Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
10/09/2018 (Nº 42) PRÁTICAS DA ARTE/EDUCAÇÃO AMBIENTAL TRADUZIDAS EM VISÕES ESTÉTICAS DA CEGUEIRA.
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PRÁTICAS DA ARTE/EDUCAÇÃO AMBIENTAL TRADUZIDAS EM vISÕES ESTÉTICAS DA CEGUEIRA.

 

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Amanda Ribeiro Corrêa[ii]

 

 

RESUMO: O artigo traz reflexões sobre questões relacionadas a práticas pedagógicas em Artes Visuais, discutindo o uso das novas tecnologias como recursos potentes para a realização de experiências sensoriais e artísticas na escola, resultantes de problematizações acerca das relações do homem contemporâneo com o meio, social e natural.

 

 

            As questões abordadas neste artigo têm como base atividades desenvolvidas no projeto de extensão ARTEIROS DO COTIDIANO, conduzidas por acadêmicos do curso de Artes Visuais - Modalidade Licenciatura (UFPel), com estudantes do ensino fundamental de escolas do município de Pelotas. O projeto prevê que os acadêmicos experenciem os meandros da docência, refletindo sobre a formação do arte/educad@r contemporâneo. Tem também a intenção de ampliar a relação dos escolares com o contexto social da escola, propondo a ressignificação da vivência e do olhar banalizado sobre esse espaço. Dentre as várias ações, neste texto discutiremos uma em especial, pautada no objetivo de proporcionar aos escolares o reconhecimento do espaço/ambiente escolar através da Visão-Cega, instigando a percepção sensorial e motivando a expressão de emoções e sensações, através da criação de poéticas individuais e coletivas em vídeo.

Convivemos num mundo essencialmente tecnológico. Os equipamentos que fornecem acesso às informações e à comunicação mediam a nossa relação com os outros e com o mundo ao redor. Nesse contexto, as novas gerações desenvolvem-se em meio a celulares, mp3, mp4, câmeras digitais, computadores de todos os tamanhos e tantos outros recursos. A velocidade dos acontecimentos e a simultaneidade das informações requerem pessoas aptas a aprender permanentemente, contribuindo para o desenvolvimento de uma geração que tem como atributo muito particular o de ser multitasking (BUCKINGHAM, 2008). Com as novas tecnologias evidencia-se a capacidade da juventude de realizar múltiplas tarefas e desenvolver estratégias, o que caracteriza uma “concentração múltipla”, multitasking. Mesmo assim, na escola muitas vezes são mantidas práticas tradicionais, aumentando a distância entre as metodologias desenvolvidas e o cotidiano dos estudantes.

            Considerando tal realidade, e aceitando a necessidade de posturas mais interativas na escola, procuramos para o desenvolvimento da atividade aqui apresentada a referência de artistas que buscam com as suas produções o desenvolvimento integral das sensibilidades, assim como a mineira Lygia Clark (1920-1988) (Figura 1), por nós escolhida.

 

Figura 1: Lygia Clark

Disponível em: http://www.alcacuz.com.br/blog/?p=4225

 

            No cenário internacional Lygia Clark é considerada uma das principais artistas plásticas brasileira, sendo uma das fundadoras do Grupo Frente, em 1954. A produção artística de Clark é pautada pela opção de transferir o poder da artista para a propositora, ou seja, aquela que proporciona aos parceiros/espectadores sensações e sentimentos advindos da experiência estética da vivência que os seus objetos/obras possibilitam. O seu processo criativo é marcado inicialmente pela produção de objetos dados à contemplação, desenvolvendo-se em trabalhos que exploram a interação entre obra e espectador, até chegar à experiência do sujeito como resultado de práticas de sensibilização.

 

Figura 2: Lygia Clark

Máscaras Sensoriais, 1969.

Disponível em: http://lia-mennabarreto.blogspot.com.br/2011/03/ligia-clark.html

 

            Com suas “Máscaras Sensoriais” (Figura 2) Lygia propõe ao espectador diferentes sensações advindas dos materiais que recheiam as máscaras, assim como, lixa, esponja, etc... E é através da interação espectador/obra que a artista colabora para a ampliação da percepção sensível dos sujeitos, mostrando outras/novas possibilidades de estar no mundo, para além dos apelos da visualidade.

            Inspirados em Lygia Clark e em suas produções sui generis, para uma das ações do ARTEIROS DO COTIDIANO foi desenvolvida a atividade Visão-Cega com base na utilização de câmeras digitais domésticas, para o registro do percurso dos estudantes pela escola, caminhando vendados. Cada estudante tinha uma câmera e filmou o trajeto e seus percalços. O objetivo era o de que eles percebessem, vendados, o que cotidianamente não viam na escola, despertando outros sentidos orientadores. Os estudantes foram separados em dois grupos, que eram ligados por uma corda, fazendo com que conduzissem o trajeto de forma coletiva, mais um desafio à individualidade presente nas relações interpessoais contemporâneas (Figura 3). A proposta possibilitou o reconhecimento do espaço cotidiano em sua complexidade, fazendo emergir de uma realidade conhecida uma série de obstáculos e particularidades que de outro modo não seriam percebidos.

 

Figura 3: Amanda Corrêa

Fotografia digital, 2010

 

            Considerando que muitas das práticas pedagógicas adotadas nas escolas têm por maior característica a simplificação da complexidade do real, percebemos que a nossa proposta proporcionou ao grupo uma experiência ímpar, através da qual, como alguns estudantes declararam, foi possível perceber, por exemplo, que inúmeras árvores existentes no pátio haviam sido cortadas. Ao esbarrar em uma árvore, um participante declarou que havia se esquecido de como era a textura de sua casca. Vemos, portanto, que o exercício de sensibilização perceptiva mostrou ao grupo aspectos de suas vivências cotidianas até então despercebidos ou esquecidos.  

