O
DESENVOLVIMENTO E AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA AÇÃO CIVIL
PÚBLICA NA SEARA AMBIENTAL
THE
DEVELOPMENT AND FUTURE PERSPECTIVES OF PUBLIC CIVIL ACTION IN THE
ENVIRONMENTAL SEARA
Daniela
Ferreira da Mota1
Mestranda
em Direito Ambiental PUC/SP. Pós-Graduação em
Direito Ambiental e Urbanístico PUC/MG. Pós-Graduação
em Direito Administrativo e Constitucional EPD.
daniela.fmota@hotmail.com.
Resumo:
O
presente estudo teve como objetivo analisar o contexto histórico
do surgimento da ação civil pública e o seu
desenvolvimento sobretudo na área de meio ambiente para a
promoção dos objetivos constitucionais de preservação
ambiental para as presentes e futuras gerações. A
proposta do trabalho foi utilizar essa análise histórica
para desenhar as perspectivas e entraves futuros para o
desenvolvimento da ação civil pública em matéria
ambiental. Os resultados da pesquisa demonstraram que esse
instrumento de tutela coletiva não está paralisado, e
desde a sua criação está ganhando mais força
e diferentes contornos para lidar com as questões ambientais,
indicando que ainda deve sofrer mudanças substanciais em um
futuro próximo.
Palavras-chave:
ação civil pública – direitos
transindividuais – direito ambiental.
Abstract:
The present study aimed to analyze the historical context of the
advent of public civil action and its development mainly in the
environment area for the promotion of constitutional environmental
preservation objectives for present and future generations. The
proposal of the work was to use the historical analysis to design the
future perspectives and obstacles to the development of public civil
action in environmental matters. The results of the research showed
that this instrument of collective protection is not paralyzed, and
since its creation it is gaining more strength and different contours
to deal with environmental issues, indicating that substantial
changes must still be in progress in the near future.
Keywords:
public
civil action - transindividual rights – environmental law.
Introdução
Os
instrumentos coletivos, criados pelo direito brasileiro para a
proteção dos denominados direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos têm ganhado, cada vez mais, um
contorno estratégico para a discussão de causas e
assuntos
de natureza transindividual, sendo que a proteção do
meio ambiente, presente desde a criação da ação
civil pública no direito brasileiro, continua muito
interligada ao crescimento e desenvolvimento desse mecanismo
jurisdicional de relevante conotação social.
A
ação civil pública é um instrumento hoje
de inegável importância para a tutela dos direitos
transindividuais, entretanto, trata-se, também de um mecanismo
de alto impacto e de pressão social, de forma que o que se
pretende com o presente estudo é a análise evolutiva
desse instrumento de efetividade e proteção dos
interesses sociais e, especificamente para a área do meio
ambiente, responder a questão sobre quais são as
perspectivas futuras da ação civil pública
ambiental.
Tem-se
como hipótese de pesquisa que a ação civil
pública ainda não é um instrumento maduro e
plenamente desenvolvido, tratando-se de um mecanismo processual ainda
em franca evolução e que ganha relevância
crescente para atender a demanda social de proteção do
meio ambiente, a exemplo da ampliação do rol de autores
aptos à sua proposição, apesar de ser
inegavelmente mais utilizada, ainda, pelo Ministério Público,
seu primeiro e mais natural legitimado, apesar de diversos autores já
apontarem que é provável que a Defensoria Pública
trilhe o mesmo caminho na utilização dessa ação
processual.
A
pesquisa será desenvolvida utilizando-se do método
dialético, uma vez que a questão é complexa e
deve levar em consideração não somente a análise
da legislação, mas o contexto histórico,
político e econômico envolvendo a criação
e o desenvolvimento da ação civil pública,
permitindo uma melhor compreensão do tema (HENRIQUES e
MEDEIROS, 2017, p. 42). Além disso, a técnica adotada
foi a pesquisa bibliográfica e documental, tendo em vista a
vasta doutrina sobre a matéria a ser considerada.
