Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE AS ÁGUAS
Cláudia
Mariza Mattos Brandãoi Resumo: O texto aborda a situação climática enfrentada pelo povo gaúcho atualmente, e suas reverberações na vida cotidiana e no imaginário social. A discussão se dá a partir da reflexão sobre o simbólico manifestado através de seres não humanos que chegam ao espaço urbano trazidos pelas águas, assim como as cobras. A análise se ampara em artistas contemporâneos que problematizam características do Antropoceno através de suas obras.
Maio de 2024, um mês emblemático para a história do Rio Grande do Sul. No norte do estado, chuvas torrenciais provocaram enchentes e deslizamentos, e aumentaram o volume da bacia do rio Guaíba. O rio transbordou e alagou a capital gaúcha Porto Alegre e as cidades vizinhas. Ao longo do mês, seguindo o seu trajeto até o Oceano Atlântico, as águas e os detritos elevaram o nível da Laguna dos Patos. São Lourenço do Sul, Pelotas e Rio Grande também foram (e estão) seriamente afetadas. Esta é uma breve síntese da tragédia que se abateu sobre o povo gaúcho. Alguns a classificam como calamidade climática, outros, assim como eu, uma calamidade também política. A “crônica de uma morte anunciada”, diria, visto os sucessivos relatórios emitidos ao longo dos últimos anos. Os documentos avisam sobre as possibilidades reais de invasão das águas do Guaíba e suas prováveis consequências. E eles foram ignorados pelas autoridades responsáveis. Nesta coluna não pretendo esmiuçar a complexa teia que envolve a origem do evento natural e suas repercussões para a espécie humana. Busco problematizar o modo como o imaginário das pessoas é impactado pelos fatos em si e por outras vidas que chegam com as enchentes, em particular as cobras. Antes da intervenção humana colonialista, dos aterros, prédios, ruas e asfaltamento das vias, os rios alteravam seu volume ao sabor das chuvas. Os povos originários sabiam disso e buscavam locais mais altos para habitar. Os colonizadores europeus, por sua vez, estavam mais interessados na expropriação das riquezas minerais. Eles transformaram o relevo, ocuparam o território, sempre de acordo com suas prioridades e “necessidades”. E isso foi (e continua sendo) motivo para outras agressões à vida humana e à não humana que aqui habita(va): A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. (Krenak, 2019, p.11). Depois de ter mais de 90% dos municípios sul rio-grandenses atingidos pelas enchentes e deslizamentos, me parece que o nosso “jeito (gaúcho) de estar na Terra” não é o correto. A cosmovisão antropocêntrica, herdada dos colonizadores, coloca a espécie humana como centro do Universo, e suas necessidades como a medida ética de suas ações. Isso faz com que muitas pessoas se surpreendam (algumas se apavorem), não só com o avanço das águas, mas também com os seres não humanos que passam a compartilhar os espaços conosco. Como argumenta Ailton Krenak (id., p. 58-59), “O Antropoceno (conceito que se refere à atual era geológica do planeta) tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano (...) Essa configuração mental é mais do que uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo”. Para seres humanos que se consideram “senhores/as” do planeta, tudo parece “fora do lugar”. Porém, se analisarmos sob o ponto de vista da natureza, é possível considerar o evento climático como uma tentativa de retorno às origens, de reequilibrar a teia da vida. Com a invasão das águas, um jacaré foi visto nas ruas de um bairro de Porto Alegre. Piranhas também foram identificadas. Em Rio Grande, cidade onde resido, além dos ratos, habitantes comuns da cidade, nós vimos peixes e lontras nadando na rua. E num piscar de olhos, o que era asfalto se transformou em mar.
Figura 1 Dentre tantos animais “diferentes”, que passaram a circular nos “nossos” lugares, eu decidi focar esta reflexão nas cobras e no imaginário social atrelado a elas. Isso, pois no último mês foram muitas as postagens nos canais @aovivo_rg e @conexão_rg² sobre cobras encontradas na areia da praia (Figura 1) ou em casas (Figura 2). “Que absurdo! Cobras são perigosas e precisam ser mortas”, argumentam alguns nos comentários. |