Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
O ENSINO DA FOTOGRAFIA ANALÓGICA EM TEMPOS DA INSTANTANEIDADE DIGITAL
Rebeca Franco Fonseca de Freitasi Cláudia Mariza Mattos Brandãoii
Resumo: O presente artigo aborda reflexões sobre a oficina “Visto Jamais Visto” a partir da perspectiva da Arte e da Educação Ambiental. Estabelecemos contrastes entre a vida corrida que nos obriga a olhar sempre para frente, rumo a resolução das metas diárias, e as pausas contemplativas diante da natureza proporcionadas por caminhadas coletivas e registros analógicos pela cidade de Taquari/RS. Compreendemos nesse artigo a importância de desacelerarmos os nossos cotidianos, através de provocações feitas em salas de aula com a fotografia analógica, para que possamos sair da lógica individualista, assumindo a nossa inserção na teia da vida integrados à natureza.
Você já parou para pensar sobre a sua relação com o espaço urbano, com a sua cidade, o seu bairro, o seu lugar? Quase submersas/os na dinâmica diária da vida pessoal e com a percepção assolada/o pela imagética urbana, é cada vez mais difícil perceber os interstícios do mundo que nos rodeia. Nesse processo, a cidade passou a ser um panorama difuso, fugidio à compreensão imediata dos sentidos e, muitas vezes, não entendida como um “lugar antropológico” (Augé, 2012, p. 51): Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem designa um lugar, por mais modesto e humilde que seja. Embora muitas vezes percorrendo os mesmos caminhos cotidianamente, é difícil descrevê-los em detalhes. Na mente, no exercício da memória, imagens rápidas se sucedem. São assim como instantâneos fotográficos não processados, registros fugazes de uma realidade veloz e voraz que consome sem dó. Neste texto discutimos sobre pausas reflexivas proporcionadas pela prática da fotografia analógica, um recurso artístico instaurador do devaneio poético (Bachelard, 1988). O exercício da linguagem fotográfica tem em si a potência de (res)estabecer os vínculos de pertencimento das pessoas com o seu lugar, e, por consequência, consigo mesma. Trata-se de um conjunto de atividades envolvendo a fotografia analógica proposto a um grupo de moradores da cidade de Taquari (RS), realizado em janeiro de 2023. Taquari é considerada a cidade “mãe do Vale do Taquari”, a terceira mais fértil do mundo, de acordo com o site do município. Vale mencionar que o título da oficina foi inspirado no filme experimental “Já Visto, Jamais Visto” (2014), de Andrea Tonacci. A obra é composta por imagens de arquivo coletadas de cenas descartadas dos seus outros filmes. Tais imagens, olhadas por outra perspectiva, proporcionaram um novo significado aos espectadores. As imagens que estavam destinadas ao lixo foram reutilizadas e reinventadas na obra. O projeto incentivou que os participantes olhassem para a cidade sob um ângulo/ponto de vista diferente do habitual, estimulando lembranças e afetos relativos ao espaço e à comunidade taquariense. A expectativa era de que os estudantes, inspirados pelas aulas, deixassem suas poéticas pessoais e vivências afetivas entrarem em cena durante os cliques nas saídas fotográficas. Desse modo, os docentes foram instigados através da oficina a olharem para lugares que são “descartados” pelo olhar, por conta da correria com as tarefas rotineiras, de forma curiosa e atenta. Além disso, buscou-se instigar a percepção das diferenças entre as técnicas, o analógico e o digital. O analógico tem uma temporalidade mais lenta, em função de suas etapas: revelação, digitalização e impressão. O digital, ao