Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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A PROBLEMÁTICA SÓCIO-AMBIENTAL DE UMA COMUNIDADE, DISCUTIDA A PARTIR DE ENCONTROS DEMOCRÁTICOS NEVES, Elaine da Silva Mestre em Educação Ambiental Universidade Federal de Pelotas – CAVG Rua Antônio da Costa Fonseca, 240, Umuharama Pelotas-RS Fone: (53)2288451/ 91163177 nina.lita@bol.com.br
RESUMO
A partir da análise de uma problemática ambiental, percebida nos recursos hídricos do Conjunto Agrotécnico Visconde da Graça (CAVG) e, numa visão sistêmica, visualizando-se uma das origens deste impacto no Bairro Getúlio Vargas (BGV), optou-se por ampliar o conhecimento desta comunidade sobre as questões ambientais vivenciadas, esclarecendo seus direitos e deveres, tendo em vista a criação de um Núcleo em Educação Ambiental, dentre outras estratégias de enfrentamento. Compreendendo a Educação Ambiental como possível agente transformador de uma realidade como uma educação política, com resgate da cidadania, as tentativas de aproximação e inserção na comunidade se deram com várias entidades representativas do BGV, participando em diferentes atividades, conhecendo sua realidade e seus principais problemas, destacando-se a fome como o mais relevante. Mediante a constituição de um grupo denominado de Encontros democráticos, realizado com um grupo de mães da comunidade, inspirado, fundamentalmente na proposta do Círculo de Cultura de Paulo Freire, implementaram-se atividades como uma trilha, de modo a privilegiar uma abordagem sistêmica da problemática ambiental, demonstrando, concomitantemente, a força de um coletivo para a geração de mudanças. Esta prática educativa culminou com a articulação e mobilização de outros membros da comunidade e representantes da administração pública municipal para a implementação do Núcleo de Educação Ambiental, como um espaço destinado à discussão e enfrentamento de problemas sócio-ambientais e conscientização da comunidade de sua força e poder, enquanto cidadão.
Palavras-chave: 1. Educação Ambiental. 2. Problemas Sócio-Ambientais. 3. Abordagem Sistêmica. 4. Cidadania. 5. Justiça Sócio Ambiental.
INTRODUÇÃO
A problemática sócio-ambiental de uma comunidade, a do Bairro Getúlio Vargas, da cidade de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul, foi abordada dentro de um caminho metodológico, construído durante a realização da pesquisa, baseada numa proposta de Paulo Freire, aqui denominada como Encontros Democráticos (ED). Apresento rapidamente o Conjunto Agrotécnico Visconde da Graça (CAVG), por ter sido nesta instituição, em minhas aulas de Educação Física, na realização de trilhas com os alunos, que percebi a sua problemática ambiental, observando muitas agressões ao ambiente, por onde passávamos, a qual motivou a realização deste trabalho. O CAVG é uma escola agrícola, situada a 8 Km de Pelotas, com uma área de 200 hc. A escola tem mais de 800 alunos e 70 professores, sendo 200 em regime de internato. Por ser uma escola agrícola desenvolve atividades agrícolas e pecuárias. Com plantações de várias culturas e criação de animais de todo porte, além de indústria, padaria. Sendo assim os recursos hídricos no CAVG tem uma fundamental importância para que os seus setores funcionem. O reservatório, o açude da escola, é um dos recursos utilizados. Uma imagem registrada em 1923, quando os alunos podiam utilizar a água até para o banho retrata diferentemente de uma imagem registrada atualmente, onde os alunos se encontravam a margem do açude. Através de conversas com prof e funcionários, até pouco tempo atrás, a água do açude era utilizada para irrigação de hortaliças e no abastecimento de animais. Atualmente as possibilidades de uso desta água são muito restritas, sendo utilizada somente na irrigação de plantações de arroz. Como podemos observar nesta imagem, a água do açude se encontra cheia de resíduos sólidos, o que, há anos, já vinha provocando algumas indagações e questionamento: de onde vinha todo esse lixo? A água realmente é poluída? Qual o índice de poluição da água? Na realização de uma análise físico-química desta água observou-se que os índices de coliformes fecais se encontram muito acima dos padrões de aceitabilidade para qualquer uso, de acordo com o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). Algumas alternativas já foram pensadas e formuladas para tentar resolver este problema, no próprio CAVG. Entretanto serviriam como medidas paliativas que apenas amenizariam o problema. O maior problema encontrado são os resíduos sólidos, pois quanto aos coliformes fecais, o açude funciona como uma lagoa de decantação diminuindo muito os índices nas águas que seguem seu curso. No entanto, após uma chuva, o açude e seu entorno ficam tomados de garrafas plásticas, restos de utensílios domésticos e outros. Para responder os questionamentos apresentados, foi necessário sair dos limites do CAVG, assumir uma visão sistêmica, com uma concepção totalizadora, buscando outras respostas. Foi possível constatar, que a poluição nos recursos hídricos do CAVG tinham sua origem em um bairro muito próximo o qual despeja através deste canal de ligação, que mostra a imagem (Fig. 1), seus resíduos diretamente nas águas que chegam ao CAVG.
