É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Reportagem
15/12/2023 (Nº 85) CULTURA OCEÂNICA NAS ESCOLAS PROPAGA CONHECIMENTO DESDE A INFÂNCIA
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REPORTAGEM

CULTURA OCEÂNICA NAS ESCOLAS PROPAGA CONHECIMENTO DESDE A INFÂNCIA

Leis municipais e projetos pelo Brasil estão promovendo o ensino sobre oceano dentro do currículo escolar no ensino fundamental

Reportagem por Alice Martins Morais
Fotos e vídeos por Matheus Melo

6 de dezembro de 2023

Forma1

Eu pensava que o mar era só para gente se divertir, não sabia que o oceano era tão importante para nossa vida”, é o que conta Sophia Spaolonzi, 10 anos, estudante do 5º ano do Ensino Fundamental da rede municipal de Santos, litoral de São Paulo. Mesmo morando toda sua vida de frente para a praia, Sophia só refletiu sobre o impacto desse ecossistema quando sua escola passou a incorporar a cultura oceânica no currículo.

Santos foi o primeiro município do mundo a estabelecer a cultura oceânica como política pública no currículo escolar, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A Lei Municipal nº 3.935 entrou em vigor no ano letivo de 2022 e ficou conhecida como “Currículo Azul”. Apesar de não conter a palavra “obrigatório”, o texto determina que todas as escolas da rede municipal de ensino devem promover a cultura oceânica de forma transversal, desde a educação infantil até o ensino fundamental e educação de jovens e adultos. Trabalhar “transversalmente”, basicamente, significa não se restringir a uma disciplina ou componente curricular, mas que esse assunto faça parte do cotidiano da escola. Dentre inúmeros exemplos, em uma aula de História, pode-se enfatizar o papel do oceano na globalização e na colonização europeia. Em Português, podem ser lidos textos sobre o ecossistema marinho.

Segundo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estuário de Santos é um dos locais mais contaminados por microplásticos de todo o planeta. A pesquisa comparou dados internacionais, de mais de cem estudos de 40 países, com amostras de ostras e mexilhões coletados em três regiões da cidade litorânea paulista em julho de 2021.

Mutirões de limpeza em Santos envolvem a comunidade para combater o problema do lixo nas praias. Fotos: Matheus Melo

O lixo é um dos grandes desafios para o município, assim como para o contexto mundial. “Existem múltiplas ameaças em jogo. Além dos microplásticos que estão sendo carreados pelos rios, tem a questão da pesca predatória, o uso abusivo dos recursos que o mar nos dá, questões ligadas à acidificação do oceano, dentre outros”, explica Fabio Eon, coordenador de Ciências Humanas e Sociais e Ciências Naturais da UNESCO no Brasil.

De acordo com ele, é indispensável estimular o maior conhecimento sobre o oceano, desde o ensino básico até as pesquisas nas universidades. “O oceano cobre 70% da superfície do planeta e é a nossa principal fonte de oxigênio, mas ainda conhecemos muito pouco. Apenas 5% de todo o oceano é mapeado pela pesquisa científica”, aponta.

A cada duas respirações, uma depende do oceano

Para Eon, a cultura oceânica nas escolas é fundamental para o Brasil avançar nos compromissos da Década do Oceano, declarada pelas Nações Unidas em 2017 e que está sendo realizada oficialmente de 2021 a 2030, quando os países devem dar destaque ao assunto. “A escola é o primeiro local em que se socializa. Aprender esse conceito logo cedo pode fazer dessa criança um adulto mais consciente, correto e que entenda a noção de educação para a cidadania global, capaz de compreender que as mudanças climáticas nos afetam como humanidade, para a sobrevivência da nossa própria espécie”, explana.

O ensino transversal da cultura oceânica ajuda o país a progredir na Agenda 2030, que estipula os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que todas as nações signatárias devem atingir para “proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”, conforme é estipulado pela Nações Unidas (ONU). “Eles são importantes porque impõem uma meta atingível e um desses é sobre o mar, o ODS 14, sobre Vida Marinha”, ressalta Eon.

Em Santos (SP), projeto “Embaixadores do Século XXI” ensina a cultura oceânica com música, leitura e atividades sobre reciclagem. Foto: Matheus Melo

Crianças podem ser “embaixadoras” da sustentabilidade

A legislação de Santos faz parte de um conjunto de ações que o município vem executando em prol da educação ambiental, como projetos nas escolas que incluem compostagem, coleta de óleo e de resíduos para reciclagem. A Unidade Municipal de Educação João Papa Sobrinho é destaque nesse sentido, porque criou, ainda em 2020, uma iniciativa focada em cultura oceânica, o Embaixadores do Século XXI,  que hoje reúne 29 estudantes do 4º e 5º anos do Fundamental.  

