É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
Início Cadastre-se! Procurar Área de autores Contato Apresentação(4) Normas de Publicação(1) Podcast(1) Dicas e Curiosidades(7) Reflexão(6) Para Sensibilizar(1) Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(15) Entrevistas(1) Culinária(1) Arte e Ambiente(1) Divulgação de Eventos(4) O que fazer para melhorar o meio ambiente(3) Sugestões bibliográficas(3) Educação(1) Você sabia que...(4) Reportagem(3) Educação e temas emergentes(11) Ações e projetos inspiradores(28) O Eco das Vozes(1) Do Linear ao Complexo(1) Notícias(41) Dúvidas(4)   |  Números  
Arte e Ambiente
12/03/2011 (Nº 35) A Educação Ambiental (re)significada na percepção sensível do cotidiano
Link permanente: http://revistaea.org/artigo.php?idartigo=990 
  
A Educação Ambiental (re)significada na percepção sensível do cotidiano

A Educação Ambiental (re)significada na percepção sensível do cotidiano

 

 

Claudia Moraes Silveira Tavares[i]

Cláudia Mariza Mattos Brandão[ii]

 

As artes levam-nos à dimensão estética da existência e – conforme o adágio que diz que a natureza imita a obra de arte – elas nos ensinam a ver o mundo esteticamente. Trata-se, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana.

Edgar Morin

 

A relação sociedade-natureza, pelo viés da educação vinculada ao pensamento cartesiano da Modernidade, se estabelece através de um olhar unicamente racional, muitas vezes negando os sentidos, ou seja, a própria sensibilidade. Sob esse olhar, defende-se o direito da apropriação da natureza externa para servir a interesses próprios.

Acreditamos que uma das tarefas mais instigantes da Educação Ambiental e de todos os processos educativos atualmente, é a de redirecionar o indivíduo para a sua inerente capacidade criativa e dialógica, afastando-o de uma percepção de mundo puramente racional. Ao estruturar o mundo de forma tão rígida e homogênea, o ser humano acabou por afastar-se desse devido à falta de reconhecimento, ao estranhamento que o mesmo veio a provocar-lhe. No contexto desta reflexão é que percebemos a necessidade de o sujeito reencontrar a si mesmo, a fim de encontrar-se com o mundo. Sem o conhecimento de sua natureza criadora, afetiva, simbólica, instintiva, o ser humano torna-se impossibilitado de entender o movimento do mundo no qual deveria sentir-se inserido.

Entendemos ser primordial, frente à dimensão educacional estabelecida, dialogarmos sobre os valores éticos que, por sua vez, implicam nos estéticos, na forma como nos relacionamos com o mundo através dos sentidos, antes mesmo de qualquer ação educativa. Esses valores colaboram para o desvelamento de posturas submissas, reprodutoras de discursos/fazeres sem uma observação mais apurada, sem uma reflexão crítica que favoreça mudanças na formação dos sujeitos contemporâneos. Esses valores podem ser construídos a partir de um olhar mais justo para com as relações socioculturais, favorecendo outras posturas frente ao meio ambiente.

Cresce a cada dia o número de teóricos que defendem a necessidade de investirmos na reconstrução das próprias referências culturais (imagens em todos os seus sentidos e formas que subjetivamente nos conduzem no dia-a-dia) como forma de (re)estabelecermos o ciclo da vida no planeta. Michel Maffesoli (2003), Edgar Morin (2002) e Fernando Hernández (2007) revelam a preocupação com as relações estéticas da vida cotidiana como reflexos dos valores sociais de cada sujeito e vice-versa.

Sabemos o quanto o modelo econômico vigente afeta diretamente a maneira como os sujeitos lidam com a realidade, com o cotidiano da vida e das relações interpessoais, e mais especificamente, com as relações frente ao meio natural. Hábitos são incorporados e naturalizados. Assim como as árvores são constantemente enfeitadas com as sobras e os excessos de sociedades cada vez mais consumistas (Figura 1), desconsideradas e desrespeitadas por relações objetais instituídas, ignoramos frequentemente a teia da vida (FRITJOF, 2001). 

 

 

Cópia de Figura 01

Figura 1: Claudia Tavares

Fotografia digital, Cassino (Rio Grande, RS), 2008.

 

 

As imagens se apresentam como algo que precisa ser entendido, o ver, na contemporaneidade foi superado pelo perceber/interpretar/compreender. Trata-se do “alfabetismo visual”, como defende Hernández (2007), no entendimento de que somos influenciados muito mais pelo mundo imagético que nos rodeia, pelas subjetividades despertas e também pelas possibilidades de interlocução do conhecimento do que pelas leituras ou pelo o que ouvimos. É de extrema relevância discutir sobre as representações visuais individuais e coletivas, levando em consideração a produção de subjetividades pelo viés “controlador” de gerações consumistas e egocêntricas, que se encontram interligadas às demais práticas culturais de socialização. E ainda, as representações visuais, quando (re)significadas, nos ensinam o olhar para si – numa construção/transformação de representações de si e sobre o mundo.

