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A
razão e o sagrado: suas contribuições filosóficas para a dessacralização
da natureza Renato Pirani
Ghilardi Biológo
-(UNESP/Botucatu - 1995), mestrado em Geociências (Geologia Sedimentar
USP/1999) e doutorado em Geociências (Geologia Sedimentar USP - 2004).
Professor assistente da UNESP - Bauru - SP. Flávio Roberto
Chaddad Engenheiro
Agrônomo - pela Unesp/Botucatu, esp. em Educação Ambiental pelo Instituto de
Biociências da Unesp/Botucatu e Mestre em Educação pela PUC-Campinas. Luiz Américo Abrão Eng.
Agronômo pela FAEF/Garça (SP) (2006). RESUMO Este
trabalho tem como objetivo mostrar como se efetuou, historicamente, através das
idéias dos filósofos Pitágoras, Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles,
Tomás de Aquino, Francis Bacon, Descartes e Newton, a cisão entre os dois
modos de conhecimento, o racional e o sensorial e como foi construída a religião
cristã, de onde se originaram seus principais elementos, a imortalidade da alma
e a existência de Deus, que fundamentaram uma religião tipicamente antropocêntrica,
contributiva para uma visão utilitarista da natureza. Entende-se que estas duas
categorias são essenciais para se entender como a natureza passou a ser
dessacralizada completamente pelo ser humano e como foram criadas as bases filosóficas
para a houvesse a dominação dos homens sobre outros homens, postas em práticas
com o advento do capitalismo. Palavras-chave:
Razão; Cristianismo; Dessacralização da Natureza; Filosofia Ambiental. 1. Introdução Hoje
vive-se uma crise ambiental que abarca toda a Terra, uma crise que abrange o que
Guattari (2001) denominou como as três ecologias: o homem em sua subjetividade,
em suas relações sociais e a natureza. Mas onde se situa a origem da crise do
paradigma atual? Será que ela é apenas um mero produto do modo de produção
capitalista ou, então, tem as suas origens construídas durante todo processo
histórico, ou seja, no como o homem foi e vem conhecendo e transformando a sua
realidade imediata? Tentando aprofundar a discussão a respeito das origens da
situação ambiental vigente, este texto tem como objetivo analisar as idéias
criadas e aceitas culturalmente pela sociedade ocidental que deram sustentação
para que a crise da modernidade, herdada pela pós-modernidade, se manifestasse
de maneira tão vigorosa e desproporcional, abarcando o mundo como um todo. Para
isso, este estudo centrou-se em duas categorias de análise: no como se deu à
cisão entre o conhecer racional e o sensorial, que atingiu se ápice através
do cogito cartesiano, e quais foram às
contribuições filosóficas, as idéias sobre Deus e imortalidade da alma,
responsáveis para a edificação do cristianismo. 2. Dos filósofos
hilozoístas a Parmênides: o ser invariável, a existência da alma e a origem
da dicotomia entre o conhecimento racional do sensorial Apesar
de já solidificada, no século VI a.C, a prática da dominação, exploração
e expropriação dos homens, haja vista que todas as sociedades antigas
ocidentais tinham na prática do escravismo a sua base de sustentação, ainda
permanecia acesa, com as idéias dos primeiros filósofos gregos, conhecidos
como pré-socráticos, uma concepção orgânica de universo, de natureza. A
natureza ainda não havia sido dessacralizada por completo. Estes primeiros sábios
da escola de Mileto eram chamados de hilozoístas, ou seja, aqueles que pensam que a matéria é viva.
Essa denominação, estabelecida pelos gregos dos séculos subseqüentes
derivava do fato de que esses sábios não viam distinção alguma entre o
animado e o inanimado, entre a razão e a matéria, entre os conhecimentos
obtidos através dos sentidos dos obtidos através do pensamento. Eles
consideravam todas as formas de existência como manifestações da physis,
da matéria, dotadas de vida (CAPRA, 2003). Segundo
Aristóteles (1996), estes primeiros filósofos gregos consideravam como princípio
de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Para eles, a matéria
está em constante fluxo, em constante transformação. Portanto, não havia
nada de metafísico ou de extraordinário no que definiria e separaria os seres
humanos dos outros seres ou da natureza. Tudo seria formado da mesma matéria,
da physis, estando em constante fluxo
e transformação. Além desta cosmovisão, de que todos os seres são formados
da mesma matéria e de que estão em constante fluxo e transformação, outra
característica que estes pensadores atribuíram ao universo é de que ele é
Uno, de que todos os seres estão integrados. Segundo Nietzsche (1996a), Tales
de Mileto, o mais fecundo pensador desta escola, percebeu que não é o homem e
sim a água a realidade de todas as coisas. Desta forma, utilizando-se do ciclo
da água, Tales contemplou a unidade de tudo que é e, quando quis se comunicar,
falou da água. Com
Pitágoras de Samos há um golpe no modo de conhecer destes primeiros filósofos,
pois ele enfatizava o conhecimento racional, obtido através da inteligência,
em detrimento aos sentidos. Também, aparece, pela primeira vez, uma concepção
religiosa que enfatiza a existência de um deus racional - Apolo - e a
imortalidade da alma. Esta concepção, originária da religião órfica, dá um
novo conteúdo ao culto de Apolo. É um primeiro rompimento com toda a concepção
religiosa vigente naquela época, o que fez surgir os primeiros elementos que
contribuíram, sobremaneira, para a edificação do cristianismo e, conseqüentemente,
da escolástica. Com relação a sua cosmovisão, ele afirma que o Universo está
escrito na linguagem dos números, sendo determinado por eles, conforme afirma:
“Devemos descobrir o número que existe nas coisas” (RUSSELL,
2001). Esta visão de universo, ou seja, mecanicista ou determinada, foi à base
para o desenvolvimento e edificação do cientificismo do século XVI e XVII,
que teve como principais representantes Bacon, Descartes e Newton. Por isto, Pitágoras
rompe com o pensamento dos primeiros filósofos pré-socráticos, para quem o
mundo era um eterno vir a ser, um mundo em constante evolução aberto ao
aparecimento do novo, de imprevistos. Por sua vez, a visão orgânica de
universo será ainda retomada por Heráclito de Éfeso, com sua teoria da
realidade expressa na unidade dos contrários e no movimento, no devir. Como
o último dos filósofos Jônicos, que também pode ser considerado como um
pensador dono de uma concepção organicista do mundo, situa-se Heráclito de Éfeso.