contrário, dispõe de um processo mais ágil e muitas vezes automatizado, através do qual basta apontar a câmera e clicar, resultando uma imagem que pode ser vista no mesmo momento. Vale apontar que o processo de revelação da fotografia analógica causa danos ao meio ambiente. Isso acontece, devido aos sais de prata dos químicos utilizados. Descartados diretamente em pias e lavabos, contaminam as águas subterrâneas, rios, lagos e mares. Porém, a fotografia digital não é diferente da analógica no quesito poluição ambiental. Ela também é invasiva, tanto na etapa de produção do equipamento, suporte de imagem (câmera, celular, notebook, tablet, por exemplo), como em seu descarte. Além do alto consumo de água na produção dos mesmos e os metais que poluem o ar, o lixo eletrônico aumenta assustadoramente, ainda com destino incerto. Existem práticas recicláveis de fotografias digitais e analógicas. Há estudos que recriam câmeras com materiais destinados ao lixo, como, por exemplo, o uso de caixas de papelão e rolos de papel higiênico simulando a lente. São inúmeras as formas de reciclagem possíveis de serem trabalhadas em sala de aula, porém, preferimos deixar para falar deste assunto em um artigo dedicado somente a este tema. Atualmente, muito se discute sobre o sistema capitalista; sobre o excesso de consumo e a bem menor durabilidade dos equipamentos. Nesse sentido, a qualidade de câmeras digitais é inferior à grande parte das câmeras analógicas. Quem ainda não encontrou uma câmera analógica da família esquecida no fundo gaveta? Ao menos, já deve ter escutado alguém que tenha passado por essa situação, comentando que o equipamento segue funcionando. Não desejamos criar uma celeuma saudosista em torno do analógico e do digital, mas se comprova que a vida útil das câmeras fotográficas contemporâneas deixa a desejar quando comparadas às analógicas. O assunto vida útil, durabilidade e os danos ao meio ambiente deve ser considerado, porém, cabe ressaltar a importância da imagem fotográfica para os vínculos da estabelecidos entre as pessoas e os lugares. Em um mundo atravessado pela abundância de imagens, digitais ou não, cuja recepção acrítica tem sido discutida por autores como Gilbert Durand (2001), a mediação da fotografia analógica como recurso pedagógico pode contribuir para a reflexão crítica acerca da sociedade contemporânea. O filme fotográfico é capaz de materializar a memória e a afetividade de cada criador, imprimindo a imprevisibilidade transgressora e oculta que a imaginação revela na película, única e corruptível pelo tempo. É possível observar também a criação mútua entre o fotógrafo e o caráter inesperado que a fotografia analógica propõe como interferência no resultado revelado. Sendo assim, abre-se a possibilidade de considerar a natureza indomável da vida e do ambiente, que seguirão seu curso mesmo após as ações humanas. Interessante pensar que a oficina “Visto Jamais visto” aconteceu em uma cidade que se apresenta como um ponto de atração e interesse de ocupação, devido à sua localização e à fertilidade das terras. Ou seja, uma cidade propícia para pensar o meio ambiente, com metodologias da fotografia analógica a fim de estimular os envolvidos a desenvolverem consciência ambiental, sobre o consumo desenfreado, ativando momentos de contemplação da cidade em que vivem. Motivados a olhar para a cidade onde moram, os participantes da oficina optaram por produzir imagens que tendem à fabulação do cotidiano. As fotografias captadas em ambientes comuns aos seus criadores, estão sujeitas à subjetividade dos olhares.