            Além da experiência em si, da sensibilização através da privação da visão, tivemos como produto estético um material em vídeo fora dos padrões usuais da linguagem. Nele, o percurso incerto do grupo, os solavancos, as surpresas e as indecisões emergem como uma cartografia vivencial que em muito difere do contato com o mundo através das janelas virtuais. E a cartografia videográfica resultante se aproxima da proposta de Lygia Clark, que acreditava que a arte deveria estar a serviço da libertação do homem, possibilitando o rompimento das cápsulas individuais em prol de exercícios coletivos.

O vídeo não mostra a escola como os estudantes estavam acostumados a ver, mas, para além do momento da experiência, obtivemos com ele um produto estético passível de reflexão. A desconstrução figurativa das imagens não foi questionada pelo grupo. Ao contrário, foi vista como coerente à prática, já que andavam vendados e por muitas vezes ficaram próximos dos objetos, tendo como resultado ângulos curiosos, inusitados, diferentes dos apresentados nos vídeos que costumam assistir, refletindo novas possibilidades de pensar e ver a escola.          

A reunião das imagens do percurso, fragmentadas em diferentes registros, é como um quebra-cabeça que desafiou os alunos a sua decifração. A velocidade das imagens sugeridas pelos movimentos bruscos com as câmeras resultou em abstrações, formas diferentes dos vídeos que estão acostumados a produzir. Configurou-se, assim, uma nova forma de ver e registrar aspectos do real, pautada no exercício do corpo utilizado como uma antena de captação sensível do mundo ao redor.

É importante lembrarmos que Edgar Morin (1991) nos apresenta o termo complexidade não apenas como um conceito, mas como uma forma de enxergarmos a realidade, ou seja, indica uma compreensão dos desafios que nos são colocados no momento da ação, visão da realidade indispensável ao conhecimento incompleto que possuímos da mesma. Nesse sentido, através da prática desenvolvida podemos afirmar que os escolares foram confrontados com a complexidade do real, rompendo a visão linear que tinham do mundo e de si. E essa também era a proposta de Lygia Clark.

Considera-se que o uso da imagem no ensino das Artes Visuais é o cerne da educação estética, contribuindo para a formação do repertório imagético dos estudantes, sob a responsabilidade dos professores. Portanto, práticas comprometidas com a formação sensível dos sujeitos, que visem a problematização e ressignificação do cotidiano, não podem alienar-se do uso de recursos tecnológicos em sala de aula. Isso porque tais recursos são amplamente utilizados pelos escolares cotidianamente para os mais diferentes fins, e eles apresentam preparo e disposição, como nós percebemos, para a participação neste tipo de atividade. No caso da nossa proposta, o vídeo, além de ser utilizado como instrumento pedagógico, também foi explorado como linguagem artística. Diferente dos vídeos pedagógicos que normalmente são utilizados nas escolas, neste caso, trabalhou-se o vídeo como um recurso imagético com discurso próprio, autônomo, e não como recurso ilustrativo para um discurso verbal.

Ao longo do artigo buscamos reforçar a importância de explorar-se a relação dos estudantes com as imagens, como ponto de partida para a reflexão crítica acerca do contexto sócio-histórico. Nesse processo, destaca-se a relação dos sujeitos contemporâneos com as novas tecnologias, que nem sempre são percebidas em suas potencialidades narrativas, significativas das diferentes dimensões perceptivas dos indivíduos em interação com o mundo. O resultado videográfico obtido na atividade foi determinante para a reflexão acerca da experiência vivenciada. As questões levantadas pelo trabalho não se encerraram numa resposta única, mas, sim, através de um processo de amadurecimento e ponderação a partir das diferentes idéias e sentimentos suscitados.

 

Figura 4: Amanda Corrêa

Fotografia digital, 2010

 

Concluímos que assim como as Máscaras Sensoriais de Lygia Clark, as nossas Máscaras Cegas (Figura 4) viabilizam o que Bárbara Szaniecki (2007, p.98) denomina “estética de potência”, referindo-se a expressões artísticas que não estão limitadas a representações críticas do poder. A autora destaca que, mais do que isso, elas constituem novas linguagens que emergem do trabalho coletivo. Assim sendo, avaliamos que a proposta acima descrita enquadra-se às solicitações das sociedades contemporâneas, suas práticas e produtos, caracterizando-se como um exercício de Arte/Educação Ambiental, uma tendência para o ensino da arte que busca a instauração da reflexão crítica pelo viés da percepção sensível do mundo e da criação artística.

 

REFERÊNCIAS:               

 

BUCKINGHAM, David. Más allá de la Tecnologia – Aprendizaje infantil en la era de la cultura digital. Buenos Aires: Manantial, 2008.

HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da Cultura Visual – Proposta para uma nova narrativa educacional. Porto Alegre: Editora Mediação, 2007.

Lygia Clark

Disponível em Acesso em set/2010.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 1991.

OLIVEIRA, Maria Alice Milliet de. Lygia Clark: Obra-trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

PILLAR, Analice Dutra (Org.). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação, 1999.

RUSH, Michael. Novas mídias na Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SZANIECKI, Barbara. Estética da multidão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.



[i] Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É, coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, grupo de pesquisa UFPel/CNPq. attos@vetorial.net

[ii] Pós-graduanda em ”Artes: Ensino e Percursos Poéticos” (CA, UFPel), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, CNPq/UFPel.

Ilustrações: Silvana Santos