Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
A ARTE ROUBADA E OS REMENDOS DAS HISTÓRIAS ROSSE, Ana Beatriz Reinosoi BRANDÃO, Cláudia Mariza Mattosii
Resumo: O artigo aborda um tema candente e de interesse para reflexões sobre a memória social no âmbito de discussões ecosóficas e decoloniais. Através da análise de casos envolvendo o deslocamento de algumas obras de arte de seus países de origem, problematizamos os museus como agentes replicadores dos ciclos de opressão colonial na contemporaneidade.
Na edição anterior, o volume 78 desta revista, a coluna Arte & Ambienteiii foca em reflexões sobre as inter-relações entre as obras de arte e seus contextos históricos. Discute-se sobre a arte como fruto de seu momento de geração, imagens que nos acenam para as mentalidades e comportamentos de determinada época. Desta feita, a proposta é a de reverberar nossas inquietações, resultantes de discussões desenvolvidas nos encontros do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq), acerca dos acervos museológicos, suas origens e procedências. Isso, pois em muitas dessas instituições as obras são oriundas dos processos colonizadores, de saques e apropriações de histórias, muitas vezes exibidas como troféus dos vencedores. Nesse contexto, consideramos fundamental a aproximação do pensamento de Félix Guattari (1990), acerca da ecosofia, do conceito “colonialidade do poder”, de Anibal Quijano, relativo à permanência de muitas relações oriundas do poder colonial. Como destaca o autor, embora o término do período de colonização, a “colonialidade se reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser. E mais do que isso: a colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade; é a sua parte indissociavelmente constitutiva” (QUIJANO, 2000, p. 352). Entendemos que os deslocamentos das obras de arte de seus contextos originários, sendo abrigadas em instituições estrangeiras, comprometem as trocas dialógicas e o contato das populações com as suas histórias de origem. Sendo assim, esse é um tema de muito interesse para discussões acerca da Educação Ambiental, visto a sua intrínseca relação com a memória social. As sociedades ocidentais, a partir do renascimento romperam com a integralidade do objeto. [...] A história dos conflitos e das lutas pelos tesouros e símbolos de poder se encarregará de fazer emergir os museus como instituições de objetos, despojados das suas funções sociais, através da valorização das funções estéticas. No século XIX e no XX, a chamada “arte africana” e o modernismo são um bom exemplo para compreender a ruptura de narrativas entre o simbolismo mágico e a estética. Ainda que a estética seja simbólica, os objetos sacros, por assim dizer transportam um significado que só se pode concretizar num dado contexto, que se constitui como o processo, onde um determinado ritual é desenvolvido no seio duma determinada comunidade. Na arte africana que a partir do século XX cada vez mais é apreciada nos salões cosmopolitas da Europa. É possível compreender esta estetização da arte negra. Os objetos de arte africana que chegaram à Europa perderam as suas funções, mas permanecem como obras estéticas. (MORIN, 2016, s/p). Edgar Morin nos apresenta um sintético panorama de como a arte africana era vista e consumida pelos europeus, nos séculos XIX e XX, um exemplo significativo da questão abordada neste artigo. Frente às constatações do autor, é difícil não pensar nas obras de arte roubadas dos povos oprimidos e colonizados ao longo da história. Aquelas que foram entendidas como exemplares de subculturas num primeiro momento, e que ao serem exibidas nos grandes salões e museus europeus eram apreendidas como exemplares exóticos e esteticamente belos, tendo suas histórias e funções originais totalmente ignoradas e, consequentemente, apagadas. Adotando a fala de Morin como ponto de partida, o presente texto analisa algumas obras de arte levadas para longe de seus países de origem e o modo como os museus, instituições responsáveis pela guarda de tais objetos, seguem repetindo os ciclos de opressão na contemporaneidade, através da valorização das suas funções estéticas.