O
primeiro capítulo visa a análise, ainda que breve, do
surgimento da ideia de interesses transindividuais e contexto
envolvendo o meio ambiente e os problemas de natureza desconhecida
que demandaram do Estado a sistematização de um
instrumento abrangente para lidar com a reparação civil
fora da lógica individual, tendo em vista a complexidade da
sociedade de massa e das questões que surgiram para apreciação
do Judiciário, sendo essa uma tendência experimentada em
todo mundo.
O
segundo capítulo, tomando como base o contexto dos direitos
transindividuais, trata especificamente do surgimento da ação
civil pública, a legislação que a precedeu, como
ela foi recebida no sistema constitucional, na temática
ambiental e na legislação de defesa do consumidor,
tratando, na segunda parte, da divisão tripartite que é
adotada pelo Brasil dos direitos por ela tutelados e finalizando com
a análise dos efeitos erga omnes das sentenças dessas
ações, introduzindo o tema final.
Finalmente,
tomando-se como base os efeitos das ações civis
públicas no ordenamento jurídico, o terceiro e último
capítulo dedica-se à análise dos aspectos
controvertidos da ação civil pública, em
especial, tendo em vista a ampla gama de assuntos que podem ser por
ela tratados, os entraves encontrados hoje para a sua ampliação
e as perspectivas futuras para o tema.
1
Interesses Transindividuais
A
complexidade da sociedade em que se vive e as demandas que dela fazem
parte, tradicionalmente, é o que demanda do Direito o
surgimento de adaptações,
novos mecanismos, legislações e instrumentos para lidar
com a realidade que se apresenta, tratando-se o sistema jurídico
de uma verdadeira construção histórica e, na
tutela dos interesses denominados transindividuais não foi
diferente, pois a tutela coletiva no Brasil não ocorreu de
forma natural, sobretudo em uma sociedade que sempre pensou o direito
de forma individual, para a solução de controvérsias
pontuais.
Coube
ao direito o papel de regular áreas nunca disciplinadas, em
razão do desenvolvimento e processo de transformação
social, econômico e tecnológico sem precedentes que
passou o mundo e o país no século XX.
Foi
o momento após as duas grandes guerras e a Guerra Fria, que
evidenciou a possibilidade de destruição da humanidade,
de transnacionalização das empresas, de maior uso dos
recursos naturais até então fartos e amplamente
disponíveis, e do uso intensivo das fontes de energia,
causando uma ampla e jamais vista destruição ambiental,
afetando principalmente os países menos desenvolvidos,
explorando não somente os recursos naturais como também
os humanos, e colocando em risco a presente e as futuras gerações,
notadamente a partir de acidentes ambientais decorrentes do processo
de franca industrialização e verificação
de alterações climáticas afetando todo o mundo
(GAVRONSKI, 2010, p. 44).
Nesse
sentido, é possível entender que a tutela coletiva do
direito transindividual representou no país uma verdadeira
ruptura da forma tradicional de se buscar uma pretensão, sendo
uma verdadeira construção cultural da sociedade para
tentar resolver controvérsias novas, que não estavam
sendo satisfatoriamente resolvidas no âmbito do processo civil
tradicional que é pensado e estruturado para a resolução
de controvérsias individuais, de bem menor complexidade e de
mais fácil solução, conforme explica Hugo Nigro
Mazzilli:
Sob o aspecto processual, o que caracteriza
os interesses transindividuais, ou de grupo, não é
apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares
individuais reunidos pela mesma relação jurídica
ou fática. Mais do que isso, é a circunstância de
que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso
individual dos lesados à Justiça seja substituído
por um acesso coletivo, de movo que a solução obtida no
processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar decisões
contraditórias, como ainda, deve conduzir a uma solução
mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido
em proveito de todo o grupo lesado. (MAZZILLI, 2012, p. 52-53)
O
surgimento da ação civil pública e de outros
instrumentos dentro desse contexto, foi uma verdadeira tentativa de
solucionar uma crise que se manifestou de forma mais preocupante na
segunda metade do século XX, quando começaram a
aparecer esses problemas específicos da sociedade de massa em
decorrência do processo de intensa industrialização
experimentado em todo o mundo, que foi responsável por
desencadear uma série de dificuldades até então
desconhecidos e jamais vivenciados.
