados na época: a Bíblia e os livros sobre plantas medicinais. Ambos ofereciam ao povo a salvação da alma e do corpo e gozaram de tal representação que geralmente se encontravam em quase todos as casas.26
                Entre os grandes mosteiros medievais ricos em documentos fitoterápicos, é citada a abadia beneditina de Monte-Cassino, situada entre Roma e Nápoles. Segundo Jacques Le Goff, tal abadia apresentou interesse em manter relações com a escola de medicina criada em Salerno no século IX figurando como exceção na estagnação da ciência médica e durante três séculos destacou-se pela renovação do conhecimento médico. Nela eram tratados os cruzados que regressavam enfermos da Terra Santa. Lá eram acolhidos os médicos intinerantes pertencentes a certas ordens medievais, como Constantino Africano que, tendo visitado a Pérsia e a Índia, tomou ciência de uma lista de 168 plantas medicinais compiladas por um médico judeu da Tunísia- Isaac judeu. 27
                O imaginário da Idade Média encontrava-se impregnado de heresia. O instrumental do tribunal da inquisição, arquitetado para em quase toda ação humana revelar traços demoníacos, transferiu para as alas da cura e da ciência o seu olhar de punição. As mulheres eram geralmente associadas a bruxarias, onde o poder de cura dos seus remédios, todos contendo plantas, eram interpretados á luz da feitiçaria. Eis um período da história pontuado pelo poder masculino e enriquecido pelo imaginário demonológico de homens que diziam atuar em nome de Deus.
                Nesse aspecto em particular, uma das grandes contribuições da Escola de Salerno foi a de redigir tratados sérios e racionais de medicina, escritos intencionalmente com linguagem clara e compreensível. A exemplo, Jacques Le Goff cita o Circa instans, de 1150 enumerando 229 drogas vegetais, encerrando novidade trazida do conhecimento árabe. O autor cita também, datado da mesma época, o aparecimento do De Vegetalibus, do dominicano Alberto, O Grande, que lecionava em Paris no qual traduzia um conhecimento dos vegetais fundado na observação naturalista.28
                Entre o período que se estende do fim do século XIII até a aurora do século XVII, a Europa não só participou como assistiu a ascensão ocidental, desenvolvendo-se a mesma como uma civilização de tal modo superior que, seguidamente, se impôs pouco a pouco em todo o mundo.29 Na história, esse período ficou conhecido como Renascimento, e é aqui, que a espiral da evolução marca mais uma de suas voltas. O Renascimento surgiu mergulhado em um oceano de contradições. Com diz Jean Delumeau: “... um concerto por vezes estridentes de aspirações divergentes, uma difícil concomitância de vontade de poderio e de uma ciência ainda balbuciante do desejo de beleza e de um apetite malsão pelo horrível, uma mistura de simplicidade e de complicações, de pureza e de sensualidade, de caridade e de ódio”.30
                Embora o Renascimento se configure pela caminhada acelerada rumo ao racional, paradoxalmente nele encontramos, movimentos que revelam o desejo de uma ciência pautada no retorno ao mundo antigo. Tal ciência estruturava-se através do conhecimento cabalístico, alquímico e matemático, inspirando-se nos conhecimentos herméticos e paracelcistas. É nesse período que surgiu o movimento chamado de iluminismo Rosa Cruz. Esse movimento, como diz Frances Yates, num sentido estritamente histórico, representou uma fase na história da cultura européia, sendo intermediária entre a renascença e a pseudo-revolução científica do século XVII.31 Um dos documentos sugeridos como obra dos representantes desse movimento, intitulava-se Fama Fraternitis e; segundo a autora acima referida, parece simbolizar “a descoberta de uma nova, ou antes, recente e antiga filosofia, fundamentalmente alquímica e relacionada com a medicina e a cura, mas também interessada em números e geometria e, com a produção de prodígios mecânicos. Ela representa não apenas um adiantamento para a cultura, mas sobretudo uma iluminação de natureza religiosa e espiritual.”32