O museu como um lugar que abriga objetos é uma criação humana. A ideia de coletar coisas e organizá-las segundo a lógica própria de cada instituição pode nos fazer acreditar que todas as suas peças foram naturalmente e pacificamente amealhadas por seu valor artístico, histórico ou científico. Porém, não é bem assim. Com uma rápida checagem em um livro de artes ou na internet, é possível verificar a existência de um padrão entre a origem e onde se encontram algumas obras de arte de países que foram invadidos, saqueados e colonizados geralmente por nações europeias. Nem sempre o registro de como tais obras foram adquiridas está disponível, muitas vezes ele é encoberto por uma “história oficial”, fazendo com que elas percam não somente a sua função original, como também, a social. Expatriadas, tais obras estão presentes abundantemente em países como Inglaterra, França e Itália. O início de uma grande parte das “coleções africanas”, que compõem os acervos de museus como o British Museum, em Londres, e o Musée du Louvre, em Paris, por exemplo, coincide com o final da escravidão no continente americano e a expansão da colonização europeia em terras africanas, na segunda metade do século XIX. E cabe destacar que a arte africana está diretamente relacionada às práticas cotidianas das populações. Desde o tear das tecelãs, assim como os mantos e vasos, com suas cores vivas e padrões hábil e minuciosamente elaborados, as suas feituras eram associadas à transmissão de valores ecológicos, de relação com a natureza, e aos princípios sociais de cada grupo. Os tecidos reuniam um conjunto de conceitos e valores comunitários, utilizando materiais de todos os tipos e em diferentes combinações, da fibra vegetal ao ouro. E tal sistema artístico foi brutalmente afetado com a imposição dos valores artísticos dos colonizadores, eurocentrados, como argumenta Andrew Graham-Dixon (2011, p. 590): “Diferentes colonizadores impuseram diferentes valores artísticos. O sistema de patronato local foi interrompido, obras de arte ditas “superiores” foram importadas, e aspectos do mercado de arte ocidental foram introduzidos”. As chamadas “artes superiores” foram rapidamente introduzidas e as locais saqueadas, sendo levadas para solos estrangeiros. E esta é uma discussão que reverbera nas mídias contemporâneas, como por exemplo no filme “Pantera Negra” (2018)iv, dirigido por Ryan Coogler. Em uma cena, Killmonger, personagem interpretado por Michael B. Jordan, admira artefatos africanos em um museu britânico e, em seguida, se dirige à uma funcionária indagando sobre a origem das peças e anunciando que levará uma delas. Indignada, a mulher exclama: “Você não pode roubar isso!”, ao que ele replica: “Mas vocês não roubaram isso? Só estou pegando de volta”. Outro exemplo de tais práticas se refere ao caso do nobre Thomas Bruce (1766 - 1841), embaixador britânico para o Império Otomano entre 1799 e 1803, um dos maiores saqueadores do mármore grego. O objetivo inicial do sétimo Conde de Elgin, título de nobreza do embaixador, em sua estada na Grécia era o de copiar algumas esculturas utilizando moldes de gesso, para posteriormente decorar a sua mansão. Para tanto, ele subornou diversas autoridades turcas, porém, mesmo assim, sua equipe era sujeita a inúmeras restrições, como, por exemplo, o uso de andaimes, além de ser proibido retirar qualquer material do local. Frente às dificuldades, Bruce radicalizou e mudou seus planos. Ele decidiu "salvar" o mármore do Parthenon utilizando uma equipe de 300 homens, durante um ano, para retirar os mármores, nem sempre com cuidado. No total foram roubadas 56 peças e 19 estátuas, que atualmente se encontram no British Museum, deixando a estrutura remanescente com buracos e falhas. Cariátide é uma coluna de sustentação arquitetônica esculpida no formato de uma figura feminina. No templo Erecteion, erigido na Acrópole de Atenas, no século V a.C., eram seis as cariátides utilizadas como colunas da edificação até a chegada de Thomas Bruce, saqueador de uma delas. Hoje, as cinco restantes em solo grego estão expostas no Museu da Acrópole de Atenas, em uma plataforma, de maneira a representar a disposição original no templo, com um espaço vazio entre elas, onde se encontraria a roubada. Assim, a expografia pontua de forma marcante a ausência da figura e o roubo, lembrando que ela se encontra no British Museum, disposta sozinha em um canto do museu (IMBROISI, 2022).
Algumas vezes, os objetos saqueados retornam a suas terras de origem, como ocorreu com o Obelisco de Axum. Após mais de 70 anos de solicitações por parte do povo etíope, depois de ser quebrado, ao ser atingido por um raio em solo italiano, ele foi repatriado. Construído no século IV d.C., pelo rei Ezana, do reino africano de Axum, entre 333 e 350, o monumento de 160 toneladas permaneceu no local por mais de mil anos, até que as aspirações coloniais do ditador Benito Mussolini chegaram às suas fronteiras. Coração do império Axumite, que durou quase mil anos, a região de Axum, abrigava o monumento megalítico de 24 metros, cercado por um anel de obeliscos menores. Em 1937, o obelisco, mais apropriadamente denominado estela, foi levado como espólio de guerra e transferido para a Itália. A estela monolítica foi cortada em cinco pedaços e transportada por caminhão ao longo da tortuosa rota entre Axum e o porto de Massawa, em cinco viagens realizadas num período de dois meses. Ela chegou de navio em Nápoles, sendo então transportada para Roma, onde foi remontada na praça Porta Capena, na frente do