Seu princípio fundamental era o fogo, um símbolo para o contínuo fluxo e a
permanente mudança em todas as coisas. Ele acreditava num mundo em perpétua
mudança, de um eterno “vir a ser”. Heráclito ensinava que todas as transformações no
mundo derivam da interação dinâmica e cíclica dos opostos, vendo qualquer
par de opostos como uma unidade. A essa unidade, que contém e transcendem todas
as forças opostas, ele denominava como Logos
(CAPRA, 2003). Segundo
Hegel (1996), ele diz que tudo flui e nada persiste, nem permanece o mesmo. Ele
compara as coisas com a corrente de um rio – que não se pode entrar duas
vezes na mesma corrente, o rio corre e toca-se outra água. Assim, ele afirma,
desta forma, que tudo é devir. Este devir é o princípio. As determinações
absolutamente opostas estão ligadas numa unidade, nelas temos o ser e o não
ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer de todas as
coisas. O ser não é, por isso é o não ser, e o não ser é, por isso é o
ser, isto é a verdade da identidade de ambos. Nesta unidade está o princípio
de toda a vida. Neste sentido, Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito de
Éfeso, percebiam que todas as coisas têm as suas origens na matéria, na
natureza. Tudo, para eles, era manifestação da natureza, da physis. Desta
forma, nada existiria de extraordinário, de metafísico, na constituição dos
seres humanos que não fosse devido a uma profunda integração e interação
entre o homem e a natureza. Não havia, portanto, para eles, a separação entre
o conhecimento obtido através da razão com o conhecimento obtido pela percepção,
ambos atuariam juntos, sem nenhuma imposição de um sobre o outro, fornecendo
uma verdadeira leitura da realidade. Outros pontos importantes, afirmados por
eles, é o de que o universo é Uno, estando todas as coisas integradas, e de
que esta matéria está em constante fluxo, se destruindo e se construindo
constantemente, originando o novo, o inesperado, conforme afirmava Heráclito de
Éfeso (NIETZSCHE, 1996a). Segundo
Nietzsche (1996a), enquanto em todas as palavras de Heráclito ainda exprimem a
majestade da verdade, mas da verdade apreendida na intuição, também através
dos órgãos do sentido, não da verdade galgada somente pela escada de corda da
lógica, enquanto ele em um êxtase sibilino vê, mas não espia, conhece, mas não
calcula, aparece seu contemporâneo Parmênides, da escola eleática, como um
par, igualmente como o tipo de um profeta da verdade, mas como que formado de
gelo, não de fogo, vertendo em torno de si uma luz fria e penetrante. Esta
escola além de também sobrevalorizar o conhecimento racional em detrimento a
percepção sensorial, como Pitágoras, pressupunha, agora, um princípio Divino
posicionado acima de todos os deuses e de todos os homens. Note-se que até
aquele momento não havia declaradamente uma separação gritante entre estas
duas formas do conhecer, entre o pensamento e a percepção dos sentidos, entre
razão e matéria. Além disso, esse princípio que foi inicialmente
identificado com a unidade do universo, o Ser, único e invariável, passou a
ser encarado como um Deus pessoal e inteligente, onipotente e onipresente,
situado acima do mundo e que o dirigia. A partir desta invariabilidade do Todo,
Parmênides considerava impossível a mudança encarando aquelas que presumimos
perceber no mundo como simples ilusões do sentido. Esta separação entre as
duas formas de conhecer, entre razão e sentidos, veio se aprofundando e atingiu
seu auge a partir do cogito cartesiano, com a máxima: Penso,
logo existo!, que se verá mais a frente. Outra questão importante, que
também veio a luz a partir da escola eleática, foi a edificação de um Ser
Divino, posicionado acima dos deuses e homens, que mais tarde, com o
cristianismo, contribuiu, ainda mais, para a dessacralização da natureza e
para a divisão entre homem e natureza. Em suma, esta religião, que é uma das
bases culturais da civilização ocidental, pressupõem que o homem seja
possuidor de alma e o representante de Deus na Terra, sua imagem e semelhança.
Aquela, a natureza, seria a desalmada, apenas o meio que o homem tinha de manter sua parte
imperfeita, seu corpo, funcionando durante seu transcurso na Terra. Desses
pensamentos é que originaram, respectivamente, o domínio da razão sobre a
percepção dos sentidos e também, através da edificação do cristianismo, a
separação entre homem e a natureza, característica marcante da filosofia
ocidental (CAPRA, 2003). Nietzsche
(1996a) afirma que, em sua visão, Heráclito descobria que maravilhosa ordenação,
regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser, daí concluía ele que o
vir-a-ser não poderia ser injusto. Porém, Parmênides teve uma visão
completamente diferente. Seu método era o seguinte: ele tomava alguns opostos,
por exemplo, leve e pesado, e lhes atribuía valores de positividade e
negatividade. Entre o ser (positivo) e o não ser (negativo). Mas como explicar
então o vir-a-ser? Estes pólos não deveriam repelir-se constantemente como
contraditórios, fazendo assim todo o vir-a-ser impossível? Para isso, ele lança
mão de uma tendência mística dos contraditórios em atraírem-se,
simbolizando aquela oposição pelo nome de Afrodite, através da conhecida relação
mútua e empírica entre o masculino e o feminino. O poder de Afrodite é ligar
os contraditórios, o ser e o não ser. Um desejo une os elementos que conflitam
e se odeiam: o resultado é o vir-a-ser.