                No entanto, não tardou que os rosa-crucianos fossem associados à feitiçaria. Giordano Bruno, um dos defensores do conhecimento hermético teve apagado o seu ideal pelas chamas da fogueira da inquisição. No ano de 1623 a obsessão pela feitiçaria e o temor rosa-cruciano se alastram pela Europa, principalmente na França. Daí a difusão de técnicas repressivas, na forma de uma obsessão, causada pelo invisíveis Rosa-Crucianos e seus pomposos manifestos, sendo acusados de pertencer a uma sociedade secreta, diabólica e mágica.33
                Curiosamente, o grande personagem no ataque ao animismo renascentista do -hermetismo e da Cabala- como também de outras manifestações- , foi o monge francês, Marin Mersenne, amigo de René de Descartes. Através do ataque aos Rosa-Crucianos abriu o caminho para dar origem à filosofia cartesiana.34 Utilizamos textualmente as palavras de Francis Yates com o objetivo de tornar mais claro ao leitor o aniquilamento da filosofia hermética da renascença e a emergência da filosofia cartesiana: “ A filosofia do século XVII, que devia substituir as filosofias da Renascença, era o mecanismo cartesiano, e Mersenne, amigo dedicado e admirador de Descartes, representou o instrumento, através de suas ligações e correspondência, ao encorajar a substituição da magia pelo mecanismo. É uma das mais profundas ironias da história do pensamento, que o desenvolvimento da ciência da mecânica, por intermédio da qual surgiu a idéia do mecanismo como uma possível filosofia da natureza, fosse por si mesmo um resultado da tradição renascentista da magia. Uma vez despojado da magia, o mecanismo tornou-se a filosofia que devia eliminar o animismo da Renascença e substituir o ‘feiticeiro’ pelo filósofo da mecânica.”35 Nascia a racional ciência moderna.
                A história do conhecimento parece ilustrar que a vitória do racionalismo se deu quando se consumou, pela ação humana, o divórcio entre o Criador e Gaia, entre matéria e espírito entre a criatura e a natureza. Assim, como diz Sheldrake:“ desde a época de nossos mais remotos antepassados até o século XVII, admitia-se como certo o fato de que o mundo da natureza era vivo. Nos últimos três séculos, porém, um certo número cada vez maior de pessoas cultas chegaram a pensar que a natureza é isenta de vida. Tem sido essa a doutrina central da ciência ortodoxa – a teoria mecanicista da natureza.”36
                No final do século XX, observamos e experimentamos mais um retorno. Neste final de milênio a criatura sente uma necessidade de reintegrar-se a natureza, na qual ela se move, se nutre e co-evolui. A visão de planeta inerte vai perdendo espaço para a visão de Gaia como um superorganismo vivo. Uma síntese entre o passado e o presente se faz iminente. A academia apoiada pela física quântica repensa um conhecimento à luz do metarrealismo como uma filosofia aberta a fusão entre matéria, espírito e realidade.37
                A insistência que vem apresentando as criaturas, em fazer uso de plantas com finalidades terapêuticas, sugere um reencontro de espaços: corpo e natureza se abraçam, trazendo aos homens pós-modernos a compreensão de que todos os seres fazem parte do mesmo universo. O retorno das criaturas em direção ao seu salvamento, implica em considerar-se e considerar todos os membros vivos convivendo e coexistindo em um mesmo espaço: Gaia. Descobrem que, para continuarem sobrevivendo e evoluindo, devem cuidar de Gaia enferma, para assim continuar a marcha em direção a plenitude humana iluminada pela centelha divina.
