"Todos aqueles com os quais nos encontramos em profundidade, nos formam, modificam, constróem" (Jean Cordonel).
ISSN 1678-0701 · Volume I, Número 4 · Março-Maio/2003
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19/09/2003 (Nº 4) Olhar-Curvo
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Olhar-Curvo

 

por Evandro de Castro Sanguinetto

 

            Estava na Fazenda Ipanema com Luciano, quando decidimos sair para ver o céu. Partimos pela estrada em direção à Portaria 02 e, longe das luzes do alojamento paramos o carro e descemos. No céu limpo e estrelado víamos Escorpião, Cruzeiro do Sul, Sírius. Algumas vezes saímos a passeio com as crianças e adolescentes da Fazenda, e naquela noite, Iara, uma garotinha de 10 anos, e sua mãe, passavam pela estrada e pararam para perguntar se tínhamos problemas.

-         Precisam de alguma coisa? – perguntou a mãe.

-         Não, estamos vendo o céu, que está muito bonito. Vimos já várias estrelas-cadentes.

-         Vocês estão vendo o céu? – perguntou incrédula, com o vidro do carro aberto apenas alguns centímetros. Moro aqui ha sete anos e nunca parei para ver o céu. Podemos ficar com vocês?

-         Claro, por favor...

-         Vou estacionar o carro...

Assim Iara e sua mãe nos fizeram companhia. A conversa estava boa e ríamos bastante. Iara mostra um anel que havia ganho há pouco tempo, um anel grande de resina. Pedi o anel emprestado e brinquei de rastrear o céu em busca de estrelas-cadentes.

Criança nos leva ao mais profundo de nós mesmos e, nesse instante me virei e disse para ela:

-         Olhe aquela montanha... O que vê?

-         Vejo a montanha.

-         E o que vê atrás da montanha?

-         Tá louco? Como vou ver atrás da montanha?

-         Se tivesse olhar-curvo veria.

“Olhar-curvo?” Mas de onde me veio isso? Acontece muitas vezes ao conversar com crianças. Como o pensamento se torna não-linear (quando nos permitimos a isso!), somos invadidos por “insights”, visões, ou o nome que se queira dar. Dessa região pouco explorada por nós me veio naquele momento o “olhar curvo”, essencial para se ver atrás das coisas.

-         E o que é olhar curvo?

-         Olha a montanha novamente... Está vendo a linha que separa a montanha do céu? Pois você vai subindo a montanha com o olhar e chegando lá no alto – enquanto falava com Iara, fazia o movimento com o braço, subindo a montanha e depois virando bruscamente a mão para baixo -, você dá uma curva no olhar e vê o que tem atrás da montanha. É fácil. Entendeu?

-         Entendi.

A resposta foi tão rápida e incisiva que fiquei chocado. De onde vinha aquela idéia absurda minha? E como uma criança tinha pegado a coisa tão rapidamente? Percebi que tinha me deparado com algo que me traria muita informação, talvez conhecimento. Continuei a brincadeira, assumindo comigo mesmo que iria aprender. Mas algo já me dizia, também, que iria me dar mal. Passados anos dessa experiência ainda rio muito quando a recordo.

-         Então, o que tem atrás da montanha?

-         O outro lado da montanha! Agora eu quero ver se você tem olhar curvo. Diga-me: o que tem atrás da montanha?

O outro lado da montanha, claro como cristal. Resisti um pouco, a princípio. Era muito simples a resposta. Eu mesmo não sabia a resposta e uma fedelha me dizia logo de cara uma coisa dessas. “O que tem atrás da montanha? O outro lado da montanha?” É tão simples e lógico. Mas eu estava já como aprendiz e continuei a brincadeira que começara. Como já conhecia o lugar por ter estado várias vezes em suas trilhas, resolvi responder com pompa e circunstância, contente por conhecer mais que a menina:

-         Do outro lado da montanha tem uma estrada, outros morros, mata.

-         Pois é... tem o outro lado da montanha!

Lógico. Cristalino como água. Burro! Como não havia pensado nisso antes. Atrás da montanha tem o outro lado da montanha. É isso que vê o olhar-curvo, o outro lado das coisas. Mas eu não sabia disso ainda. Foi um aprendizado duro.

-         Agora minha vez, disse Iara. O que tem do outro lado do carro?

Olhei e sabia que tinha um barranco. E via, através do vidro um poste. Orgulhoso e convencido respondi:

-         Tem um barranco e um poste, e grama...

-         Não! – disse ela rispidamente. Atrás do carro tem o outro lado do carro.

E ainda completou:

-         Você não tem olhar-curvo!

Fui ferido de morte! Meu Deus, socorro! Quis ensinar alguma coisa e aprendi muito mais. Fui prepotente com uma criança e me dei mal. Mas aprendi minha lição: sendo adulto, o que me ensinaram foi apenas o olhar-reto. Olhar reto é aquele que a gente olha no que tem depois daquilo que se observa. Olha-se através do vidro, mas nunca o vidro, o outro lado do vidro. Ninguém nunca me ensinou o olhar-curvo, aquele que vê e percebe o outro lado das coisas, percebe o vidro e não o que tem depois, do outro lado do vidro. O “insight” que tivera era para aprender sobre uma coisa que desconhecia. Criança conhece coisas que desconhecemos. E desaprendem com os adultos as coisas que são essenciais para, no lugar dessas, deixar coisas supérfluas.