É visível que a EA, a Educação como um todo, não encontra possibilidades de desenvolvimento na perspectiva da ética antropocêntrica. Para rompermos com a visão utilitarista, necessitamos de idéias e atitudes em prol de valores que estimulem o surgimento de novas sensibilidades e possibilitem outras racionalidades complementares. Entendemos que a postura ética de responsabilidade com as ações exercidas para/no presente e futuro, decorrem de uma percepção estética ao entender o Outro como parte de nós, numa relação de alteridade existencial. Ao compreendermos as interrelações entre o ser humano e o meio cultural, social e natural, é possível percebemos as interdependências existentes entre esses aspectos e a nossa corresponsabilidade nas realidades socioambientais.

Ao longo dos séculos, o olhar cartesiano deixou suas marcas nas relações entre o ser humano e o meio ambiente (Figura 2). Ainda hoje, nos tempos da Pós-Modernidade, esse olhar encontra-se projetado em formas estereotipadas de ver o mundo. Por que não reconhecer a rua da própria casa como uma extensão do pátio e de nós mesmos e, dessa forma, propagar para toda uma dimensão espacial os cuidados que dedicamos aos nossos lares?

 

 

D:\Cláudia\Revista EA\Imagem 044.jpg

Figura 02: Claudia Brandão

Fotografia digital, Cassino (Rio Grande, RS), 2011.

 

 

Esse olhar estereotipado atinge em grande escala as situações vigentes de calamidade social; trata-se de uma falta de pertencimento ao planeta Terra, sustentada pelo pensamento dicotômico de homem x natureza.  Com a infinidade de imagens de diferentes procedências que pontuam nosso cotidiano, faz-se necessário um reaprender a olhar que possibilite ver o mundo de forma a admirar-se, a espantar-se, de forma a percebê-lo de modo sensível. Falamos de um olhar atento no sentido cuidadoso da palavra, com sentimentos voltados para o invisível por detrás da visibilidade ofuscante que se apresenta a nós.

O campo perceptivo do olhar nos afortuna com sua essência investigativa. Quando sensível e crítico nos proporciona o espanto da descoberta de outro mundo circundante, camuflado muitas vezes sob o benefício de olhares cansados e reprodutores de visões calcadas em “verdades absolutas”. Compreendemos então que não basta olhar; é preciso olhar com cautela, com paciência e vontade de desenvolver sensações visuais únicas, ao chegar à essência das coisas, ao olhá-las com intensidade, criticidade e reflexão – um olhar que amplie as possibilidades de significados.

(Re)significando o ambiente, ou melhor, a visão sobre o mesmo, numa perspectiva cuidadosa com o Outro – seja ele humano ou natural – direcionamos as práticas em EA no sentido de reorientar valores ético-estéticos. São valores que implicam nos modos de percepção e de recepção da realidade incorporados no processo histórico/atual, muitas vezes sem uma postura reflexiva a respeito, isto é, adotando maneiras de viver individual e coletivamente padronizadas.

Cotidianamente presenciamos a força e o potencial estético de algumas produções sem pretensões artísticas. São produções que não se identificam com a instituição museu, preocupam-se mais com a potência expressiva das formas, visando à transformação dos olhares. Buscam acima de tudo problematizar pensamentos acatados perante o autoritarismo político, social e cultural, muitas vezes camuflado de democrático.

 

 

Cópia de Figura 02

Figura 03: Claudia Tavares

Fotografia digital, prédio da Faculdade de Educação da UFRGS (Porto Alegre, RS), 2008.

 

 

Na fotografia acima reproduzida, podemos detectar sentidos de reflexão sobre as condições humanas e as relações ambientais atuais. Tais “aparições” ficam muitas vezes “esquecidas” frente aos olhares anestesiados pelo excesso de imagens que compõem os cenários das cidades contemporâneas. O olhar sensível é fundamental para a percepção de manifestações visuais potencialmente estéticas como esta (Figura 03), permitindo o contínuo despertar de uma percepção ambiental crítica, humanizada e justa.

Estamos convictas de que, a partir de uma visão de mundo que privilegie a complexidade e a sensibilidade, o ser humano é capaz de compreender as interrelações e interdependências do todo com as partes e vice-versa. Os valores ético-estéticos complementam-se e potencializam a capacidade perceptiva e reflexiva dos sujeitos, colaborando para o desenvolvimento de uma razão sensível que responde às ansiedades de uma Educação Ambiental crítica e transformadora.

