É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Arte e Ambiente
04/06/2011 (Nº 36) A ESTÉTICA DA (DES)PERSONALIZAÇÃO NAS IMAGENS DE CINDY SHERMAN
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A ESTÉTICA DA (DES)PERSONALIZAÇÃO NAS IMAGENS DE CINDY SHERMAN

A ESTÉTICA DA (DES)PERSONALIZAÇÃO NAS IMAGENS DE CINDY SHERMAN

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Tatiana Brandão de Araujo[ii]

 

 

 

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar as produções fotográficas da artista estadunidense Cindy Sherman, da série A Play of Selves, produzida na década de 1970. A obra, uma narrativa imagética, apresenta a história de uma personagem e seus embates identitários com referência à corporalidade frente aos ideais socialmente moldados, e à forma como os mesmos afetam as subjetividades.

 

O mundo por nós compartilhado é essencialmente imagético e o advento da fotografia foi marcante para a constituição da Era da Visualidade. Esse pensamento ancora o entendimento da importância da discussão aqui proposta, acerca das obras produzidas por Sherman, já que elas evocam sentidos críticos conectados ao pensamento feminista, relacionando os personagens apresentados à desconstrução das identidades sexualmente hierarquizadas. Em A Play of Selves a artista torna visíveis os seus próprios questionamentos, instigando o olhar do espectador, que é convidado a compartilhar de seus mundos recriados, e preservados no tempo do fotográfico.

A análise aqui proposta tem por base os estudos de Jacques Aumont (1993), no entendimento de que a imagem visual tem origem na esfera do simbólico, não relacionado obrigatoriamente a uma iconografia, mas, sim, vinculado ao imaginário, individual e/ou social. A intenção reside em demonstrar como as imagens artísticas potencializam olhares críticos e inovadores sobre o tema, sendo fundamentais para o entendimento das mentalidades que norteiam as posturas sociais na “Sociedade do Espetáculo”, problematizada por Guy Debord (1997) em 1968. Nela a atividade visual é preponderante exigindo a aquisição de competências e aptidões cognitivas específicas, que propiciem o desenvolvimento de faculdades intelectuais diferentes e novos modos de perceber o mundo ao redor.

Se pensarmos o espetáculo como um instrumento de unificação ligado a uma hierarquia - uma relação de poder na tentativa de isolar o diferente - é possível conectar essa discussão com as desenvolvidas por algumas feministas e artistas que se propuseram a pensar as imagens e o espetáculo, e de que forma ele influencia as subjetividades. Para isso é relevante refletir sobre como a produção artística pode legitimar esse espetáculo ou ir numa direção contrária, propondo novas e diferentes formas de perceber a realidade.

            Em A Play of Selves, Sherman (2007) questiona os padrões de comportamento impostos por essa sociedade, alertando para os perigos da homogeneização. Analisar as suas obras desconsiderando o contexto social de produção, restringindo a análise apenas às questões formais em si, é prejudicial, pois anulamos o potencial político da discussão imagética. Não se trata aqui de enquadrá-la em determinado grupo – já que não se autodenomina uma artista feminista – mas sim pensá-la em seu contexto e de que forma contribuiu com as discussões da época.

Com o desenvolvimento da fotografia e sua intrínseca reprodutibilidade (FABRIS, 2004) socializou-se a representação do sujeito. O retrato fotográfico no século XIX era fruto de idealizações e por meio da pose se construíam as máscaras sociais através das quais os retratados poderiam ser quem quisessem:

 

Tanto no retrato fotográfico quanto naquele pictórico o que importa não é representar a individualidade de cada cliente, mas, antes conformar o arquétipo de uma classe ou de um grupo, valorizados e legitimados pelos recursos simbólicos que inscrevem na superfície da imagem. (FABRIS, 2004, p. 31)

 

            Como afirmou Fabris (2004), o retrato do período do desenvolvimento da fotografia, foi marcado pela desindividualização dos modelos – tendência que não se perdeu hoje -, e por isso existe um perigo em analisarmos as imagens somente através do que tornam visíveis. Já que o fundamental é pensarmos que as mesmas, tão caras à sociedade espetacular, mostram apenas um ponto de vista sobre o objeto retratado. De acordo com esse pensamento é possível entender a função social que o retrato exercia na sociedade oitocentista, uma questão importante para a compreensão das discussões propostas por Sherman.