Segundo
Nietzsche (1996a), Parmênides repentinamente sentiu pesar sobre sua vida um
monstruoso pecado lógico. Ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam
qualidades negativas, não seres em geral, ou seja, havia suposto que A = não
A, o que somente a mais completa perversidade do pensamento poderia formar. Ele,
então, mergulha no banho frio de suas terríveis abstrações. O que é
verdadeiro precisa estar presente eterno, dele não pode ser dito “ele era”,
“ele será”. O ser não poderia vir-a-ser, pois de que ele teria vindo? Do não
ser? Mas o não ser não é e não pode produzir nada. Do ser? Isto seria senão
produzir-se a si mesmo. O mesmo acontece com o perecer, ele é igualmente impossível,
como o vir-a-ser, com toda mutação, como todo aumento, com toda diminuição. A
partir disto, ele afirma que o ser é imóvel, pois para onde ele devia
movimentar-se? Ele não pode ser infinitamente grande ou infinitamente pequeno,
pois ele é acabado e um infinito dado por acabado é uma contradição. Assim,
limitado, acabado, imóvel, em equilíbrio, em todos os pontos igualmentes
perfeitos como uma esfera, ele paira, mas não em um espaço, pois caso contrário
este espaço seria um segundo ser. Desta forma, só existe a Unidade eterna
(NIETZSCHE, 1996a). Voltando-se, agora, os olhos para o vir a ser, ele dizia:
“não siga os olhos estúpidos, não
siga o ouvido ruidoso ou a língua, mas examine tudo somente com a força do
pensamento”. Sobre este fato, Nietzsche (1996a) afirma: Com
isto, ele operava a primeira crítica do aparelho do conhecimento, extremamente
importante e funesta em suas conseqüências. Se bem que ainda muito
insuficiente. Através disso ele repentinamente separou os sentidos e a
capacidade de pensar abstrações, a razão, como se fossem duas faculdades
inteiramente distintas, desintegrou o próprio intelecto e animou aquela divisão
completamente entre corpo e razão que, especialmente desde Platão, pesa sobre
a filosofia como uma maldição. Todas as percepções dos sentidos, pensa Parmênides,
dão apenas ilusões; e sua ilusão fundamental é simular que o não ser é,
que o vir a ser tem um ser. Toda aquela multiplicidade e variedade do mundo
conhecido pela experiência, a troca de suas qualidades, a ordenação de seus
altos e baixos, foram postas de lado impiedosamente como uma ilusão e pura aparência;
não há nada para aprender dela, está perdido todo o trabalho que se tem com
este mundo mentiroso, nulo e alcançado através dos sentidos. Quem pensa desta
maneira, como o fez Parmênides, suprime a possibilidade de ser um investigador
da natureza, seu interesse pelo fenômeno caí, forma-se um ódio em não poder
livrar-se desta eterna fraude dos sentidos (p.132). Com
a divisão entre o como se conhece, entre a razão e a percepção, que tem sua
origem na matéria, não demorou muito para que antropocentricamente se
aprofundasse, sobremaneira, a desvalorização do mundo sensível, corporal, da res
extensa, ou seja, do corpo e da natureza, em prol da razão, da lógica, que
era a maneira ideal de se chegar à verdade, à essência do Todo. Além disso,
esta concepção do Ser, um divino situado acima do mundo, invariável, imóvel
e em equilíbrio, mais tarde se transformou em um Deus inteligente, onipotente,
onisciente, onipresente, criador de todos os seres, e do homem a sua imagem e
semelhança. Estes fatos que, mais tarde, deram a luz ao cogito cartesiano e
cristianismo, respectivamente, acirraram ainda mais a separação entre homem e
natureza. Além disso, a questão que envolve a concepção de um universo, já
pré-determinado ou estático, escrito em linguagem matemática, conforme Pitágoras,
contribuiu, sobremaneira, para a edificação da ciência moderna nos séculos
XVI e XVII que fez uso deste postulado, principalmente, com figuras como Bacon,
Descartes e Newton. 3. Sócrates, Platão
e Aristóteles: a fundamentação do cristianismo e a hierarquização dos seres
com base no conhecimento À
medida que a idéia de uma divisão entre razão e matéria tomava corpo, os filósofos
voltaram sua atenção para o mundo “espiritual”, para o interior do ser
humano, ou seja, para a razão, pondo de lado o material, passando a se
concentrar na alma humana e nos problemas da ética, como se um, a inteligência,
não dependesse do outro, o corpo material (CAPRA, 2003). Mas, esta incursão
pela “alma” humana não se diferenciava em quase nada das idéias de dois
dos primeiros filósofos que foram aqui comentados: Pitágoras de Samos e Parmênides.
Segundo
Chauí (2005), Sócrates, um dos maiores mais influentes filósofos do mundo,
mantém a separação entre opinião e verdade, entre aparência e realidade e,
por fim, entre percepção sensorial e pensamento. Para ele, a alma era
diferente do corpo. Ela era a consciência de si, das coisas, do bem e do mal,
da justiça e da verdade. Era a inteligência como reflexão. Note-se que a alma
para Sócrates estava ligada diretamente com a inteligência, e este pressuposto
será mantido por São Tomás de Aquino e por Descartes. Navarro (2002) diz que,
para ele, o objeto da ciência não é o sensível, o particular, mas sim o
inteligível, que é o universal. Desta forma, ele afirma que não se atinge o
universal pela experiência sensível, mas pela dialética que utiliza tão
somente a razão como o instrumento. O particular é objeto de opinião e está,
portanto, sujeito ao erro. Outra questão importante em Sócrates que, originária
de Pitágoras, mais tarde também estava na origem, na base, do cristianismo,
foi à busca pela perfeição moral, pela busca da virtude. Este bem, mais à
frente, com a edificação do cristianismo, irá se igualar a tudo que for metafísico,
ao que for imaterial, enquanto o mal seria igualado ao material e, conseqüentemente,
a natureza (RUSSELL, 2001). Sócrates reconheceu a existência de uma lei
natural, independente do arbítrio humano, uma lei universal, expressão da
vontade divina proclamada pela voz interna da consciência, pelo daimon
interior. Além, deste deus interior, que foi a viga mestra de toda a sua ação
inspirada pela filosofia, Sócrates professou também a imortalidade da alma.