Ministério de África, um final um tanto irônico para o artefato roubado. Ele foi oficialmente inaugurado em 28 de outubro de 1937, em comemoração do décimo quinto aniversário da Marcha em Roma Durante 70 anos a estela permaneceu em Roma, embora decisão da ONU de sua repatriação, em 1947, além de várias negociações com o governo italiano realizadas ao longo dos anos. A falta de financiamento e os desafios técnicos envolvidos no processo significavam que pouco poderia ser feito sem a cooperação italiana. Em 2002 ela foi atingida por um raio, durante uma violenta tempestade, causando danos consideráveis. O obelisco de granito do Rei Ezana permaneceu em Roma até 2008. No entanto, 1700 anos após ter sido erguido pela primeira vez, e 70 anos depois de ter sido roubado, ele foi repatriado para elogios generalizados em toda a Etiópia. O retorno da estela abriu o precedente para a devolução de outros artefatos sagrados roubados, principalmente, os saqueados pelas tropas britânicasv. Alguns museus, assim como o British Museum, têm a consciência de que seus fundadores tiraram proveito do tráfico transatlântico de escravos e, em função disso, até tentam algo em prol da reparação histórica. Alguns colocam placas indicativas contando a história do objeto, o seu trajeto e as suas funções no contexto original. Outros, como o Musée du quai Branly, ou “Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas”, criado com a ideia de ser como um “pedido de desculpas” às “civilizações não-europeias”, como coloca o então presidente da França, Jacques Chirac, em 2006, nem tentam. Sem uma nítida separação entre países e culturas do mesmo continente, sem uma separação dos objetos de acordo com suas funções, sem seus contextos, sem a narrativa de suas histórias e somente se importando com a estética das peças, elas estão expostas aleatoriamente. São todas lindos, mas qual será a história que carregam em si? Neste mesmo museu, guardado a sete chaves em sua reserva técnica, encontra-se um manto do povo Tupinambá, um dos nossos povos originários, datado do século XVI.
São vários os mantos sagrados dos Tupinambá espalhados pelo mundo. E enquanto os turistas se deleitam com a beleza estética do artefato, seu povo é apartado de sua própria história, suas práticas e tradições. Ao longo dos últimos anos observamos uma onda de negacionismo e apagamento das histórias e tradições de diferentes dos povos. Muitas obras, em sua maioria não europeias, seguem asiladas em museus e apartadas de seus contextos. Os estudos decoloniais avançam e cada vez mais observamos movimentos de retomada e repatriação dessas obras aos seus países de direito. No caso dos nossos mantos sagrados, eles não retornaram, entretanto, líderes indígenas tiveram a oportunidade de viajar e examiná-los, e assim foi confeccionado um novo manto e restaurada a tradição sagrada de seus rituais entre os Tupinambá. O esvaziamento de sentidos e a banalização desses objetos, consumidos somente pelo valor estético que possuem, indicam o perigoso limiar do esquecimento das múltiplas e complexas histórias dos diferentes povos que habitavam - e ainda habitam - o planeta. A luta do povo Tupinambá, da aldeia da Serra do Padeiro, no sul da Bahia, para reconquistar a sua história, emblematicamente representada por um manto, resgatou também o seu próprio direito de existir, fruto de um ciclo de lutas pelo território e pela valorização da cultura tradicional. Embora os Tupinambás vivam na Bahia desde tempos imemoriais, eles só foram reconhecidos como indígenas pelo Estado brasileiro em 2001. Isso demonstra que ainda temos um longo caminho a percorrer, não só para resgatar os objetos e suas histórias das instituições museológicos mundo afora, mas, principalmente, para reatar os vínculos significativos entre nós, humanos, e as nossas histórias, e com o próprio planeta.
Referências GRAHAM-DIXON, Andrew. Arte: o guia visual definitivo da arte–da pré-história ao século XXI. Publifolha, São Paulo – SP, 2011. GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990. IMBROISI, Margaret; MARTINS, Simone. Cariátides no Museu da Acrópole. História das Artes, 2022. Disponível em: <https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/cariatides-no-museu-acropole/>. Acesso em 20 May 2022. MORIN, Edgar. Notas de Leitura da conferência de Edgar Morin. Estetica da arte e antropologia complexa (L’esthétique et l’art du point de vue d’une anthropologie complexe). Em Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 2016. Traduzido por: Pedro Pereira Leite, 2018. Disponível em https://globalherit.hypotheses.org/6652?fbclid=IwAR2wZbvKYU3hUv14pwr26eMEkPPq2Xo53jyNndoz1TrI3P__cWo5zdEZ2aY Acesso em 05/05/2022 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In.: Journal of world-systems research, v. 11, n. 2, 2000, p. 342-386
i Graduanda do curso de Letras – Português Francês da Universidade Federal de Pelotas; pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). Bolsista PROBEC UFPel, projeto de extensão ARTEIROS DO COTIDIANO. anabeatrizreinoso25@gmail.com ii Doutora em Educação, com pós-doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, do curso Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq) http://www.photographein-pesquisa.com.br/ attos@vetorial.net iii Disponível em http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=4250 iv Trailer disponível em https://www.youtube.com/watch?v=xjDjIWPwcPU v Para maiores informações consultar https://stringfixer.com/pt/Obelisk_of_Axum
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