Semanas depois conheci Laís, 10 anos, filha de uma amiga, Miriam. Veio com a mãe, a irmã Luíza e o primo Tomás dormir na Fazenda Ipanema. À noite fomos passear até o antigo cemitério dos protestantes. Fiz um caminho que atravessava uma área de mata e pinheiros à direita de quem desce, a partir dos alojamentos. Do meio desse caminho, uma trilha por entre a mata leva até uma pequena nascente. Convidei e fomos todos até lá. Ao chegar ficamos um pouco calados, ouvindo o murmurar do ribeirão que brotava um ou dois metros à nossa frente, descendo um pequeno barranco. A lua estava clara e sua luz penetrava a mata. Novamente outro “insight” e me afastei um pouco, como se houvesse alguém para entrar na roda.

-         O que foi? - perguntaram.

-         Um amigo, Johan, está aqui.

-         Tem mais alguém aqui?

-         Sim, o Johan.

-         E quem é ele?

-         Ele estava por aqui e se aproximou quando chegamos.

Eu realmente sentia uma presença e dei-lhe aquele nome germânico. Disse que era amigo, mas estava um pouco triste. Ninguém comentou mais nada e fiquei surpreso. Queria continuar a brincadeira, mas não me deram ouvidos.

Quando saímos da mata, Laís perguntou de Johan e percebi que a presença dele já não nos acompanhava. Voltei um pouco na estrada e senti que Johan ficara próximo à nascente.

-         Você sempre o vê? – perguntou Laís.

-         Não, apenas senti que estava lá.

-         E por que não veio conosco?

-         Porque está um pouco triste e preferiu ficar com sua tristeza até se recuperar. Ele é músico e canta sua dor.

-         Eu sou poeta, disse Laís. Minha mãe leu minha poesia pra vocês. Você se lembra?

-         Não sei. Declame-a para eu saber.

E Laís começou:

 

POUCO TEMPO UMA VIDA

                                              por Laís T. Camargo

 

Fico pouco tempo com pessoas que gosto,

Fico pouco tempo, fico uma vida.

Uma vida é pouco tempo,

Se não souber o que é uma vida.

Mas se sei o que é uma vida,

Não saberei o que é pouco tempo.

 

Conversamos mais um pouco e, já próximo do alojamento, perguntei se conhecia o olhar-curvo. Disse que não.

-         Venha comigo! – falei.

 Próximo ao alojamento, de um local em que se via a montanha, disse-lhe:

-         Olhe a montanha. O que tem atrás da montanha?

-         Como vou saber?

-         Usando o olhar-curvo, claro.

-         E o que é olhar curvo?

 Já sabia, mas era inevitável. Eu ia me dar mal outra vez.

-         Vê a montanha? Então... seu olhar vai subindo pela montanha e quando chega no topo faz uma curva para baixo para ver o que existe atrás dela. Compreendeu?

-         Não.

 Oba, pensei, com essa vai ser diferente: vou ensinar alguma coisa pra ela. Eu sou o máximo!

Expliquei novamente o olhar curvo, contando do que Iara me mostrara do carro. Havia também uma cabine de força perto, com geradores e transformadores. Disse que o olhar curvo me permitia “ver” que tinha uma porta, talvez janela. Aí a gente vai conferir e com o tempo o olhar vai melhorando e a gente consegue ver o que está do outro lado das coisas. Ela pensou e logo havia compreendido.

-         Aquela casa ali, por exemplo - disse ela. Olhando daqui a gente vê que tem janela e parede. Com o olhar curvo eu vejo o outro lado da casa, aquilo que é próprio da casa, próprio do objeto que se vê, dou a volta e sei que tem janela e porta, ou pode não ter...

 Era isso mesmo. Olhar-curvo serve para ver o outro lado das coisas, o lado que é próprio daquilo que se vê, mas que se mantém oculto para quem vê apenas com o olhar-reto.

-         Com o treinamento do olhar a gente sabe o que tem do outro lado daquilo que se vê - falei.

-         Mas com gente já não dá. Gente é única e não dá pra saber o que tem do outro lado.

-         Dá sim. Precisa de mais treino. Mas olhando através dos olhos da pessoa, com o olhar-curvo se chega até o coração. E lá se vê o outro lado da pessoa.

Mas o que era aquilo que eu estava falando? Não era nada disso. Eu nem sabia disso, não tinha pensado em nada daquilo. Era tudo novidade. Estava novamente como observador de mim mesmo e aprendia com aquilo que estava ensinando.

-         Mas é difícil... disse ela.

-         É difícil, mas com treino dá para ver. Com o olhar curvo a gente olha os olhos e vê o coração!

Nesse momento, ouvindo o que descobria enquanto falava, percebi que meu caminho passará por uma escola onde se ensine coisas essenciais para a vida. Como olhar-curvo, nome-de-natureza, confecção de capuz mágico, coisas assim. Uma escola de troca. Ensinando às crianças maneiras não-convencionais de ver o mundo e aprendendo ou re-aprendendo verdades que esqueci e que elas conhecem tão bem.

Entendi também que, havendo olhar-curvo, para se ver “o que é próprio das coisas” mas que estão ocultas ao olhar-reto, deve existir também o olhar duplo-curvo, que serviria para ver coisas dentro de outras coisas, como um quarto dentro de uma casa (entrando pela janela da sala, passando pelo corredor e chegando ao quarto!). Mas essa é uma outra história que estou ainda pesquisando e que fica para uma outra conversa.

 

AUTOR

             Evandro de Castro Sanguinetto, Diretor da Encantador de Sonhos Educação e Meio Ambiente Ltda, Educador Socioambiental, Idealizador, Coordenador e Facilitador do Projeto Semeador de Belezuras, Oficinas de Sensibilização Socioambiental e Oficinas do Olhar Curvo e aprendiz de Contador de Histórias, desde 1990 atuando nas áreas de (Eco) Turismo, Meio Ambiente e Educação, voltado para Educação Socioambiental, Alternativas de Sustentabilidade e Desenvolvimento Integral do Ser.

 

Ilustrações: Silvana Santos