Na
ótica ambiental especificamente, foi esse período no
Brasil que
marcou a edição de normas de proteção
ambiental, demonstrando que o olhar do legislador estava voltado à
proteção dessas questões mais complexas, sem,
entretanto, estas legislações preverem formas de
reparação civil da lesão causada.
Como
exemplos das legislações ambientais que surgiram nesse
período em específico temos o Estatuto da Terra (1964),
Código Florestal (1965), Código de Caça (1967),
Código de Pesca (1967), Código de Mineração
(1967), dentre outros, sempre focados em normas de proteção,
sem previsão específica das formas de reparação
e de persecução de danos em juízo (SOUZA, 2013,
p. 16).
Essa
alteração social de precedentes desconhecidos, que
gerou uma verdadeira mudança no perfil dos direitos tutelados
extensivamente até então, os individuais, deu lugar ao
reconhecimento de outros direitos, vinculados à sociedade de
consumo, à economia de massa, à grupos e não
somente indivíduos, vistos em um contexto político,
social e econômico globalizado, sob a ótica da
coletividade, gerando novas categorias de direitos e conjuntos de
sujeitos carentes de proteção, como o caso do direito
ao meio ambiente e do direitos dos consumidores.
2
A Lei da Ação Civil Pública e o Meio Ambiente
2.1.
Breve Contexto Histórico
O
processo coletivo no Brasil passou por três ondas renovatórias
do acesso à justiça, sendo que na primeira,
representada pela assistência judiciária e criação
da Defensoria Pública, visou-se o atendimento de pessoas
carentes sem recursos para custeio de processos judiciais. A segunda,
envolve a ação popular, a ação civil
pública e o código de defesa do consumidor, criando os
mecanismos de proteção dos interesses difusos, para
solucionar a exigência de ajuizamento de milhares de ações
individuais para a discussão de pretensões advindas de
um único fato, sobrecarregando o Poder Judiciário. A
terceira e última, está consagrada na Constituição
Federal de 1988 que previu a diretriz de defesa do consumidor, o
mandado de segurança coletivo, fez referência expressa à
ação civil pública, dando enfoque à
efetividade desses instrumentos e da jurisdição como um
todo (VINCI JÚNIOR in BRANCO FILHO e outros, 2019, p.
386-387).
O
processo civil tradicional não estava voltado para a proteção
dos direitos difusos, uma vez que foi criado especialmente para a
proteção dos direitos individuais. No Brasil, a Ação
Popular, que era prevista constitucionalmente desde 1937 e foi
regulada por lei ordinária em 1965, foi o instrumento pioneiro
de proteção e tutela dos direitos metaindividuais pelo
próprio cidadão, inaugurando a primeira forma de
proteção jurisdicional, antes mesmo de haver no
ordenamento jurídico a habilitação de entidades
expressamente designadas para a proteção estatal de
direitos difusos (GOZZOLI et al, 2010, p. 182).
A
Ação Popular foi a inauguração desse
movimento, que deixava mais evidente a necessidade de proteção
estatal e da criação de instrumento específico
de tutela de interesses difusos. Na esfera ambiental, a Política
Nacional do Meio Ambiente inseriu em 1981 a previsão da
competência do Ministério Público da União
e dos Estados para propor ação de responsabilidade
civil por danos causados ao meio ambiente, sem dispor o mecanismo
próprio para que isso fosse feito.