Figura 1: Giovana Fleck, sem título, fotografia, Taquari/RS, 2023. Os participantes vasculharam variados cantos da cidade e seus habitantes, e assim puderam examinar as mais diversas facetas de imaginários e memórias na cidade de Taquari/RS (Figura 1). Desse modo, os lugares e as pessoas que aparecem nos registros priorizaram relações de contato prévio, mas o processo criativo resultou em perspectivas inauditas. Adams (2003) argumenta que a fotografia analógica envolve uma série de procedimentos químicos e ópticos, porém, mais que isso, promove uma maneira de registrar um instante que se deseja preservar na memória. A caminhada coletiva suscitou memórias em grupo e os registros salvaram lembranças do espaço, surgindo outras camadas de tempo que não somente aquele presente. Ao caminharem juntos pela cidade foi descortinado o ancestral ampliando os territórios e mudando o ritmo do dia a dia através do dispositivo analógico. Portanto, o deslocamento em busca de registros analógicos como método, moveu o subjetivo lúdico saindo do capitalismo selvagem cotidiano, de um modo disruptivo, fora do convencional. Gerou narrativas sobre a experiência de cada aluno no contexto que os cercam, produzindo intensidades nesse espaço através dos imaginários e da fabulação em trajetos rotineiros. Além de tudo, esse método de desaceleração do mundo capitalista os fez criar uma comunicação e uma escuta ativa com o meio ambiente, com as ruas, prédios, becos, campos e rios. O artista e ativista indígena Ailton Krenak reflete sobre os sons da floresta e a importância de escutá-los como uma forma de discutirmos a depredação dos ecossistemas e de incentivar a conexão com a natureza. Para ele a floresta tem um sopro de vida infinito e nós humanos não. Portanto, é importante entendermos o nosso lugar diante da imensidão do ecossistema planetário, nos colocando em posição de escuta, observação e cuidado com a sensível teia da vida.
Figura 2: André Gusmão, sem título, fotografia, Taquari/RS (2023).
A oficina provocou os alunos a perceberem a importância do seu lar, a cidade mais fértil do mundo (Taquari), com caminhadas fotográficas coletivas (Figura 2). Dando importância, através das atividades, para pontos no espaço que normalmente passam despercebidos a quem está imerso na dinâmica do cotidiano. Nos resultados vemos emergir a potência da natureza e toda a sua força resistente. Através da memória afetiva dos participantes, visibilizada através dos registros fotográficos sobre o lugar que os envolve, foi possível resgatar antigas paisagens açorianas, os rastros da passagem do tempo nas áreas limítrofes do centro da cidade e a beleza das águas e campos que resistem a poluição e ao desmatamento. Krenak, em uma entrevista ao festival Porto/Post/ Doc, em 2021, menciona que têm debatido bastante sobre o antropoceno. Ele reflete sobre o fato de que tempo não é dinheiro e que a vida na terra é livre de qualquer gesto de poder. Ele incentiva a desaceleração e a criação de relações de afeto com a natureza. Nesse sentido, a oficina “Visto Jamais Visto”, com o ensino da fotografia analógica em tempos de instantaneidade digital, colaborou para estimular o imaginário e convidou os discentes a observarem a natureza que normalmente no dia a dia atribulado não percebem. Ademais, é importante comentar que as fotografias expostas no Theatro São João agora integram o acervo da Prefeitura de Taquari, contribuindo para a preservação da memória histórica da cidade e de seu povo, sob a ótica de olhares carregados pela singularidade dos criadores. E assim, esse “lugar antropológico” ganha novos contornos comunitários suscitando novos e sempre renovados olhares.
Referências: ADAMS, Ansel. A câmera. 3a ed. São Paulo: Senac, 2003. AUGÉ, Marc. NÃO LUGARES – Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 9ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Prefeitura de Taquari, 2023. História do município. Disponível em: <https://www.taquari.rs.gov.br/pagina/id/2/?historia-do-municipio.html>. Acesso em: 27 de novembro de 2023. REIS, Vilma. “Comecem a produzir floresta como subjetividade, como uma poética de vida”, diz Ailton Krenak a plateia portuguesa. Nome do Amazônia Real, 2021. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/comecem-a-produzir-floresta-como-subjetividade-como-uma-poetica-de-vida-diz-ailton-krenak-a-plateia-portuguesa/>. Acesso em: 26 de novembro de 2023. Theatro São João, 2023. Exposição fotográfica Visto Jamais Visto. Disponível em: <https://www.theatrosaojoao.com.br/visto-jamais-visto/>. Acesso em: 27 de novembro de 2023.
i Mestranda do PPGArtes, do Centro de Artes/UFPel. Graduada em Cinema, é pesquisadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). rebecafrancoff@gmail.com ii Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), Mestre em Educação Ambiental, é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Artes. Líder do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). http://www.photographein-pesquisa.com.br/ http://www.clamar-art.com claummattos@gmail.com |