            A artista utiliza a técnica do retrato para problematizar a própria ideia de realidade do que foi retratado. Ela demonstra compreender o poder das imagens para a homogeneização do pensamento, influenciando e formando as subjetividades, na consideração de que a pose é uma atitude teatral. Nas obras de Sherman, ela utiliza esses mecanismos para mostrar a fragilidade das representações, satirizando a idealização, e tornando visível para o espectador que os modelos sociais são máscaras construídas culturalmente: 

 

(...) a obra de Sherman seria apenas a estetização mais bem acabada deste tempo histórico de reconfiguração plástica de si, tempo capaz de assumir a lógica da fragilização das imagens do corpo como princípio de disseminação, como setor de crítica das ilusões da identidade. (SAFATLE, 2008, n.p)

 

Essa reconfiguração constante de si, sobre a qual discute Safatle, é outro ponto a ser explorado na análise de A Play of Selves. Embora seja uma produção considerada pela artista como autobiográfica, ela demonstra os dois lados dessas reconfigurações, aqueles que optam pela permanência e os que insistem em manter uma posição própria frente ao espetáculo.

A relação da imagem da mulher com os meios de comunicação de massa é o foco das discussões propostas por Cindy Sherman. Em Untitled Film Stills ela enfatiza a questão, porém em trabalhos anteriores, como em A Play of Selves, objeto deste estudo, estes questionamentos já eram visíveis, embora de forma mais introspectiva. Através deles a artista coloca em xeque a identidade como fator natural, nos mostrando a influência da sociedade espetacular na construção das subjetividades, principalmente para pensarmos em nossa convivência diária com as máscaras sociais.

Em A Play of Selves, a partir da história de uma personagem, a artista desenvolve os embates referentes à corporalidade e seus ideais socialmente moldados, o que possibilita uma discussão de como os mesmos afetam as subjetividades. No mundo imagético em que vivemos, os mesmos teriam uma centralidade fundamental na formação das identidades (ADELMAN; RUGGI, 2007), e ao afirmar certo/errado, causam a exclusão “do resto” enquanto desviantes do padrão.

Os personagens apresentados em A Play of Selves levantam questões importantes acerca dos estereótipos femininos e padrões de beleza idealizados, sendo que a personagem principal é confrontada com suas identidades, caracterizando a ideia de pluralidade.

As incessantes modificações com o objetivo de agradar o outro podem levar a uma crise identitária, e Sherman tratou a sua personagem principal exatamente sob esse prisma, o da confusão que se sucede com os diferentes “eus” presentes em um único sujeito. São Figuras/Corpos que embora indesejados pela personagem, surgem para agradar o outro.          

Para entender as questões que cercam A Play of Selves é importante     conhecer o seu processo de criação, que iniciou com o desenho do storyboard (Figura 1) no qual constam as descrições dos personagens e suas respectivas posições na narrativa. Após a artista elaborou inúmeras fotos nas quais interpreta diferentes personagens. De posse das imagens, Sherman recortou e montou as cenas que compõem a grande narrativa dividida em cinco atos.

 

Figuras 1: Cindy Sherman

Storyboard

 

Mesmo para um espectador desavisado, o caráter autobiográfico da obra fica claro. É possível perceber a partir dos personagens e da crônica visual construída, a crise identitária que a própria artista vivia no momento. Se pensarmos que as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por inúmeros movimentos sociais que reivindicavam um maior espaço público para a livre expressão, A Play of Selves pode ser considerado um desabafo:

 

O sucesso de seus primeiros trabalhos, sua aceitação pelo centro (mercado de arte e instituições), em um momento em que muitos artistas estavam defendendo uma política das margens, ajudou a obscurecer que o trabalho tem um interesse intrínseco por estética feminina e que as ideias levantadas pelo trabalho não puderam ser formuladas sem uma história anterior do feminismo e a teorização feminista sobre o corpo e a representação.  (MULVEY, 2006, p. 66) (tradução nossa)