Sophia Spaolonzi relata que conseguiu levar a mudança de comportamento para dentro de casa. “Minha mãe tinha um comércio na época que entrei para o projeto e que gerava muito lixo. Agora, esse resíduo está sendo levado até a escola para destinar à reciclagem”, conta. Para além dos novos conhecimentos, ela destaca que um dos maiores pontos positivos foi trabalhar em equipe. “É algo que vou levar para a vida”, declara. No Embaixadores do Século XXI, são os próprios alunos que desenvolvem ideias de campanhas, entram em sala de aula para apresentar as ações e mobilizam colegas e responsáveis para participarem das atividades, como levar esponja usada para destinar à reciclagem.

Na escola, todas as disciplinas abraçaram a cultura oceânica. “Na capoeira, a professora abordou a conexão do oceano com a vinda dos africanos para o Brasil. Na Cozinha Experimental, foi feita a reflexão de qual tipo de alimento que o mar nos oferece, como o atum. Na Horta, as crianças começaram a bucha vegetal, substituta sustentável da esponja. Cada um trabalhou dentro do seu espaço”, ressalta, orgulhoso, o inspetor Renato Rodrigues, coordenador e idealizador do Embaixadores do Século XXI.

Confira, no vídeo, mais sobre o projeto e o Currículo Azul de Santos:

Pelo menos 16 municípios no Brasil já possuem legislação sobre cultura oceânica

Com a legislação do Currículo Azul, agora todas as demais escolas do município precisam entrar nessa onda. “Não é só mais uma tarefa para os professores fazerem pontualmente, precisa ser transversal, estar presente em todas as disciplinas, durante todo o ano letivo”, ressalta o secretário de Meio Ambiente e autor da lei, Marcos Libório. De acordo com a Prefeitura, todo o corpo docente das 86 escolas municipais, que atendem a 27 mil alunos, já passou por uma formação feita pela Secretaria de Educação.

Depois da lei pioneira, surgiram normas semelhantes em outros municípios e estados. Hoje, pelo menos outras 15 cidades discutem ou já aprovaram legislações de incentivo à cultura oceânica nas escolas, segundo o Maré de Ciência, programa de extensão da Unifesp, dedicado ao tema.

Veja no mapa quais são:

Cultura oceânica ainda é pouco explorada nos currículos escolares

No contexto federal, o Brasil ainda trata com timidez a cultura oceânica. É o que constatou a pesquisadora Carmen Pazoto. Junto ao grupo do Laboratório de Genética Marinha e Evolução da Universidade Federal Fluminense (LGME-UFF), ela observou os documentos que norteiam o ensino fundamental e médio no Brasil: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Referenciais Curriculares Estaduais. Como resultado, notaram que, de um total de 640 mil palavras, apenas 19 eram relacionadas com o oceano e ambientes marinhos. “Já tinhamos observado que, naquele momento, havia essa lacuna no cenário global. No currículo da Inglaterra, só se citava três vezes o oceano. Na Austrália, não tinha nenhuma menção”, informa Pazoto, que é bióloga marinha e também professora do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.

O levantamento foi feito de 2019 a 2021. Posteriormente, Pazoto fez uma pesquisa entrevistando professores. “A principal barreira citada é justamente a ausência do tema no currículo de forma explícita. E tem a cobrança de abordar o conteúdo que cai nas provas como o Enem, que não contemplam a cultura oceânica”, revela. “Além disso, os livros didáticos focam muito em ambientes terrestres e deixam o oceano em segundo plano”, complementa.

A pesquisadora acredita que políticas públicas devem enfatizar a necessidade de ensinar o tema, como o faz a legislação de Santos, e que seria interessante que a BNCC e PCN incluíssem essa perspectiva nitidamente. “O currículo nacional demora muito tempo pra ser mudado. Por isso, o meio que temos de implementar a cultura oceânica hoje é pelo projeto político pedagógico nas escolas”, comenta Carmen Pazoto. 

No entanto, a assessoria do Ministério da Educação (MEC) informou à reportagem do ((o))eco que o tema não está em discussão interna no momento. Fabio Eon, da UNESCO, explica que existe um Plano Nacional e um comitê de Implementação da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, mas é liderado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). “Sei que o MEC vai ter um papel importante na implementação da Década, mas é um tema relativamente novo. Como UNESCO, temos acompanhado uma troca de conversas muito intensa entre a nossa sede e o MEC para ver como esse ministério pode se engajar mais nessa discussão”, declara. O professor Ronaldo Christofoletti informou que o Maré de Ciência também está em diálogo com a pasta para estimular a incorporação do tema na BNCC.