                Seguem pois, as criaturas, a sua caminhada em direção a re-construção do jardim perdido... A poesia de Ovídio ressoa como uma saudosa canção que as movem em direção a promessa de felicidade
                ... E a terra era serena. Não a fustigavam a enxada e nem a relha, e em seu seio ela gerava tudo de que os homens precisavam e esses homens eram felizes.38

 1 BOFF, L. Dignitas terrae. Ecologia. Grito da terra. Grito dos Pobres. Ática, São Paulo, 1995. p. 30
2 LOVELOCK, J. O que é Gaia? In: NICHOLSON, S.; ROSEN, B. A vida oculta de Gaia. A inteligência invisível da terra. São Paulo, Gaia,1998. p.76
3 ELIADE, M. O mito de eterno retorno. Cosmo e história. São Paulo, Mercuryo, 1992.
4 MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. p. 14.
5 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1992. p. 37.
6 Bíblia Sagrada. Ezequiel, 47:12.
7 KEER, R. W. Herbalismo. O uso das ervas através dos tempos. Rio de Janeiro, Biblioteca Rosa Cruz. 1982. p.13
8 LE GOFF, J. A história nova. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 36
9 GOLDFARB, A. M. A. Da alquimia a química. São Paulo, Nova stella-EDUSP, 1988. p. 13
10 CASTRO, J. L. Medicina vegetal. Teoria e prática conforme a naturoterapia. 2.ed. Rio de Janeiro, Europa América, 1981.p.13
11 GINZBURG, C. 1990.
12 McDONAGH, S. A nova história: uma visão cristã e mística da natureza. In: NICHOLSON, S; ROSEN, B. A vida oculta de gaia. A inteligência viva da terra. São Paulo, Gaia, 1988.p. 49.
13 McDONAGH, S. A nova história: uma visão cristã e mística da natureza. In: NICHOLSON, S; ROSEN, B. Op. cit., p. 50.
14 SÁ, L. D. Utilização das plantas medicinais na história da humanidade: in: SÁ, L. D. Atividade antimicrobiana de extratos vegetais e óleos essenciais sobre bactérias causadoras de conjuntivite. Uma abordagem fitoterápica em enfermagem de Saúde Pública. João Pessoa, 1991. 11 0p. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Paraíba. p.
15 GOLDFARB, A. M. A. Op. cit., p. 15
16 GOLDFARB, A. M. A. Op. cit., p. 70
17 LE GOFF, J. As plantas que curam. In: LE GOFF, J. As doenças tem história. Lisboa, Terramar, 1985. p. 346
18 Ibidem, p.347.
19 CASTRO, J. L. Op. cit., p.13.
20 BONTEMPO, M. Medicina natural. São Paulo, Nova Cultural, 1994 p. 6
21 LE GOFF, J. Op. cit, 1985. p. 347.
22 Ibidem, p. 346.
23 CASTRO, J. L. Op. cit., p. 15.
24 SÁ, L. D. Op. cit., p. 26
25 PARACELSO. Botânica oculta. São Paulo, Hemus, 1976. p.24
26 KOSEL, C. Guia de medicina natural. Barcelona, Ediciones Omedin, 1979. p.23
27 LE GOFF, J. Op. cit, 1985. p. 351.
28 Ibidem, p. 353.
29 DELUMEAU, J. A civilização do ocidente. Lisboa, Imprensa Universitária, 1983. v.I. p. 20.
30 DELUMEAU, J. Op. cit., p. 22.
31 YATES, F. O Iluminismo Rosa-Cruz. São Paulo, Cultrix-pensamento, 1972. p.7
32 YATES; F. Op. cit. p.
33 Ibidem, p. 148 e 155.
34 YATES, F. Op. cit. p.154
35 Ibidem, p. 156.
36 SHELDRAKE, R. O renascimento da Natureza. O reflorescimento da ciência e de Deus. São Apulo, Cultrix, 1991. p. 15.
37 GUITTON, J. Deus e a Ciência. 4ºed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992. p. 136.
38 Ovídio. Metamorfoses, livro I. citado por: SHELDRAKE, R. Op. cit.p. 27.

Ilustrações: Silvana Santos