 

Embora Sherman não se utilize da linguagem verbal, a partir da construção de seus cenários e personagens é fácil identificar os seus questionamentos às indagações feministas da época. “Uma política do corpo levou logicamente para uma política da representação do corpo” (MULVEY, 2006, p. 66) e foi exatamente através de seu corpo e das modificações/máscaras que se impôs, que a artista se manifesta politicamente. Além do artifício da máscara, a maquiagem forte é um dos elementos utilizados para apresentar o caráter de artificialidade dos padrões, “porque Sherman usa os cosméticos literalmente como uma máscara, ela torna visível o feminino como tal” (MULVEY, 2006, p. 70).

            Outro ponto a ser destacado é que na medida em que assume o papel de sujeito e objeto nas imagens, ela desconstrói não somente uma suposta essência “feminina” enquanto condição natural, mas demonstra que as mulheres também podem ser donas de suas representações, com direito à livre expressão do pensamento. “Sherman, a modelo, veste-se no personagem enquanto Sherman, a artista, revela a máscara de seu personagem”. (MULVEY, 2006, p. 68), ou seja, ao mesmo tempo em que assume o papel de voyer, assume a posição de objeto representado, através da teatralidade de suas imagens apresenta a artificialidade das relações binárias e hierárquicas.

             Em A Play of Selves, a artista também satiriza os chamados role models que a sociedade estadunidense impunham tanto para mulheres como para homens. Só que neste caso, a artista demonstra através de sua narrativa imagética os perigos da imposição de uma identidade fixa, e de como esta se constitui numa grande máscara que esconde as relações de poder que marcaram a sociedade da época, e que ainda marcam atualmente.

Figuras 2 e 3: Cindy Sherman

A Play of Selves – Act 2 - 1  e  A Play of Selves – Act 1 - 2, 1976.

 

Para a análise proposta selecionamos alguns dos personagens representativos das principais idéias que permeiam a obra, sendo também relevantes para a argumentação proposta. São eles: A Broken Womam (Figura 2), identificada por Sherman como a personagem principal - apresentada como uma pessoa triste e confusa ao se deparar com a multiplicidade de si mesma, The Actual Main Character, a mulher como ela realmente é; e a figura do Narrador (Figura 3), caracterizada como masculina.

Partindo da declaração da própria artista sobre o caráter autobiográfico da obra, identificamos o personagem A Broken Woman como sendo a Cindy Sherman adolescente, tentando se encaixar nos modelos impostos pela indústria cultural. Uma simbolização que engloba preocupações comuns a muitas mulheres suas contemporâneas.

A crise identitária marcou as décadas de 1960 e 1970 através principalmente dos movimentos sociais, mas isso não é algo que pertença ao passado. A busca pela segurança confrontada pela vontade de liberdade se acentuou com o poder das imagens sobre as subjetividades nas sociedades contemporâneas. Segundo Joan Brumberg (1997) a geração atual mais do que qualquer outra espera ser perfeita. Sem dúvida esta questão relaciona-se ao espetáculo, e nossas relações estão cada vez mais mediadas pelas imagens. Modelos de mulheres e homens são vendidos de maneira mais intensa e efêmera. 

No caso específico dos EUA, é importante contextualizar as discussões do corpo e em que época se tornou o projeto principal das garotas estadunidenses. Brumberg (1997) afirma que antes da Primeira Guerra Mundial o corpo não era o projeto principal das garotas, porém com a força que a indústria cultural conquistou durante o século XX, após década de 1920, havia um esforço pessoal muito forte de querer ser igual aos personagens femininos que apareciam nos filmes e nas revistas. 