No entanto, não podemos esquecer que o etnocentrismo da classe dominante é reforçado pela carência de percepção, pela construção e sustentação da diferença cultural, e, também, pelo modo com que essa diferença ainda é trabalhada por muitos programas de EA no mundo inteiro, como bem destaca Michèle Sato (2002, p.2):

 

... na tessitura desta diversidade, cremos que o maior desafio da EA se ajusta na busca da alteridade - no respeito aos diferentes. É preciso desejar a transformação social através da participação de idéias plurais contidas na essência reflexiva para uma Terra com mais responsabilidade ecológica. Se for realmente verdade que desejamos um mundo melhor, com desejos arrepiando peles, gestos, falas e atitudes despertando paixões e até permitir deixar arriscar os fôlegos suspensos, também é igualmente verdade que em nós repousa o maior trabalho. Somos nós que temos a árdua tarefa de realizar, inescrupulosamente, nossos sonhos e fantasias.

 

Acreditamos que o processo educativo deva contemplar o sujeito em sua complexidade, enfatizando o aprendizado através de suas vivências por meio dos sentidos e das percepções do próprio corpo. Quando ao indivíduo é possibilitada uma interação ampla/aberta com as questões que devem ser apreendidas, não se está apenas projetando uma determinada realidade, fruto de um contato parcial de vivências, está-se produzindo conhecimento, pois o sujeito estará atento às suas percepções, sensível aos sinais de seu próprio corpo em interação com os ambientes externos, assim como com suas idéias e imagens internas.

A EA, ao aspirar por uma compreensão dos sujeitos sobre as questões de ação responsável no mundo, sobre o fato de que a participação humana encontra-se num contexto interligado entre o passado, o presente e o futuro, busca o vivencial como tendência pedagógica em suas ações/intervenções. Dentre seus compromissos, está a atenção às necessidades da natureza humana, estimulando sensibilidades, afetividades, capacidades de imaginação e de criação, possibilitando, assim, o despertar para a essência ética do ser humano. O viés da Estética, a educação do sensível, vai ao encontro dessas necessidades como um recurso simbólico que se constitui numa ferramenta de extrema importância para os processos educativos. Pois o artefato cultural, as imagens do cotidiano (Figura 4), por exemplo, necessitam de uma proposta de transformação ético-estética na formação do olhar, de uma experiência estética sensível, especialmente da visão, emancipada e crítica. A Ética e a Estética complementam-se e possibilitam a capacidade de reflexão, entendida como uma forma de racionalidade no discurso contemporâneo, no qual a sensibilidade atua sobre nós a todo instante.

 

D:\Cláudia\Revista EA\Imagem 830.jpg

Figura 04: Claudia Brandão

Fotografia digital, Cassino (Rio Grande, RS), 2011.

 

 

Em hipótese alguma pretendemos esgotar o assunto com este texto. A proposta é fomentar uma discussão/reflexão sobre as inúmeras instâncias orientadoras de valores ético-estéticos e de práticas educativas voltadas para uma perspectiva coerente com as condições da realidade vigente. A Educação, por meio da sensibilização, da informação contextualizada e da ação reflexiva/crítica, para a compreensão dos principais problemas do mundo contemporâneo, contribui para a qualificação ética e estética dos sujeitos, capacitando-os para atuações sociais responsáveis, coerentes com a perspectiva de melhorar-se a vida em sua amplitude. O que defendemos é a necessidade de uma educação conectada com os sentidos, com as concepções individuais e coletivas vivenciadas, possibilitando, assim, a transformação de comportamentos, o desenvolvimento de novos olhares, de novas maneiras de viver e de criar a própria condição de vida.

 

 

REFERÊNCIAS

 

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 6ª ed. São Paulo: Ed. Pensamento-Cultrix, 2001.

HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: transformando fragmentos em nova narrativa educacional; revisão técnica: Jussara Hoffmann e Susana Rangel Vieira da Cunha; trad. Ana Duarte. Porto Alegre: Mediação, 2007.

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002.

SATO, Michele. Debatendo desafios da educação ambiental. In: I Congresso de Educação Ambiental Pró Mar de Dentro. Rio Grande; Mestrado em Educação Ambiental, FURG & Pró Mar de Dentro, 17-21/Maio/2001.

 



[i] Arte/Educadora, pesquisadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq. claudiamoraes81@gmail.com.br

[ii] Professora assistente do Centro de Artes e Design, Universidade Federal de Pelotas, coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq. attos@vetorial.net

Ilustrações: Silvana Santos