Em
um primeiro momento, pensou-se na ação popular para
discussão dos interesses coletivos, inclusive na seara
ambiental, apesar disso, a previsão legal ainda era pouco
efetiva tendo em vista a necessidade de mecanismos processuais
específicos para atender de forma mais adequada a persecução
dos interesses transindividuais e de forma distinta do que era
previsto até então no Código de Processo Civil.
Dessa
forma, a Lei nº 7.347/1985, que foi editada na sequência e
ficou amplamente conhecida como Lei de Ação Civil
Pública, foi para o direito brasileiro um verdadeiro marco de
proteção e defesa dos direitos difusos, principalmente
em razão de, até então, as demandas coletivas
estarem previstas em textos esparsos e ainda de pouca aplicação,
sendo que o surgimento da ação civil pública foi
a sistematização de um instrumento processual próprio
para a defesa judicial desses direitos, especialmente visando a busca
pela reparação do dano (FERRARESI, 2009, p. 199-200):
A ação civil pública
relativa a direitos difusos foi pensada sobretudo em função
do Direito ambiental. A tutela do meio-ambiente era, até
então, matéria de competência exclusiva da
Administração Pública. Jurisdicionalizou-se essa
matéria, permanecendo, porém, sua natureza
essencialmente administrativa, podendo-se dizer que as ações
relativas a direitos difusos são jurisdicionais apenas pela
forma dialética do processo. Seu autor, que, entre nós,
é geralmente o Ministério Público, não é
um substituto processual. Exerce função pública.
(TESHEINER e MILHORANZA, 2015, e-book, p. 766)
Dessa
forma, a Lei de Ação Civil pública foi para a
tutela coletiva do direito brasileiro a viabilização do
instrumento para a satisfação dos interesses difusos
que se demandava pela sociedade, e que hoje ganha cada vez mais força
para a efetivação desses direitos, sobretudo em razão
do processo civil clássico ter sido sistematizado sob a lógica
individual, de forma que a ação civil pública
pensada justamente sob a lógica contrária, como o
instrumento que é hoje, foi fruto de diversas adaptações
doutrinárias, jurisprudenciais e da prática processual.
Além
disso, pensando-se especificamente na seara ambiental, a Política
Nacional de Meio Ambiente e, posteriormente, a Lei de Ação
Civil Pública foram fundamentalmente a abertura da esfera
judicial, principalmente para o Ministério Público –
e isso até hoje – para persecução da
proteção almejada e tratamento dos novos conflitos dos
direitos de massas que vinham sendo negligenciados pelo Direito,
sobretudo no que tange a questão ambiental, conforme explica
Paulo de Bessa Antunes:
Dentre os bens jurídicos tutelados
pela lei, o meio ambiente é um dos que merecem maior destaque.
Normativamente, meio ambiente, como se sabe, está conceituado
no inciso I do artigo 3o da Lei no 6.938/1981, que dispõe
sobre a PNMA. Nos termos da norma jurídica recém-citada,
o meio ambiente é o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem química,
física e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas. Por força de expressa disposição
constitucional, o meio ambiente é um bem de uso comum do povo
e um direito de todos os cidadãos, das gerações
presentes e futuras, estando o Poder Público e a coletividade
obrigados a preservá-lo e defendê-lo (CF, art. 225).
De todas as hipóteses de cabimento
das ações civis públicas, esta é aquela
que permite a maior ampliação do instrumento processual
ora sob análise. Evidentemente que a amplitude do permissivo
contido no inciso é função do entendimento que
se tenha dos próprios interesses difusos. O nosso
posicionamento é no sentido de considerar que os interesses
difusos revestem-se da característica de serem um
prolongamento e uma extensão dos direitos humanos
fundamentais. Nessa condição possuem um caráter
de garantia e tutela de determinados padrões de condição
de vida e não podem ser confundidos com qualquer reivindicação
de grupos. Isso porque os interesses difusos não se confundem
com postulações corporativas. (ANTUNES, 2019, p. 319).