Nas décadas de 1920 e 1930 a população estadunidense se vio expuesta a fuerzas de uniformid cultural como jamás las habia habido (COTT, 2000, p.107), momento em que o American Way of Life foi legitimado e vendido pelas novas mídias (cinema e rádio), ganhando força após a Segunda Guerra Mundial. Durante o século XX a mídia direcionou o seu discurso para o público feminino, divulgando inovações que prometiam maior liberdade. Eram as máscaras legitimando valores tradicionais que conduziam ao controle sobre o corpo da mulher.

Após a Segunda Guerra a ideia de que o corpo pudesse ser modificado ficou cada vez mais presente na vida da juventude norte-americana. A comercialização de produtos voltados para a beleza do corpo, da pele, do cabelo se fortaleceu, e o corpo transformou-se em algo a ser consumido, sendo o principal ponto de identificação de cada um (BRUMBERG, 1997).

Neste contexto, que prega normas de certo ou errado, caracterizado pela exclusão, é que devemos refletir sobre A Broken Woman, na consideração de que esses são valores intensamente reproduzidos pela indústria cultural. Ou seja, que influenciam e impactam diretamente as subjetividades, que muitas vezes acabam se constituindo a partir do olhar do outro para sentirem-se seguras(os), na tentativa de se encaixar nos modelos pré-estabelecidos. Não podemos esquecer que somos educados para decodificar e classificar os corpos, e que o surgimento da diferença e da conseqüente exclusão se dá nesse momento (LOURO, 2007).

 

Figura 4: Cindy Sherman

A Play of Selves – act 4 - 11, 1976

 

No contexto social de Sherman as noções de mulher e homem estão envoltas em normas e estas são reiteradas por performances que legitimam valores tradicionais de gênero. A teatralidade, uma das características de suas produções até hoje, problematiza a “contemporaneidade como uma época de simulacros, dominado por imagens e espetáculos” (SIEDLER, 2007, p. 17). Nesse sentido, podemos entender a máscara como símbolo do o olhar do outro, ou, também, a construção do próprio indivíduo para se encaixar em um padrão. No caso específico do personagem citado, se a máscara revela-se como o real, Sherman demonstra a característica ilusória e performativa dos gêneros, na medida em que não existem identidades fixas. 

A teatralidade é um dispositivo estratégico, bastante utilizado na fotografia contemporânea, principalmente após os anos 80, questionando as noções de realidade e ficção (SIEDLER, 2007). No caso de Sherman, isto se aplica à técnica por ela explorada e às suas discussões referentes às identidades. A noção de que a fotografia é também um processo mecânico levaria a uma maior credibilidade da imagem revelada, porém a artista se utiliza disso para provar o quanto as imagens, tanto quanto as dela que são intencionalmente teatralizadas, são produtos de um olhar. 

No retrato o rosto é “o lugar para o qual convergem a própria visão de si e a visão que se deseja oferecer aos outros” (FABRIS, 2004, p. 172), portanto ao utilizar a máscara no personagem The Actual Main Charcter, a artista trabalha com essas duas implicações colocadas por Fabris, salientando, ainda, a sua afirmação de que não podemos nunca identificar as pessoas a partir de uma característica naturalizada.

“Os corpos não são, pois, tão evidentes como usualmente pensamos. Nem as identidades são uma decorrência direta da “evidência” dos corpos” (LOURO, 2007, p. 15). A partir desses dois personagens, Sherman dá visibilidade e discute com profundidade a noção de identidade enquanto plural e na consequência para com as subjetividades das imagens que buscam homogeneizar. Consideramos importante destacar que a categoria sexo é regulatória e produz corpos normativos (BUTLER, 2007), pois as noções binárias que dividem em pólos hierárquicos homens e mulheres, só serão desconstruídas a partir do entendimento da pluralidade, somente quando os marcadores sociais forem eficazmente problematizados. 

O jogo de superfícies e aparências presente na obra de Sherman, não somente em A Play of Selves, marcam suas principais discussões. Abordam como grande problemática “a construção de identidades e o retrato fotográfico usado como meio de “captura” dessas identidades e do vazio que se abre entre o que é (ou deseja ser), e o que se representa (aparência) – entre identidade e a imagem do corpo” (SIEDLER, 2007, p. 29). O artifício da pose é um dos meios pelo qual ela trabalha a questão, na medida em que possibilita a construção de máscaras (FABRIS, 2004).