Com efeito, para ele, a alma tem natureza divina, é imortal e eterna. Sócrates
ensinava que certamente a alma do homem participa, mais do que qualquer outra
coisa humana, do divino e o que o homem tem de maior e melhor é a alma e que
foi Deus quem lha infundiu. A crítica que se faz ao sistema filosófico socrático
é que ele equivale o bem ao que for imaterial ou sobrenatural e o mal ao que
for material, reafirma a separação entre conhecimento sensível do racional,
ou seja, ele enfatiza o conhecimento racional, e mantém as idéias sobre a
imortalidade da alma e sobre existência de Deus, originadas a partir de Pitágoras
Samos e Parmênides. Estas idéias Socráticas, mais à frente, foram utilizadas
para a construção do cristianismo, uma religião tipicamente antropocêntrica,
que viria, algum tempo depois, após receber outras influências, ajudar a
dessacralizar ainda mais a natureza. Assim, com esta teoria, alguns
historiadores arbitram que o humanismo de Sócrates devia se classificar de
humanismo pré-cristão (NAVARRO, 2002). Platão
também dividia o conhecimento entre sensível e inteligível. Para ele, indo ao
encontro de Parmênides, o devir incessante impossibilita o conhecimento, uma
vez que este exige que encontremos essências, seres cuja natureza permanece
sempre idêntica no espaço e no tempo, sempre igual a si mesma, garantindo a
necessidade de sua realidade e a universalidade de seu conhecimento. Segundo
Platão, Parmênides não estava inteiramente equivocado. Ao exigir identidade,
imobilidade, perenidade e unidade do ser, foi o primeiro ao aproximar-se do
inteligível, isto é, das formas (eide)
incorpóreas e imateriais, imutáveis e idênticas, ou seja, do mundo das idéias,
conhecidas exclusivamente pela inteligência. A identidade, imobilidade,
perenidade e unidade das formas imateriais é a marca das idéias, ou do mundo
puramente inteligível que só alcançamos pelo pensamento e jamais pelos
sentidos ou pelas sensações. O engano de Parmênides, entretanto, esteve em
supor que havia uma única forma inteligível, uma única idéia ou essência, o
ser, quando, na verdade, para Platão, existe uma pluralidade de essências, que
são as idéias, conhecidas exclusivamente pelo pensamento e obtidas a partir da
dialética. O mundo das idéias de Platão irá influenciar muito a idealização
do Reino dos Céus propalado por Jesus Cristo e, mais tarde, pelo Cristianismo
(CHAUÍ, 2005). Com
relação as questões que envolvem a existência de Deus e a existência de uma
alma imortal, Platão acreditava que uma nação devia ter um cimento moral. Os
membros da comunidade devem compor uma unidade. Assim, ele acreditava que uma nação
não podia ser forte, a menos que acreditasse em um Deus. Uma simples força cósmica,
uma causa primeira, ou um élan vital, que não seja uma pessoa, mal poderia
inspirar esperança, devoção ou sacrifício. Não poderia oferecer conforto
aos corações aflitos, nem coragem às almas em conflito. Mas um Deus vivo pode
fazer tudo isso e incitar ou obrigar, pelo medo, o individualista moderar um
pouco a sua ganância, a controlar um pouco sua paixão. Ainda mais se a crença
em Deus se acrescentar a crença na imortalidade pessoal: a esperança de uma
outra vida nos dá coragem para enfrentar a nossa morte e suportar a morte dos
entes queridos; estaremos duplamente armados se lutarmos com fé (DURANT, 1996).
Em se tratando da alma, Platão acreditava que ela era anterior ao corpo e antes
de aprisionar-se nele pertenceu ao mundo das idéias. A alma superior é imortal
e retornará à esfera das idéias após a morte do corpo, que mais a frente,
com a edificação do cristianismo, tornou-se o reino de Deus (NAVARRO, 2002). Até
este momento temos a separação gritante entre o conhecimento racional do
conhecimento sensível. A ênfase dada por estes filósofos no conhecimento
racional, em detrimento ao conhecimento sensível, da natureza ou da res extensa, a partir de Parmênides, irá atingir seu ápice com o
cogito cartesiano, como se verá mais adiante. Outros dois filósofos
importantes, Aristóteles e São Tomás de Aquino, não separam estas duas
formas de conhecer, atentando que para se obter o conhecimento inteligível é
necessário o conhecimento sensível. Porém, depositam no conhecimento
racional, na abstração, a única maneira de se chegar à verdade. O que se
busca em Aristóteles e São Tomás de Aquino, neste trabalho, é que um
hierarquiza os seres tendo como base a noção de como se conhece e o outro,
respectivamente, irá apropriar-se desta hierarquização, tendo como base,
agora, as criaturas mais perto ou mais distantes de Deus pela perfeição e pela
existência da alma. No caso de São Tomás de Aquino há ainda o pressuposto
que liga a alma imortal ao conhecimento inteligível, como acontece também em Sócrates.
Por sua vez, as questões referentes à existência de Deus e de uma alma
imortal até aqui estão já consolidadas, prontas para serem utilizadas como
objetos primordiais para a edificação do cristianismo. Assim, a questão
referente à imortalidade da alma e da existência de Deus, tendo sua origem em
Pitágoras de Samos, recebeu influência significativa de Sócrates e de Platão
e vai adquirir uma influência maior ainda com a edificação do cristianismo,
da escolástica e, por fim, do cartesianismo. Assim, esta ênfase dada a esta
forma de conhecer, o racional, não levando em conta outras formas de conhecer,
que atuam em conjunto e contribuem para a manutenção da vida na Terra, e da
edificação do cristianismo, que recebeu as idéias de imortalidade da alma e
de Deus destes filósofos gregos, vão causar, mais adiante, com a edificação
do cristianismo e do sistema filosófico cartesiano, a dessacralização da
natureza, principalmente, por estas formas de conhecer estarem fundamentadas em
valores antropocêntricos, em valores que afirmam a razão como a única forma
de se chegar à verdade, da criação dos homens a imagem e semelhança de Deus
e da existência da alma como prolongamento da vida junto ao Divino iluminado
segundo a teologia cristã. Mas, em primeiro lugar, é necessário, antes de
adentrar no cerne do cristianismo, estudar Aristóteles e entender quais são os
pressupostos de sua filosofia que mais tarde foram utilizados para a construção
da escolástica, principalmente, por São Tomás de Aquino, e que contribuíram,
ainda mais, para a dessacralização da natureza.
Na
física aristotélica o mundo é incriado. A divindade suprema ou Deus é o
motor imóvel do universo, o pensamento que pensa a si mesmo e que nada cria,
movendo o mundo como causa final, sem conhecê-lo, como o amado atrai o amante.