A
Constituição Federal de 1988 acabou por sedimentar a
importância do instituto que já estava previsto na
legislação infraconstitucional, consagrando no seu
texto a previsão da ação em questão
sobretudo para a proteção do meio ambiente, e a função
do Ministério Público de promover a “ação
civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos”:
Embora não haja, ainda, um limite de
atuação para o Estado e para o indivíduo, no que
diz respeito a atos que possam ser considerados atentatórios ao
meio ambiente, não se espera que aumente a insegurança
dos interessados no que se refere a tal questão, pois o texto
constitucional simplesmente está incorporando princípios
que já existiam em nossa legislação desde a Lei no
7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação
civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico.
[...]
A instituição da ação
civil pública pela lei referida representou, por si mesmo,
restrição ao exercício do direito de propriedade
que, em nenhum momento, foi dado como motivo para sua revogação
ou reconhecimento de sua inconstitucionalidade, devendo ser notado
que: 1) a Lei no 7.347/85, propositadamente, não enumera as
medidas que possam ser judicialmente decretadas para a proteção
do meio ambiente, o que significa que o juiz, desde que o faça
fundamentadamente, poderá determinar o que considerar
suficiente e eficaz; e 2) a Lei no 7.347/85 autoriza, indiretamente,
que sejam acionados não só órgãos e pessoas
estatais, como também pessoas físicas e jurídicas
privada. (SLAIBI FILHO, 2009, p. 693)
Em
1990, o Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, foi o responsável pela ampliação da
ação civil pública para abranger os interesses
coletivos, difusos e individuais homogêneos, trazendo as
respectivas definições e distinções. A
partir de então, os dois clássicos direitos
transindividuais e mais comumente lembrados, o meio ambiente e as
questões consumeristas, estavam previstos em normas
específicas, e munidos de instrumento processual apto à
sua tutela.
Importante
salientar que além da ação civil pública,
existem outros remédios especiais que fogem à lógica
do processo civil clássico individual, sendo eles o mandado de
segurança e a ação popular – o primeiro
criado para a defesa do sujeito contra atos do Poder Público,
o segundo para a defesa da sociedade em casos especiais que ensejam a
lesão do patrimônio público e, finalmente, a ação
civil pública, criada especialmente para defender os
interesses difusos, coletivos e homogêneos individuais
(MEIRELLES e outros, 2016, p. 286).
2.2.
Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos
Interesses “difusos” são
interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente
saudável, ou à proteção do consumidor. O
problema básico que eles apresentam – a razão de
sua natureza difusa – é que, ou ninguém tem
direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o
prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção
é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação.
A recente manifestação do professor Roger Perrot sobre
os consumidores descreve com agudeza o problema dos interesses
difusos: “le consommateur, c’est tout et c’est
rien” (O consumidor é tudo e não é nada).
(CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 26)
O
Código de Defesa do Consumidor foi o responsável por
sistematizar a proteção transindividual e ampliar a
abrangência da ação civil pública de forma
tripartite, dividindo-a em: (i) interesses ou direitos difusos, como
sendo “transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”;
(ii) interesses ou direitos coletivos, sendo aqueles
“transindividuais,
de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária
por uma relação jurídica base”;
e (iii) interesses ou direitos individuais homogêneos,
definindo-os como “os
decorrentes de origem comum”::
O ordenamento jurídico brasileiro,
tendo num primeiro momento referido genericamente a tutelabilidade
dos interesses difusos ou coletivos (art. 1º, IV, da LACP),
acabou por conceituá-los por intermédio do Código
de Defesa do Consumidor, agregando-lhes ainda a categoria dos
chamados direitos individuais homogêneos, imprimindo-lhes
regimes aparentemente específicos no que diz respeito à
legitimação para agir, ao procedimento judicial e à
formação e extensão subjetiva da coisa julgada.
