É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Arte e Ambiente
09/03/2005 (Nº 12) LUZ, SENSIBILIDADE E COTIDIANO
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Profª MSc. Cláudia Mariza Mattos Brandão[1]

Acad. Cláudio Tarouco de Azevedo[2]

 


Figura 1: Cláudio Tarouco de Azevedo

Fotografia

 

Para avaliarmos a qualidade de vida de uma sociedade um dos parâmetros analisados é a forma como são tratados seus rejeitos. As sociedades pré-industriais convertiam os restos de alimentos em comida para os animais, e as sobras de madeira aqueciam as casas, na forma de lenha. Com o processo de industrialização, a especialização crescente afastou definitivamente os agentes naturais de reciclagem que garantiam o re-aproveitamento das “sobras”. O lixo urbano nada mais é do que matéria-prima deslocada e rejeitada em seu potencial de transformação.

 

A cidade que se impõe a nós por sua presença cotidiana demonstra que o homem excede em sua capacidade de consumo comprometendo cada vez mais a qualidade da vida urbana.

 

A fotografia, invenção que iniciou a atual predominância das imagens sobre os textos, tem sido vista como um filtro entre a realidade e o sujeito. Com uma ótica racional baseada nas leis da perspectiva, a câmara fotográfica nos permite encontrar novas maneiras de perceber os objetos familiares, educando nossos olhos para apreciarem a ordem na desordem, e a poesia das coisas inexploradas.

 

A construção de um microcosmo simbólico, cuja significação surge com a compreensão das intrínsecas relações entre o acontecimento e seus detalhes, possibilita uma avaliação dentro e fora de uma condição analógica da vida. Como fonte de abordagens formalistas ou investigações sociológicas, a fotografia é uma forma de intervenção que leva em conta a vivência e a cultura urbana. Discutindo os efeitos e a percepção da deterioração do meio ambiente e da vida nas cidades, estabelece uma relação dialética entre objetividade e subjetividade, permitindo, assim,  ler-se o mundo nas entrelinhas da produção artística.

 

A fotografia dicotomizada como produto artístico/documental, hoje é um terreno alargado de possibilidades para estudantes e profissionais não mais satisfeitos com as imposições de “regras”, que têm como estratégia um novo modo de intervenção que passa pela criação de um espaço levemente “fora-de-foco” em relação ao que já existe.

 

1. Eu, LIXO, o personagem.

 


Figura 2: Cláudio Tarouco de Azevedo

Fotografia

 

A partir do Elogio da Loucura, do escritor Erasmo de Rotterdam, obra na qual o autor dá à "loucura" a possibilidade de fazer seu elogio, ou seja, tecer uma reflexão acerca de seus conceitos, qualidades e defeitos, é possível imaginar-se um diálogo estabelecido com o lixo; dando a ele o direito de expressar-se frente às dicotomias do comportamento  humano.

 


Figura 3: Cláudio Tarouco de Azevedo

Fotografia

 

Seria algo mais ou menos assim...

 

Perguntado sobre sua existência física - como resíduo produzido em escala alarmante e depositado em locais indevidos, que reflete comportamentos de mentes contaminadas - sua resposta viria em tom irônico:

 

- Sou belo! Repleto de cores e cheiros (que por mais indesejáveis que sejam ninguém pode negar que são exóticos!) mexo com as percepções: inclusive com as dos mendigos e animais que através de meus odores acham suas refeições!

Falando na minha aparência, recorro às imagens do fotógrafo Sebastião Salgado que apresenta a pobreza do mundo com uma estética das mais belas que uma fotografia poderia expressar.

Seria crime esse privilégio estético concedido a tais imagens?

Há algum problema em expressarem a beleza que existe em mim?

Toda essa ironia não é minha, nem é tua – tu que vê – é, sim, uma forma de dizer através do verbo ser o que não conseguimos ver. Ser pobre, ser lixo, não significa não ser estético. Minha beleza reside nas formas que adquiro. Sem falar na possibilidade que tenho de ser um caminho para uma economia auto-sustentável, produtiva e menos nociva a sociedade.

Mas se toda essa estética serve para expressar arte, porque não ceder a mim, eu, o Lixo, um pouco de espaço. Minha presença não se finda em minha ocupação no espaço físico. Estendo-me a espaços invisíveis, oriundos de nossas mentes que imersas na hiper-modernidade se perdem no superficial. Existo na tentativa de deixar de existir. Sou um suicida em potencial, porém impotente. Não compartilhem apenas do meu sofrimento angustiante e anacrônico, mas andem sem me ignorar. Criem uma consciência transformadora para que eu seja direcionado e controlado frente ao desenfreado impacto ambiental que venho gerando. Pensem em mim, olhem para mim e me dêem a possibilidade de ser feliz, de ser útil. Vocês são capazes!

Despeço-me com o sonho de ser mais valorizado, melhor cuidado e menos desprezado. Até mais, talvez numa xepa ou, quem sabe, no próximo descascar de uma bala.

 


Figura 4: Cláudio Tarouco de Azevedo

Fotografia

 

No monitor que bebemos essa informação, na roupa que cobre nossos corpos, nos papéis timbrados que nos dão cidadania e em todo lugar que podemos perceber as coisas manufaturadas, também estamos percebendo a natureza transformada, decodificada em sua fragilidade, atordoando nosso futuro, muitas vezes preso em nossa consciência no ato infeliz de desprezar nosso passado. Um bom planejamento e atitudes sensatas podem libertar nossas mentes do lixo anacrônico existente na consciência humana. Libertando nosso lixo interior poderemos ser mais eficazes e ativos ao lidar com todo esse lixo manufaturado, assim veremos a natureza em constante equilíbrio transformador de uma realidade desgastada para uma que vislumbre um mundo de seres verdadeiramente humanos e conscientes, ativos na construção do futuro do planeta.

 


Figura 5: Cláudio Tarouco de Azevedo

Fotografia

 

O hoje é apenas um furo no futuro

Por onde o passado começa a jorrar

E eu aqui isolado onde nada é perdoado

Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar

Banquete de Lixo – Raul Seixas.

 

Bibliografia:

BACHELAR, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Editorial 70, 1980.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990b.

MINC, Carlos. Ecologia e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1997.

PEIXOTO, Nélson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC/ Ed. Marca D’Água, 1996.

RODRIGUES, Neidson. Filosofia para não filósofos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998.

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martin Claret, 2001.

 

 



[1] Professora do curso Artes Visuais – Licenciatura, FURG.

[2] Acadêmico do 5° ano do curso Artes Visuais.

Ilustrações: Silvana Santos