A alma não é mais do que a forma do corpo organizado, devendo nascer e morrer
com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural. É uma filosofia tipicamente
materialista. Assim, esta filosofia aristotélica ignorava totalmente as noções
de Deus criador e providente, bem como as de alma imortal, queda e redenção do
homem, todas fundamentais a doutrina cristã (MATTOS, 2000). Mas o que importa
aqui, neste trabalho, para se entender como os postulados de Aristóteles, mais
tarde, foram utilizados por São Tomás de Aquino e ajudaram ainda mais a
dessacralizar a natureza, é compreender seu tratado “Da
Alma”. Segundo Aristóteles (2006), o princípio que dá a vida aos seres
inanimados e animados possui faculdades. Algumas criaturas animadas possuem
todas as faculdades, outras algumas e outras, ainda, apenas uma. As faculdades são
a Alma Nutritiva, a Alma Sensitiva e a Alma Intelectiva. Através destes três
tipos de alma é que se estabelece uma hierarquia de seres, que mais tarde, em São
Tomás de Aquino, vão exercer uma grande influência. Assim, conforme Aristóteles
(2008), os vegetais tem alma nutritiva, que é o principio mais básico e
elementar da vida, responsáveis pelas funções biológicas como nutrição,
crescimento e geração, portanto, ocupam o nível inferior desta escala. Os
animais ocupam um nível superior, pois possuem, além da alma nutritiva, a alma
sensitiva, com os cinco sentidos
que Aristóteles, no capítulo II da Alma, faz uma exposição deles. Depois de
investigar as almas nutritiva e sensitiva, faz uma investigação acerca da alma
Intelectiva (intelecto). Assim, desta faculdade somente o homem é dotado,
somente ele tem a capacidade de conhecer. Aristóteles caracteriza o intelecto
como “aquela parte da alma que permite o conhecer e o pensar”. O objeto,
atingido pelos sentidos, é também atingido pela inteligência, a qual abstrai
nele a noção de ser. Desta forma, a vista vê a cor, e a inteligência diz que
é a cor. Uma vê a casa, a outra diz que é a casa, e assim por diante. Esta
hierarquização, baseada no conhecimento, se transformará a partir de São Tomás
e será construída a partir do grau de proximidade com o divino pela perfeição
e existência de alma. 4. O cristianismo e a
escolástica: a visão utilitarista da natureza A
partir da edificação do cristianismo, baseado em uma série de outros sistemas
filosóficos, é que houve, de uma vez, a translocação dos valores místicos
dos bens naturais para uma entidade única, absoluta, onipotente, onipresente e
onisciente, Deus (ALMEIDA et al, 1993). Mas quais as influências filosóficas
contribuíram para a edificação deste sistema? Em que pontos ele representou
um dos marcos fundadores para a dessacralização da natureza que, após este
sistema, de uma vez por todas, passou a ser um bem de utilidade para o homem? Ou
seja, a forma do ser humano manter sua parte imperfeita funcionando durante seu
trajeto na terra, em busca de uma verdadeira existência, dada pela alma, no
“Reino dos Céus” e junto ao divino? Pode-se dizer que o cristianismo, que
veio dominar o ocidente, é uma mistura da cultura grega, desde a sua
antiguidade, da religião dos judeus e cultura oriental. Ele recebeu, por parte
dos gregos antigos, principalmente, de Pitágoras, Parmênides, Sócrates e Platão,
os elementos responsáveis pela existência da alma imortal, que viveria uma
existência extra-sensível, no Reino dos Céus, junto à Deus. Também recebeu
alguns princípios éticos de Sócrates e Platão, como o qual enfatiza a
virtude, os bens imateriais em detrimento aos bens mundanos, aos bens materiais,
como bem supremo a ser atingido pelo ser humano. Deste modo, é que Platão
tornou-se o guia que desviava os seus olhos da realidade material e sensual para
o mundo imaterial (JAEGER, 2002). Esta visão, que também liga a virtude a
sobrenaturalidade, ou seja, ao culto da alma e a um poder supremo, Deus, passou
a amaldiçoar a beleza e o prazer como abjetos e nocivos. Desta forma,
oficialmente, o cristianismo conserva a estranha noção que o prazer é
pecaminoso. Mais a frente, também, esta religião, chegou a igualar a distinção
entre espírito e matéria com a antítese do bem e do mal, como se um (razão e
o espírito) não dependesse do outro (matéria), e como se o ser humano, dotado
de virtude sobre-humana, não dependesse da natureza, o
mal personificado (RUSSELL, 2001). Outra questão importante, originada a
partir do cristianismo, é a que torna a natureza apenas um objeto de utilidade
para o ser humano durante sua passagem na terra, cuja finalidade, para os
justos, é viver a eternidade junto ao divino no Reino dos Céus. Tem-se, como
reflexo destas teorias, a falta de apreço à res
extensa, ao corpo, a natureza. O ser humano deixa, de uma vez por todas, de
comungar com o natural e passa a comungar com o que existe em suposição, com
algo metafísico que sonha um dia alcançar, ou seja, uma vida em outro mundo,
no “Reino dos Céus”, junto a um divino onipotente, onisciente e
onipresente, Deus. Desta forma, ele transloca valores dos bens naturais para
esta entidade. Esquece-se, portanto, que a verdadeira vida está na terra, neste
mundo, e que a natureza não é algo apenas que serve para manter seu corpo
funcionando, durante seu trajeto neste mundo em busca de uma vida no reino dos céus,
mas, sim, é uma extensão do seu próprio corpo, que dela necessita para
sobreviver, como afirmava Spinoza quando enfatizava que necessitaríamos também
de uma filosofia do corpo, não apenas da mente (DELEUZE, 2002). Outra filosofia
a influenciar o cristianismo foi a doutrina cínica de Diógines, que, por sua
vez, é uma ramificação da doutrina de Sócrates. Ela também manda o ser
humano a se afastar dos bens mundanos, na Terra, e concentrar-se na virtude, no
sobrenatural, como único bem digno de se ter. Por sua vez, dentre o mais
influente movimento filosófico que participou, sobremaneira, da criação do
cristianismo, está o estoicismo. O fundador do estoicismo foi um mercador fenício
chamado de Zenão, portanto, dai então o seu lado oriental. O estoicismo
pregava a coragem diante o perigo e do sofrimento e a indiferença diante às
circunstâncias materiais. Neste sentido, para este movimento filosófico os
bens materiais têm pouco valor. Ao rejeitar os “falsos” atrativos dos bens
externos, um homem se torna perfeitamente livre, pois a sua virtude, a única
que importa, não pode ser atingida por pressões exteriores. Além disso, os
estóicos haviam ensinado que o princípio divino e causa do mundo era o Logos,
que penetrava tudo o que existe. Este Logos, que Sócrates em parte pré-anunciou,
a lei universal, que mais tarde foi trabalhada por São Tomás de Aquino e que
foi tida como a base para a edificação do cientificismo dos séculos XVI e
XVII, tomou a forma humana em Cristo, como diz o quarto evangelho, pois Cristo
surge aí como poder criador do verbo pelo qual o mundo foi feito (JAEGER,
2002). A postura estóica advinda desta doutrina, uma das bases do cristianismo,
será muito criticada negativamente por Nietzsche, no seu livro “O
Anticristo”. Neste processo de
translocação de valores místicos dos bens naturais para uma entidade única,
Deus, e da aceitação das circunstâncias adversas pelos homens, através do
estoicismo, outras posturas são adquiridas através do judaísmo, o último
pilar religioso a influenciar o cristianismo. Assim, o cristianismo irá
compartilhar do judaísmo a visão que deus tem seus favoritos, a visão de história
em que o mundo foi criado por Deus e se encaminha para um fim divino e adere,
tal qual o judaísmo, a idéia essencialmente neoplatônica da existência de um
outro mundo, através da teoria das idéias ou mundo das idéias. Outro ponto
importante desta religião, também, consistia do julgamento final do homem após
sua morte, do futuro acerto de contas, quando os justos iriam para o céu e os
maus arderiam no inferno. O elemento recompensa tornou o cristianismo
universalmente conhecido (RUSSELL, 2001). Além de dessacralizar a natureza,
através da translocação de valores dos bens naturais para um entidade única
e onipotente, de tornar a natureza apenas um meio do ser humano se realizar na
terra até sua passagem para um outro mundo, o Reino dos Céus, ele também
tornou o homem subserviente às adversidades da vida, impostas ao homem pela má
sorte ou pelos “fortes”, como afirma Nietzsche em “O
Anticristo” (1996b): “A oposição
da moral e do cristianismo ao mundo e à política é uma pseudo-oposição que
oculta uma básica conveniência: a moral é o meio no qual os padres
fundamentam o seu poder, tiranizam as massas e arregimentam as manadas”
(p.12). Com
a unificação do cristianismo com a filosofia aristotélica tem-se a origem da
escolástica. Entronizada na Idade Média, principalmente, por São Tomás de
Aquino, essa filosofia teológica coloca a natureza à disposição do homem,
tornando-o hierarquicamente superior (ALMEIDA et al, 1993). Mas em que consiste
essa filosofia e como ela colaborou para que o homem seja hierarquicamente
superior à natureza? Pode-se dizer que São Tomás de Aquino operou uma
transformação na distinção aristotélica entre essência e existência.
