É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Arte e Ambiente
07/12/2004 (Nº 11) IDENTIDADES : relato de uma experiência em arte-educação ambiental
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IDENTIDADES[1]: relato de uma experiência em arte-educação ambiental.

 

Profª MSc. Cláudia Mariza Mattos Brandão[2]

Acad. Daniel Rodrigues Duarte[3]

 

 

... o olho a si mesmo não se enxerga,

senão pelo reflexo em outra coisa.

William Shakespeare

 

 

Vivenciamos uma época que massifica comportamentos e padroniza personalidades na busca da ascensão profissional-financeira: um requisito fundamental para a sobrevivência em nossa sociedade consumista. Com esse comportamento perdemos a essência, o olhar particularizado sobre o que nos rodeia, enfim... perdemos a identidade individual e coletiva. O projeto Identidades pretende instaurar a discussão sobre as questões identitárias na contemporaneidade, resgatando através da arte, da educação e da ação cidadã, a relação do homem com o seu meio e, conseqüentemente, consigo próprio.

 

1. Como tudo começou...

 

Em 2003, como atividade para a disciplina Fundamentos e Oficinas em Arte-Educação, do curso de Artes Visuais – Licenciatura, da FURG, realizamos uma saída de campo no vizinho município de São José do Norte, com o objetivo de exercitar o desenho de observação. Durante a prática constatamos o descaso com o patrimônio histórico da cidade, onde vários prédios antigos estão abandonados, aguardando apenas que a corrosão do tempo se encarregue de derrubá-los. A cada prédio que “morre”, morre também a identidade dessa cidade e das pessoas que nela residem, pois como nos conhecermos se não soubermos nossa história, nossas origens?

 

Sensibilizados pela questão surgiu a primeira etapa deste projeto, a exposição temática “São José do Norte em Fragmentos Artísticos” (figura 1), com o intuito de promover o debate sobre a relevância do patrimônio histórico e cultural da cidade, a partir dos desenhos de observação realizados. Os trabalhos registraram recortes da paisagem urbana - locais e prédios que as pessoas vêem diariamente em seus trajetos cotidianos, mas que não lhes chama a atenção. Ficamos muito surpresos com o fato dos cidadãos não repararem a beleza e a grandeza histórica de sua cidade: quando você conhece e reconhece seu espaço, de certa forma, se reconhece; e quando isso não acontece??

 

 

Figura 1: Cartaz de divulgação

                                      Projeto gráfico acad. Ilse Jochmann

 

Essa exposição resultou do olhar turista, da visão do forasteiro que se surpreende com a beleza das construções e com a latência histórica em vias de desaparição. Esse olhar é mais puro, isento, pois não estávamos “acostumados” com o que víamos, propiciando uma melhor análise dos detalhes e o despertar de uma reflexão crítica.

 

Como uma proposta completar, associamos a exposição à realização de oficinas oferecidas pelos acadêmicos aos alunos da rede de ensino municipal, possibilitando que os “alunos-artistas” realizassem práticas pedagógicas ressaltando a importância do fazer artístico como instrumento mediador na discussão sobre a realidade cotidiana e incentivando os professores de Educação Artística da rede municipal de ensino a realizarem ações conjuntas que propiciem a reflexão crítica acerca do contexto sócio-histórico dos educandos.

 

Foi gratificante, durante os períodos de visitação da exposição, ver os alunos reconhecerem as ruas de suas casas, os casarões, as calçadas... Enfim reconhecendo um pouco de sua história... e reconhecendo-se nessas obras. As oficinas oferecidas propiciaram a experimentação de variadas linguagens artísticas que enfatizaram a temática “patrimônio histórico”, encaminhando as ações pelo viés da Educação Ambiental.

 

Os resultados do projeto excederam as expectativas do grupo. A exposição, que reuniu 20 obras em desenho, fotografia e instalações, foi visitada por aproximadamente 500 pessoas, e as oficinas foram freqüentadas por 300 estudantes do ensino fundamental. O evento foi amplamente divulgado, inclusive pelo jornal Agora e pela RBS, e no dia de seu encerramento recebemos o convite para sua re-edição em outubro de 2004, integrando as comemorações do aniversário da cidade, o que comprova o êxito da proposta. 