Mesmo focando a análise da obra nesses três personagens, é necessário considerar a presença dos outros na narrativa imagética. O confronto identitário é o que move a história de uma personagem, sendo que nesta narrativa imagética além de lidar com a imagem que faz de si própria, mais o olhar dos outros sobre ela, esta se confronta com a figura dos ideais.

Na Figura 5 percebe-se a presença das identidades que constroem a personagem principal, mais as figuras do Ideal Man e da Ideal Woman, colocados como figuras criadas pela imaginação dos personagens, alguém que eles desejam ser – Ideal Woman – e alguém que eles desejam ter – Ideal Man. Além de apresentar o ideal como uma figura do imaginário social, ela também questiona o relacionamento heterossexual enquanto norma da sociedade em que se encontra. Na imagem também identificamos a ideia de identidades plurais, demarcada pela presença dos “sub personagens” da personagem principal – The Vanity, The Madness, The Agony e The Desire. Com isso a narrativa enfatiza a possibilidade do sujeito múltiplo e contraditório.

 

Figura 5: Cindy Sherman

A Play of Selves – Act 1 - 1, 1976

 

Na Figura 6 encontramos a figura do Narrador apresentando a The Female Seducer e o The Male Seducer. O interessante desta cena é a posição frontal do Narrador apontando para os dois personagens que são imaginários, questão que dialoga com os modelos criados pela indústria cultural, tendo o homem-narrador o poder sobre essas criações. A relação hierárquica está explícita nesta cena, assim como em toda narrativa, apresentando os velhos binarismos presentes na sociedade. Ela critica o desejo enquanto algo normativo, como se houvesse apenas duas possibilidades a partir de dois modelos em que a base fosse a relação heterossexual.

 

Figura 6: Cindy Sherman

A Play of Selves – Act 2 - 1, 1976

 

Através da figura do Narrador, Sherman interroga a validade do homem como contador das experiências de outros sujeitos que não ele próprio, abrindo a possibilidade para outros tipos de relatos. O próprio fato de ser Sherman a pessoa que se veste de narrador/homem demonstra o questionamento sobre a naturalidade do poder dos homens sobre as mulheres. O fato de a artista ser objeto e sujeito de suas produções fotográficas problematiza a assimilação das identidades como características naturais, já que ela própria assume os dois lugares, afirmando a capacidade das mulheres de representarem, além de questionar quem tem representatividade social, e os pontos de vistas considerados válidos.

No decorrer da narrativa percebemos que a ideia que permeia a obra é demonstrar como ilusório o domínio da fala pública por parte do homem. Percebe-se que sempre em suas aparições o narrador detém a relação de poder sobre os fatos apresentados na imagem. O narrador perderá essa postura apenas no final da narrativa, quando temos uma das identidades da personagem principal, a Madness, debochando/satirizando a cena (Figura 7).

Figura 7: Cindy Sherman

A Play of Selves, 1976

 

Neste ponto, Sherman através da sátira decreta a falsidade da narrativa como posse masculina (ou dos homens) e de certa forma requer a voz para as mulheres.

 

Na pós-modernidade, a paródia se constitui não somente numa possibilidade estética recorrente, mas na forma mais efetiva de crítica, na medida em que implica, paradoxalmente, a identificação e o distanciamento em relação ao objeto ou ao sujeito parodiado (LOURO, 2004, p. 85).

 

Partindo da ideia defendida por Louro podemos considerar A Play of Selves como uma grande paródia das identidades, encarnando uma discussão que ainda se mantem atual.

Problematizando as ideias do seu próprio tempo histórico ela deixa claro que suas imagens são como máscaras, fragilizando as representações de mulheres ou homens, numa demonstração de que os sujeitos são muito mais complexos do que é possível compreender através de uma estrutura binária. Sherman, numa atitude de vanguarda, foi além de algumas noções utilizadas por feministas contemporâneas a ela, como Betty Friedan, por exemplo, que de certa forma legitimava a estrutura binária.