Segundo Mattos (2000), nos “Segundos
Analíticos”, Aristóteles distingue entre as questões “o que é um ser?” E “esse
ser existe?”. A resposta à primeira pergunta constitui a definição de
uma essência, mas, para Aristóteles, uma definição não implica jamais a
existência, lógica ou empírica, do definido. Tomás de Aquino, ao contrário,
interpreta aquela distinção como ontológica, real. Assim, Tomás de Aquino
conclui que a definição de uma essência não implica sua existência e,
portanto, elas não existem por si mesmas, e sim devido a uma outra realidade. A
distinção real entre essência e existência torna-se, assim, o fundamento
metafísico da contigência das criaturas humanas e permite introduzir no
peripatetismo a idéia de criação. Deus seria, assim, criador de todas as
coisas e fundamento de suas existências contingentes. Torna-se perfeitamente
concebível pela razão que o mundo seja um conjunto de criaturas contingentes
cuja existência é dada por Deus, criadas a partir do nada e escalonadas
segundo graus diversos de perfeição e participação na essência e existência
divinas, como sugeriu Aristóteles (2006) em seu tratado “Da
alma”. No ápice da hierarquia das criaturas encontram-se os anjos e, para
explicá-los, a distinção tomista entre essência e existência revela-se
particularmente eficiente. Conforme os textos bíblicos, os anjos seriam puros
espíritos, o que – interpretado aristotelicamente, sem o principio tomista da
distinção ontológica entre essência e existência – levaria à conclusão
de que são puras formas e, portanto, incriados, eternos. A distinção ontológica
entre essência e existência permite reinterpretar o princípio aristotélico
segundo o qual a forma dá a existência: São Tomás de Aquino pode então
afirmar que é por intermédio da forma que Deus proporciona existência aos
anjos, que seriam, assim, seres contingentes. Os anjos seriam criaturas como as
demais, embora incorpóreas e possuidoras da mais alta perfeição entre as
criaturas. Na hierarquia descendente das criaturas, o homem aparece como um ser
dotado de duplo compromisso. Por sua alma, pertence à série dos seres
imateriais, mas não é uma inteligência pura, como a dos anjos, pois se
encontra essencialmente ligada a um corpo. A alma humana é assim um horizonte
onde se tocam o mundo dos corpos e os dos espíritos. Por esta dupla natureza é
que o homem pode conhecer, já que é alma, mas não pode ter contato direto com
o inteligível, porque também é corpo (MATTOS, 2000). Em um último nível
hierárquico estaria, a desalmada,
natureza. Representaria, mais uma vez, o meio do ser humano manter sua parte
imperfeita – o corpo - funcionado durante seu transcurso sobre este mundo,
enquanto que alma aguardaria o momento de sua passagem para um outro mundo, o
Reino dos Céus, junto ao Divino. Neste sistema, ou seja, no cristianismo da
Idade Média ou a Escolástica, está embutida a idéia de que o homem
transcende a natureza. Tem-se, portanto, explicitada a relação utilitarista da
natureza, pois a natureza estaria ali apenas para servir o homem, imagem e
semelhança de Deus (TOZONI-REIS, 2004). Outra questão que adveio da escolástica
foi a das leis universais, também presentes em Sócrates, que regulam o
funcionamento do mundo que foi a base para o cientificismo do século XVI e
XVII. A convicção fundamental da ciência é que o mundo funciona de acordo
com leis e princípios regulares e constantes e, portanto, previsíveis. Essa
base é oriunda da visão cristã de que o mundo foi criado de forma ordenada
por um único Deus (WHITE, 1967). 5. A ciência: o último
pilar da dessacralização da natureza Com
a revolução científica, nos séculos XVI e XVII, instituiu-se uma feição
mecanicista à natureza, despojando-a completamente de qualquer vestígio de
sacralidade. Nomes como Bacon, Newton e, principalmente, Descartes conferem ao
universo uma ótica cibernética, mecanicista, onde engrenagens funcionam
harmonicamente. O cientificismo cartesiano atesta valor a natureza como bem de
utilidade. Separa o corpo da mente, razão da emoção e, por conseguinte, homem
de natureza. A partir de então, consolida-se no paradigma dominante a
antropocentrização do mundo. Mas em que consistia as principais idéias destes
filósofos-cientistas? Como elas influenciaram o modo de conduta do ser humano
até os dias de hoje? Como elas reafirmaram a razão em detrimento ao
conhecimento sensorial, como a razão foi utilizada por eles, e como se mantive
nestes sistemas, principalmente, no cartesianismo, questões como a imortalidade
da alma e da existência de Deus? Todos
os cientistas que fizeram parte deste grande movimento, o cientificismo do século
XVI e XVII, acreditavam que o mundo estava baseado em leis universais, imutáveis,
dadas por Deus, e expressas em linguagem matemática. Assim, Galileu (1987)
afirmava: “O universo está escrito em linguagem matemática” (p.43), e todos
também concordavam com esta assertiva. Como se viu, durante toda discussão que
se realizou neste trabalho, esta idéia não é original, está presente em Pitágoras
de Samos, em Sócrates, na doutrina dos estóicos e no cristianismo e, conseqüentemente,
na escolástica. Este último movimento filosófico religioso, cuja principal
figura foi Tomás de Aquino, preparou o solo fértil por onde a ciência iria
germinar. Assim, estes cientistas, principalmente, Bacon, Descartes e Newton,
mantiveram este postulado. Porém, as suas abordagens da ciência foram
decisivas para que na natureza, a desalmada
em épocas anteriores, se cravasse o último pilar que veio a dessacralizá-la
por completo. O
primeiro cientista que contribuiu para, mais uma vez, enfatizar a razão sobre a
realidade sensorial, foi Francis Bacon, pai do indutismo. Com Bacon o objetivo
da ciência foi o de retirar dela, da
natureza, aquele conhecimento que pudesse ser usado para dominá-la e
controlá-la, não para admirá-la e entendê-la. Os termos em que Bacon
defendeu esse novo método empírico de investigação eram não só apaixonados
mas, com freqüência, francamente rancorosos. A natureza, na opinião dele,
tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada
a servir” e “escravizada”.