 

2. O projeto Identidades

 

Com o sucesso do projeto São José do Norte em fragmentos artísticos o grupo decidiu ampliar as discussões. Desta feita, a exposição reúne um conjunto de 20 obras que são auto-retratos, realizados em diferentes técnicas, que resultaram de reflexões sobre a identidade dos sujeitos, questionando e buscando identificar as subjetividades que convivem no meio universitário, mais precisamente no curso de Artes Visuais - Licenciatura.

 

Como forma divulgação da produção do grupo - agora freqüentando o 3° ano das Artes Visuais - no meio acadêmico, entre 20 de maio e 3 de junho deste ano apresentamos, no IDEA Espaço de Arte, FURG, a exposição “Identidades” (figura 2), visitada por 427 pessoas. 

 

Figura 2: Cartaz de divulgação do evento

                      Projeto gráfico acad. Ilse Jochmann

 

 

 

 

 

Paira no ar uma sensação de vazio absoluto...

 

Tédio, vazio e niilismo são algumas das palavras utilizadas para descrever a realidade do homem contemporâneo, características de um mundo que dissolve culturas e lança os indivíduos numa luta desprovida de valores.

 

A busca da identidade - da marca diferenciadora... do ver e ser visto... do perceber e ser percebido... - parece ser a via crucis de nossa civilização. 

 

Identidades reúne produções dos alunos do 3° ano do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e representa um momento de reflexão individual no qual cada um, num exercício de auto-crítica, se propôs a uma auto-representação, quer seja através do espelho ótico ou... do espelho da alma.

 

Esta exposição resulta de ações que buscaram promover a emancipação e a inclusão na diversidade, o pensamento crítico e a qualificação dos diálogos, e está fundamentada no fortalecimento das Identidades.

 

Neste momento somos muitos e somos um só, na busca de relações íntegras, pensando o ser humano em seu permanente processo de construção. (texto de apresentação da exposição Identidades, Profª Cláudia Brandão)

 

 

Com o trabalho de auto-retrato conseguimos exteriorizar a maneira que nos vemos no mundo, nossos padrões de gosto e nossas idéias em geral. Mais que tudo, foi muito bom compartilharmos nossos posicionamentos com os demais colegas, do nosso curso e de outros também, estabelecendo um diálogo que privilegia a obra de arte como mediadora dos questionamentos.

 

Permear saberes na busca da compreensão do tempo presente, se trata, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana[4], evidenciando que o processo de recomposição das práticas sociais e individuais e o redimensionando da relação do sujeito com o meio - dentro dos novos contextos históricos - exige uma mudança de postura que precisa ser despertada e que tem na arte um excelente meio.

 

Quem vê uma exposição de auto-retratos, de certa maneira, se “auto-retrata” também, pois vê inúmeras interpretações à vida... identifica-se mais com um trabalho que com outro... gosta, desgosta... e assim vai construindo seu repertorio e sua própria identidade.

 

 

Figura 3

 

 

 

 

Figura 4:

 Felipe Cadaval, técnica mista.

 

 

 

 

Figura 5:

Priscila Alves Araújo, fotografia digital.

 

 

 

Figura 6:

Daniel Duarte, óleo s/ eucatex.

 

 

Figura 7: Grupo do projeto na abertura da exposição.

 

 

3. ...e o Identidades continua expandindo seus questionamentos.

 

Dando continuidade às ações, entre 19 e 25 de outubro, integrando as comemorações de aniversário do município de São José do Norte, no Clube Recreativo e Cultural Sócrates, mais uma etapa do projeto se desenvolveu. Neste ano, foram oferecidas oficinas relacionadas à linguagem fotográfica, estabelecendo reflexões sobre a identidade dos sujeitos, a visão do cidadão sobre sua cidade e a construção da memória coletiva como um traço indiciário das identidades individuais.

 

Na interlocução entre cidadão e cidade o objeto estético contribui como elemento detonador do questionamento, em particular a imagem fotográfica, por possibilitar a análise do fenômeno, revelando sínteses dos inúmeros contrastes que o espaço público contém. Na tentativa de dar à cidade a visibilidade de suas funções e conexões, numa relação de reciprocidade, a Arte se manifesta como um processo de construção e revelação das identidades, que possibilita a ressingularização do sujeito.