Daí a relevância científica e prática de se
distinguir adequadamente uns dos outros. (GOZZOLI et al, 2010, p.
179).
Essa
sistematização foi importante para a própria
efetividade da proteção dos interesses
transindividuais, pois além de determinar a categoria dos
direitos objeto de ação civil pública,
delimitando-o, também trouxe clareza suficiente sobre a
amplitude desse objeto, inspirando modificações que,
por exemplo, ampliaram o rol de legitimados a propor a Ação
Civil Pública, constando hoje, o Ministério Público,
a Defensoria Pública, União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, a autarquia, empresa
pública, fundação ou sociedade de economia mista
e a associação constituída há pelo menos
1 (um) ano, e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a
proteção ao patrimônio público e social,
ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à
livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos
ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
2.3
Efeito erga omnes das ações civis públicas
Uma
característica distintiva das ações coletivas em
relação às ações individuais está
nos efeitos pois, enquanto na primeira a coisa julgada material é
imutável entre as partes processuais, no processo coletivo a
coisa julgada extrapola as partes formais da ação, que
são substituídas pelos legitimados à propositura
da ação civil pública e tem efeito erga omnes
(MAZZILLI, 2005, p.3).
O
projeto de lei do código de processo civil individual foi
idealizado para tramitar em conjunto do projeto coletivo, entretanto,
o código de processo coletivo foi arquivado, seguindo somente
o primeiro, muito provavelmente em razão de não se
saber as proporções que uma ação civil
pública pode alcançar, sobretudo em razão da
amplitude de seus efeitos e da grande quantidade de matérias
passíveis de serem consideradas de interesse transindividual
e, portanto, pleiteadas em juízo.
Por
este motivo, parece existir um receio, inclusive do Poder Público,
sobre a regulação e ampliação da ação
civil pública, havendo, inclusive, um movimento recorrente
para restringir o objeto desse tipo de ação. A título
de exemplo, a Medida provisória nº 2.180-35, de 2001
acrescentou o parágrafo único no artigo 1º da Lei
de Ação Civil Pública no sentido de que “Não
será cabível ação civil pública
para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições
previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
— FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos
beneficiários podem ser individualmente determinados”,
justamente visando-se evitar a ampliação do escopo
dessa ação judicial, podendo gerar impactos econômicos
para o Estado.
Mas
a discussão dos efeitos não é somente essa pois,
especificamente quando se trata de meio ambiente, é
indiscutível que a coisa julgada não possui delimitação
espacial, sendo praticamente impossível, ao menos na imensa
maioria dos casos, a aplicação do artigo 16 da Lei de
Ação Civil Pública, segundo a qual a sentença
faz coisa julgada erga omnes e produz efeitos “nos
limites da competência territorial do órgão
prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com
idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
Em
matéria ambiental, os bens ambientais são indivisíveis,
não possuem ou respeitam algum tipo de limitação
física ou espacial, não havendo efeitos práticos
nessa limitação pois a decisão judicial afetará
o objeto tutelado como um todo, independente do texto legal dizer o
contrário, pois não é aplicável na
prática (RODRIGUES, 2016, p. 288).
3
Aspectos atuais da ação civil pública ambiental
Atualmente,
é comum que a ação civil pública confira
aos seus autores um papel de destaque em razão, muitas vezes,
da importância e do tamanho das demandas por ela tratadas,
principalmente se tomarmos em conta o número de envolvidos e
afetados pela matéria, bem como a relevância social da
questão e repercussão do caso, sendo essa razão
atribuída, por diversos autores, ao papel de destaque e de
autoridade que ganhou o Ministério Público no direito
brasileiro de forma crescente nos últimos anos, inédito
em todo o mundo:
[...] Embora a Lei no 7.347/85, anterior à
Constituição, mas por ela recepcionada, tenha
estabelecido uma legitimação concorrente entre os en- tes
federados e sua administração indireta, as associações
instituídas há mais de um ano e o Ministério
Público, acredita-se que a quase totalidade das ações
civis públicas tem sido ajuizada pelo Ministério
Público. Tornou-se mais fácil para as associações
procurar o Ministério Público, pois, além de ser
gratuito, é ele dota- do de meios legais para promover a
investigação dos danos aos direitos coletivos através
do inquérito civil, também previsto constitucionalmente.