Devia ser “reduzida à obediência”,
e o objetivo dos cientistas era “extrair
da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”. Muitas dessas imagens
violentas parecem ter sido inspiradas pelos julgamentos de bruxas que eram freqüentemente
realizados no tempo de Bacon. Como chanceler da coroa no reinado de Jaime I,
Bacon estava intimamente familiarizado com tais denúncias e libelos; e, como a
natureza era vista como fêmea, a mãe nutritiva, não deve casar surpresa o
fato de ele ter transferido as metáforas usadas no tribunal para os seus
escritos científicos. De fato, sua idéia da natureza como uma mulher cujos
segredos têm que ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos
mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos
de bruxas do começo do século XVII (CAPRA, 1999). Outro
cientista conhecido como fundador da filosofia moderna foi René Descartes
(2000). Este filósofo enfatizava a razão em detrimento aos sentidos e igualava
a existência da alma com a inteligência, como o fez Sócrates e São Tomás de
Aquino. Também, para compor seu sistema filosófico, acredita que o mundo está
regido por leis invariáveis, dadas por Deus, e escritas em linguagem matemática,
conforme afirma na quinta parte de seu livro “Discurso
do Método”: Permaneci
sempre firme na resolução de não supor nenhum outro princípio que não fosse
o de que me servi para demonstrar a existência de Deus e alam, bem como na de não
aceitar como verdadeiro nada que não me parecesse tão claro e tão certo como
me pareciam antes das demonstrações dos geômetras. Ouso dizer, todavia, que não
só encontrei o meio de me satisfazer, em pouco tempo, no tocante às principais
dificuldades geralmente abordadas pela filosofia, como também observei que
certas leis por Deus estabelecidas de tal forma na natureza e cujas noções por
Ele impressas em nossas almas são tais que, depois de refletir bastante a
respeito delas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas
em tudo que existe e se faz no mundo (p.47). Seu
método analítico de raciocínio é provavelmente a maior contribuição de
Descartes a ciência. Porém, a ênfase dada ao método cartesiano levou à
atitude generalizada de reducionismo na ciência – a crença em que todos os
aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas
partes. O que a ciência, neste momento, vem contradizer, principalmente, quando
se baseia na física quântica e no funcionamento dos sistemas vivos. Aliando
este método ao seu cogito: “Penso, logo existo”, Descartes (2000) atribuiu a existência dos
seres humanos a uma alma intelectiva. A natureza, a flora e a fauna, as
desprovidas de inteligência e desalmadas, foram tratadas como máquinas
animadas, em sua linguagem, automatas, destituída de sentimentos e de inteligência. Segundo
afirma Capra (1999), em sua tentativa de constituir uma ciência natural
completa, Descartes estendeu sua concepção mecanicista da matéria aos
organismos vivos. Plantas e animais passaram a ser consideradas simples máquinas
e o ser humano, mais uma vez, apesar de sua parte imperfeita, o seu corpo, era
habitado por uma alma racional que estava ligada ao corpo através de uma glândula
pineal, no centro do cérebro. Descartes privilegiou a mente me relação à matéria,
a res extensa ou natureza, levando a conclusão de que as duas eram separadas e
fundamentalmente diferentes. Ele afirmou que “não há nada no conceito de
corpo que pertença a mente, e nada na idéia de mente que pertença ao
corpo”. Assim, a divisão cartesiana entre matéria e mente teve um efeito
profundo sobre o pensamento ocidental. Uma importante crítica ao sistema
cartesiano ou de Descartes é feita, de forma poética, por Milan Kundera
(1995), no capítulo sétimo, O sorriso de karenin, do livro “A
insustentável Leveza do Ser”: Uma
novilha se aproxima de Tereza, pára, e olha para ela longamente com grandes
olhos castanhos. Tereza a conhece. Chama-se Marketa. Gostaria de ter dado um
nome a cada uma das novilhas mas não pode, são muitas. Há uns trinta anos
certamente teria sido assim, todas as vacas do lugar teriam um nome (se o nome
é sinal da alma, posso dizer que elas tinham uma, apesar de desagradar
Descartes). Mas a aldeia tornou-se uma grande usina cooperativa e as vacas
passam a vida em dois metros quadrados de estábulo. Não tem mais nome, são
apenas machinae animatae. O mundo deu
razão a Descartes. Tenho sempre diante dos olhos Tereza sentada sobre um
tronco, acariciando a cabeça de Karenin (cachorro), e pensando no desvio da
humanidade. Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está
saindo de um hotel de Turin. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro
espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o
pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em
1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras:
foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para
mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche
veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio
da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo. É este
Nietzsche que amo, da mesma forma que amo Tereza, acariciando em seus joelhos a
cabeça de um cachorro mortalmente doente. Vejo-os lado a lado: os dois se
afastando do caminho no qual a humanidade, “senhora e proprietária da
natureza”, prossegue sua marcha para frente (p.292). Com
isso, plantas e animais passaram a serem considerados como simples máquinas
animadas, dessacralizados por completo, e o ser humano era tido como que
habitado por uma alma racional que estava ligado ao corpo através da glândula
pineal, no centro do cérebro. No que dizia respeito ao corpo humano, era
indistinguível de um animal máquina, mas permanecia salvo por possuir alma e
inteligência. A ênfase dada ao racional por René Descartes, através de sua célebre
máxima: “Cogito, ergo sun”
encorajou eficazmente os indivíduos ocidentais a equipararem as suas
identidades com suas mentes racionais e não com os seus organismos totais. Na
medida em que nos retiramos para nossas mentes, esquecemos de como “pensar”
com nossos corpos, de que modo usá-los como agentes de conhecimento (CAPRA,
1999). Por outro lado, este modo de pensar, também habilitou industrias
gigantescas a venderem produtos, especialmente para mulheres, que proporcionam o
corpo ideal. É preciso notar aqui, que a busca pelo corpo ideal pelas mulheres