 

Acreditamos que através da união Arte/Ecologia é possível a instauração de novos parâmetros de valorização, que aprimorem a ética das relações e viabilizem a reflexão acerca da construção da identidade do homem contemporâneo, evidenciando a contribuição da educação informal aos mecanismos que garantem o acesso de todas camadas sociais ao conhecimento e á reflexão crítica. 

 

As oficinas conduzidas pelos “alunos-artistas”, com as turmas da disciplina Educação Artística da rede municipal de ensino, possibilitaram mais uma vez o desenvolvimento de ações que unem o fazer artístico à reflexão critica, caracterizando um processo interdisciplinar que possibilita o cultivo da auto-estima, da cooperação e da responsabilidade sócio-ambiental.

 

Nosso objetivo é incentivar a discussão sobre as questões identitárias e as relações de alteridade na contemporaneidade, sensibilizando a comunidade sobre temas gerais ou específicos relativos à identidade dos sujeitos na contemporaneidade, ressaltando a importância do fazer artístico como instrumento mediador das discussões, motivando os professores de Educação Artística a realizarem ações conjuntas que propiciem a reflexão critica acerca do contexto sócio-cultural dos educandos, fortalecendo o desenvolvimento de uma mentalidade que cultive o sentido de pertencimento e valorização do espaço urbano, e fomentando parcerias entre a comunidade, o poder público do município de São José do Norte e a FURG para e desenvolvimento cultural da região.

 

4. Considerações finais

 

A história é um processo de construção dinâmico e dialético, e em suas teias, presente e passado evocam-se mutuamente. Esse permanente movimento de fluxo e refluxo é o que permite o dimensionamento do presente e a projeção de ações futuras.

 

Observamos, ao longo de quase dois anos de atividades, o quanto é importante o resgate e o fortalecimento das identidades para a construção de uma sociedade mais justa, mais ética, com pessoas conhecedoras de suas raízes e cientes de sua importância, de seu papel na sociedade, enfim... homens e mulheres formadores de opiniões, atuando como agentes modificadores de uma realidade de abandono e descaso. Concluímos que só através da educação, da cultura e do exercício da cidadania é que formaremos cidadãos construtores de suas próprias identidades.

 

Os pensadores da Antigüidade preocuparam-se em conhecer os elementos constitutivos das coisas em busca de um princípio estável que explicasse a origem dos seres e suas transformações. Introduzindo no estudo da sociedade e da cultura o ponto de vista reflexivo-crítico, assim como problematizaram a Natureza, transformaram em problema filosófico a existência e a finalidade das artes. A reflexão filosófica em torno da Arte introduzida pelos gregos desenvolveu-se ultrapassando os limites das avaliações estéticas. Como modo de ação produtiva do homem, a Arte constitui um fenômeno social e é parte da cultura. Relacionada com a existência humana, é foco de convergência de valores religiosos, éticos, sociais e políticos, e mantém íntimas conexões com o processo histórico. Produto da práxis, a expressão artística é a exteriorização da existência, uma forma de ação cujos efeitos se produzem de modo indireto. Agindo sobre a nossa maneira de sentir e de pensar, a Arte é um apelo, uma solicitação capaz de despertar a consciência moral para a descoberta dos valores éticos, sociais e políticos, dando-nos uma visão mais íntegra da realidade.

 

 

Bibliografia:

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas; v.1). 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1984.

GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.

_______________  Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

OLIVEIRA, Ana Cláudia de e SANTAELLA, Lúcia (org.). Semiótica da Cultura, Arte e Arquitetura. São Paulo: EDUC, 1987.

REIGOTA, Marcos. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998.

________________ Meio ambiente e representação social. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

SAMAIN, Etienne (org). O Fotográfico. São Paulo: Ed. Hucitec, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.

TOURAINE, Alan. Crítica da Modernidade. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

 

 

 

 

 

 

 



[1] Projeto de Extensão, DLA, FURG, um dos quinze projetos selecionados para representar a FURG no XXII SEURS.

[2] Professora do curso Artes Visuais – Licenciatura, FURG.

[3] Acadêmico do 3° ano do curso Artes Visuais, classificado em 1° lugar na III Mostra de Produção Universitária – Extensão, 17 – 20/11/2004, FURG.

[4]Morin, 2000:45.

Ilustrações: Silvana Santos