“A construção de gênero também se faz por meio de sua desconstrução” (DE LAURETIS, 1994, p. 209), nesse sentido, a obra em questão problematiza os padrões constantemente legitimados pela mídia. A artista compreende as identidades como algo plural, escapando assim dos discursos que procuram determinar comportamentos e que constroem uma materialidade normativa para os corpos.

Como não são apenas os personagens que constroem a mensagem, é fundamental prestar atenção para o cenário, ou a falta do mesmo. Diferente de outras séries em que a artista retratava a si própria em locações externas ou em cenários montados em estúdio, nesta existe um fundo branco no qual a narrativa se desenvolve. Tal característica nos possibilita relacionar a ausência do cenário como um indicativo de que os estereótipos não são apenas estadunidenses, e que poderiam estar presentes em outros lugares (com suas respectivas particularidades). Cabe ressaltar que essa opção estilística possibilita uma permanente atualização da discussão proposta, sem as restrições de outras produções que são datadas, e com o passar do tempo permanecem somente em função do apelo estético

            Nas obras de Cindy Sherman a identificação do espectador com as imagens é inevitável, mesmo numa obra tão pessoal como A Play of Selves. A ideia da artista é a de provocar o incômodo, pois o espectador reconhece o estereótipo e ao mesmo sabe que ela (a artista) é seu próprio modelo, numa demonstração de rompimento com a realização de obras puramente contemplativas, buscando acima de tudo problematizar, desacomodando os olhares tão acostumados com os padrões internalizados.

            A artista dá visibilidade aos seus próprios questionamentos sobre as construções identitárias acerca das feminilidades e masculinidades, instigando o olhar do espectador, que é convidado a compartilhar de seus mundos recriados, preservados nas imagens fotográficas. Cindy Sherman em suas produções discute as noções estabelecidas acerca dos sujeitos, questionando a noção essencialista referente a homens e mulheres, provinda do sexismo ainda presente em nossa sociedade, cujas construções visuais continuam a interpelar os olhares na Sociedade do Espetáculo.

 

REFERÊNCIAS

 

ADELMAN, Mirian; RUGGI, Lennita. Corpo, Identidade e a Política da Beleza – algumas reflexões teóricas In Gênero em Movimento: novos olhares, muitos lugares. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2007.

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 13-317.

204.

BRUMBERG, Joan. The Body Project: an intimate history of american girls. New York: Random House, 1997, p.1-304.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.5-60.

______________. Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do “sexo” In: LOURO, Guacira (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-172.

COTT, Nancy. Mujer moderna, estilo norteamericano: los años veinte In: DUBY, DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p.1-240.

DE LAURETIS, Teresa. Tecnologia de Gênero In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.206-242.

ERGAS, Yasmine. El subjeto mujer: el feminismo de los años sesenta-ochenta In: FABRIS, Annateresa, Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p.13-204.

LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: ensaios sobre a sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p.7-90.

_______. Pedagogias da sexualidade In: O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.7-34.

MULVEY, Laura. Cosmetics and Abjection: Cindy Sherman 1977-87 In: BURTON, Johanna (org.). Cindy Sherman. Massachusetts Institute of Technology, 2006, p. 65-82.

SAFATLE, Vladimir. O que vem após a imagem de si? Os casos Cindy Sherman e Jeff Koons. Disponível em <http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi108.htm> Acesso em 07/04/2008. 

SIEDLER, Monica. Auto-retratos de Cindy Sherman e teatralidade: um estudo para a composição do movimento e montagem da performance "1A" (Uma). Dissertação de Mestrado, UDESC/SC, 2007, p.12-73.

SHERMAN, Cindy. A Play of Selves. New York: Hatje Cantz, 2007, p. 4-127.

 

 

 



[i] Professora assistente do Centro de Artes e Design, Universidade Federal de Pelotas, coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq. attos@vetorial.net

[ii] Bacharel em História, pesquisadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq.

Ilustrações: Silvana Santos