É inegável que a ampliação
dessa forma de atuação deu maior visibilidade para o
Ministério Público, aumentando a sua importância
como “ator político”, bem como arregimentou forças
contrárias. Uma das consequências da importância da
defesa judicial e extrajudicial dos chamados direitos coletivos, em
especial pelas repercussões positivas e visibilidade,
acredita-se, é a ampliação da legitimação,
com a sua extensão, ao menos até o momento, por lei
ordinária, à Defensoria Pública. (RIBEIRO, 2010, p.
88)
Uma
questão atual e controvertida que se discute no direito atual
é o limite do denominado ativismo judicial, sendo a Ação
Civil Pública, na qualidade de um instrumento de proteção
transindividual, com decisões erga omnes, um potencial
mecanismo de ativismo, pois ainda que não haja lei específica,
não pode o Judiciário furtar-se a dar uma solução
às controvérsias que lhe são submetidas.
Nesse
sentido, aos autores da ação, confere-se um papel de
claro protagonismo e, ao juiz, a possibilidade de legislar sobre
matérias de grande relevância e impacto social, pois
quando acaba-se decidindo abstratamente em uma ação
civil pública sobretudo na área ambiental, acaba-se
também abrindo espaço para ocupação de
uma função que seria do Legislativo.
O
principal enfoque dessa questão está no fato de que a
repartição de poderes e a distribuição de
competências originalmente pertencentes a cada um deles só
leva em consideração os três poderes, que seria,
em uma simplificação extrema: ao Legislativo cabe a
função de legislar sobre as questões relevantes,
ao Executivo governar e ao Judiciário dar solução
à controvérsias que lhe são submetidas. É
o que faz Elival da Silva Ramos quando analisa o tema ativismo
judicial:
Ao se fazer menção ao
ativismo judicial, o que se está a referir é a
ultrapassagem das linhas demarcatórias da função
jurisdicional, em detrimento principalmente da função
legislativa, mas, também, da função
administrativa e, até mesmo, da função de
governo. Não se trata do exercício desabrido da
legiferação (ou outra função não
jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem
delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição
aos órgãos superiores do aparelho judiciário, e
sim da descaracterização da função típica
do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o
núcleo essencial de funções constitucionalmente
atribuídas a outros poderes (RAMOS, 2010, p. 117).
É
interessante observar que o Ministério Público, apesar
de acabar por protagonizar muitas dessas ações, não
é analisado no âmbito dos estudos de ativismo em sede de
ação civil pública, sendo que é dele que
parte, ao menos, a provocação das matérias e,
por via de consequência, a escolha dos temas que considera de
relevante interesse social a ponto de dedicar-se a levar a questão
à apreciação jurisdicional.
A
discussão envolvendo ativismo judicial e discricionariedade do
Poder Público, por exemplo, para determinar quais são
as prioridades de gastos e investimentos não é novidade
na discussão no campo das ações individuais,
entretanto, nas ações coletivas, que têm efeito
erga omnes, é um campo de aplicação muito mais
amplo e, consequentemente, de proporções mais
temerárias.
Aliás,
outro efeito que se tem por meio da ação coletiva é
que, considerando que o objeto dessa ação é o
direito transindividual de pessoas que foram substituídas
processualmente pelos legitimados para proposição da
ação, caso a demanda seja julgada procedente, ela
poderá beneficiar toda a categoria, classe ou grupo de lesados
– que também podem buscar individualmente a pretensão.