e, principalmente, pelos jovens em academias de ginásticas, na maioria das
vezes, é feita através de métodos artificiais, como, por exemplo, com
cirurgias plásticas ou com o uso de anabolizantes. Não há uma filosofia do
corpo que complemente uma filosofia da mente, que perceba que tudo, igualmente
como a natureza, tem que obedecer a um processo orgânico. Segundo Hinkelammert
(2000), a divisão entre corpo e matéria também contribuiu decisivamente para
que os seres humanos se reconhecessem como egos isolados dentro de seus corpos,
o que trouxe sérias implicações éticas para outros dois dos três registros
ecológicos que compõem o que se entende por meio ambiente: as relações
sociais e a subjetividade. Para este sujeito atomizado e transcendental, o do
penso logo existo, filosofia esta que também encerra uma das bases do
liberalismo econômico, não há relações que impliquem tornar o outro pessoal
(homem/natureza), tudo se reduz em uma ética da coisificação, num mundo onde
os “objetos”, as máquinas animadas,
homem e natureza, têm que ser dominados, explorados e expropriados, para
satisfazer sua parte imperfeita, o seu corpo, durante seu trajeto sobre o
planeta terra. Assim, agindo desta maneira, o ambiente passa a ser tido como
algo fora ou externo ao ser humano e ele, o ser humano, desta forma, desliga-se
do seu meio ambiente, do outro e da
natureza, e se esquece de comungar e cooperar com uma rica variedade de
organismos vivos de que necessita para sobreviver.
Um
outro nome importantíssimo para a revolução cientificista foi Newton. Na mecânica
newtoniana todos os fenômenos físicos estão reduzidos ao movimento de partículas
materiais causado por atração mútua. Na concepção newtoniana, Deus criou as
partículas materiais, as forças entre elas, e as leis fundamentais do
movimento. Todo o Universo foi posto em movimento desse modo e continuou
funcionando, desde então, como uma máquina, governado por leis imutáveis,
estabelecidas por Deus. A concepção mecanicista da natureza está, pois,
intimamente relacionada com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina
cósmica é completamente causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido
uma causa definida e dada origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer
parte do sistema podia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza,
desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse conhecido em todos os seus
detalhes (CAPRA, 1999). Na
esteira da física newtoniana, Locke desenvolveu uma enorme concepção atomística
da sociedade, descrevendo-a em termos de seu componente básico: o ser humano.
Assim, como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos de
seus átomos, ou moléculas, também Locke tentou reduzir os padrões observados
na sociedade a comportamento dos seus indivíduos. Segundo Capra (1999), quando
Locke aplicou sua teoria da natureza humana aos fenômenos sociais, foi guiado
pela crença de que existem leis da natureza que governam a sociedade humana,
leis semelhantes às que governam o universo físico. Tal como os átomos de uma
gás estabelecem um estado de equilíbrio, também os indivíduos humanos se
estabilizariam numa sociedade num “estado de natureza”. Assim, segundo Locke
essas leis naturais incluiriam a liberdade e a igualdade entre todos os indivíduos,
como o direito à propriedade, que representava os frutos do trabalho de cada
um, formando a base de como ficou conhecido o sistema liberal ou liberalismo
econômico. É necessário entender este sistema filosófico e econômico como
uma base para a realização da classe burguesa, que queria angariar o poder político,
para a realização de suas atividades mercantis. Conforme Russell (2001), o
liberalismo, que foi um produto das classes médias em ascensão, em cujas mãos
se desenvolviam o comércio e a industria, opunha-se às arraigadas tradições
de privilégios, tanto da aristocracia como da monarquia. Desta forma, afastando
o poder da aristocracia e das monarquias sobre a política e a economia e
calcado num individuo atomizado, que se realizaria no mercado, cujas bases eram
supostas “leis naturais”, implícitas
na sociedade, que regeriam como uma “mão
invisível” a economia e o bem estar de todos, daí então sua máxima “Laissez
faire,
laissez
passer”,
“deixe fazer, deixe passar”, o
liberalismo caiu como uma luva para a realização da burguesia mercantil. As idéias
de Locke como a do individualismo, direito à propriedade, mercados livres e
governo representativo foram essenciais para o desenvolvimento do liberalismo e,
com ele, agravou-se ainda mais a exploração e expropriação do homem e da
natureza. Neste
sentido, a dessacralização da natureza originada, principalmente, com o
cristianismo, e a ética egocêntrica advinda do sistema filosófico cartesiano,
juntamente com a física social de Locke, baseada no sistema newtoniano, irá
solidificar o terreno onde se desenvolverá, ainda mais, o sistema de produção
capitalista. Desta forma, esta é uma lógica antropocêntrica, legitimadora de
um contrato excludente – homem x homem e todos os homens x natureza. Ela
centrou-se no homem e na potencialização desses valores – tendo como pano de
fundo a autonomia e o poder de um pseudo-sujeito evadido do seu meio ambiente
– originados num escopo individualizado, não integrado, que se mescla a uma
prática de conhecimento objetivo. Em poucas palavras, o homem, principalmente,
a partir do sistema cartesiano, vem construindo sua emancipação às custas da
depleção da natureza e do outro. Portanto, ao se considerar como imagem e
semelhança de Deus, o seu representante na Terra, distinto da natureza, e
possuidor de alma e razão, o homem criou um amplo espaço para subjugar a
natureza: a diferença, a desalmada e o irracional (FERREIRA, 2000).
6. Considerações
finais Através
destas discussões, empreendidas neste trabalho, compreende-se que as origens da
dessacralização da natureza, atribuídas a ênfase na razão e no
cristianismo, têm as suas origens na história, no como o homem conhece e
transforma sua realidade imediata, e influenciam decisivamente as atitudes, idéias
e comportamentos, dos seres humanos no presente. Ou seja, constituem os pilares,
juntamente com o sistema de produção capitalista, da crise ambiental vigente. 7. Referências
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