Entretanto, ainda que julgada improcedente, a decisão não
vincula os que se consideram lesados de buscar individualmente amparo
judicial, caso contrário, admitir-se-ia a formação
de coisa julgada contra aqueles que sequer tiveram acesso
jurisdicional (MAZZILI, 2017, p. 690).
Conclusão
Conforme
demonstrado, o surgimento da tutela coletiva foi resultado da
tentativa de solucionar uma crise de um mundo que mudou a forma de
trabalhar e de consumir, gerando ao Judiciário o desafio de
lidar com demandas mais complexas, com mais sujeitos envolvidos, com
decisões afetando não apenas autor e réu, mas
uma gama bem maior de envolvidos de forma direta e indireta, e que
carecia de soluções mais adequadas, pois as que se
apresentavam não funcionaram a contento para todas as novas
situações que surgiam, havendo a necessidade de
repensar o processo, a sociedade e o próprio acesso à
justiça desses grupos afetados pela nova realidade.
Dessa
forma, a necessidade de repensar e criar mecanismos para pleitear a
pretensão coletiva decorreu de um momento histórico
específico, e não de forma natural como muitos
institutos tradicionais do direito, sendo uma verdadeira resposta aos
novos anseios sociais, que experimentou uma ruptura dos paradigmas
clássicos demandando solução mais abrangente e
adequada para as questões de massa decorrentes do processo de
globalização e problemas ambientais.
A
ação civil pública, desde a sua criação,
passou por uma série de transformações, sendo
revista, ampliada e melhor delineada dentro do sistema constitucional
inaugurado a partir de 1988, com ampliação do rol de
legitimados para a sua propositura, o reconhecimento do cabimento
para diversas matérias, fugindo da ótica inicial de
proteção ao meio ambiente e ao consumidor, para incluir
outros grupos que também demonstraram a necessidade de tal
proteção, como o caso dos idosos, da criança e
do adolescente, e tantos outros que ainda surgem em decorrência
do processo de evolução social.
Em
razão dessa natureza abrangente, começou a ficar mais
claro que os efeitos erga omnes das ações civis
públicas não observam os supostos limites territoriais
que incluiu-se em 1997 no artigo 16 da lei, pois essa limitação
é inócua para os direitos difusos e coletivos, muito
mais abrangentes do que os limites de competência territorial
definidos para organização do Poder Judiciário.
Muito
provavelmente esta seja uma das razões de não ter
prosperado o projeto de lei do código de processo civil
coletivo, pois ao observar-se o instituto da ação civil
pública, que ainda é menor do que a sua capacidade de
atuação, não houve interesse em ampliá-lo,
tendo em vista que o aperfeiçoamento desse sistema pode trazer
à discussão novas matérias também de
natureza transindividual, que a sociedade ainda não está
madura o suficiente para enfrentar e começar a decidir de
forma abrangente.
Um
exemplo seriam as questões de natureza previdenciária,
sendo que hoje o processo civil tradicional evolui para a
sistematização das decisões judiciais, criando
mecanismos como o julgamento de casos repetitivos, justamente na
contramão dessa lógica que pode ser aberta por meio do
processo civil de natureza coletiva e de sua ampliação
nesse momento.
O
que ficou evidenciado ao longo do trabalho, foi que o processo
coletivo tem ganhado importância crescente para a solução
de lides complexas no país, conferindo aos seus autores, papel
de destaque em razão da importância social das demandas
que foram levadas ao Judiciário na seara ambiental.
Dessa
forma, ainda que não tenha prosperado um código de
processo civil específico para lidar com as ações
coletivas, a experiência histórica demonstra que o
instituto não está paralisado, ganhando mais força
e diferentes contornos a cada dia, de forma que vislumbra-se no
futuro a continuidade do crescimento e da importância da ação
civil pública para o deslinde de questões ambientais
complexas.
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