FIGURA 1 – Poluição no canal de escoamento do Bairro Getúlio Vargas.
Assim, a partir da necessidade de conhecer mais profundamente este bairro, o Bairro Getúlio Vargas, seus problemas ambientais assim como trabalhar com seus moradores e seu comportamento frente ao que se apresenta, estabelecemos os objetivos desta pesquisa: - Ampliar o conhecimento das pessoas da comunidade a respeito das questões sócio-ambientais; - Identificar as causas e conseqüências da problemática ambiental no Bairro Getúlio Vargas e áreas circundantes; - Estimular a implementação de um Núcleo de EA no bairro, construindo um espaço permanente de discussão e enfrentamento dos problemas ambientais.
O Núcleo em EA é uma proposta da Secretaria de qualidade ambiental de Pelotas, já implementado em alguns bairros, que tem como objetivo trabalhar os problemas ambientais locais, formando lideranças na comunidade, mediante um processo permanente de formação e informação, através da EA não formal. Esta pesquisa retrata uma realidade não só desta comunidade, mas de muitos bairros periféricos de uma cidade. A maioria dos bairros se constrói pela necessidade de um espaço para viver sem custo ou com um custo muito mínimo. O bairro Getúlio Vargas tem cerca de 6.000 habitantes, com uma renda familiar muito baixa; isto é, quando existe, vivendo a maioria das famílias de sub-empregos. Esta comunidade apresenta sérios problemas sociais, com carências diversas: moradia em construções precárias; falta de infra-estrutura urbanística; dificuldades econômicas, fome, frio, violência , insegurança. Sem infra-estrutura e com um crescimento ilimitado e desordenado em áreas precarizadas, os problemas ambientais são muitos, principalmente no que se refere ao lixo e a falta de canalização. Leonard (1992, p. 36), Jacobi (1997,p. 385) e Boff (1999, p.20) tratam deste tema, salientando as diferenças e desigualdades entre diferentes zonas de uma cidade, concentrando os agravos ambientais em locais mais pauperizados. O bairro possui cinco espaços destinados a áreas de lazer. Entretanto são utilizados como depósitos de lixo pela população. A garantia de espaços adequados para o lazer e de um meio ambiente sadio passa pela EA, enquanto um processo de constante transformação e conscientização da população. Temos várias leis, decretos e consta na constituição o cuidado na tutela do ambiente. Entretanto, elas precisam ser complementadas com uma nova concepção de vida e de mundo, trazendo mudanças profundas e verdadeiras. A EA tem uma missão que vai além da educação e do conhecimento do meio ambiente em que vivemos. Ela precisa buscar um novo ideário comportamental, construir um novo conceito de mundo, permeado pela coerência nas atitudes, com uma postura ética e uma consciência política, que permitem um bem estar coletivo. A EA tem que buscar, com uma educação política, segundo Reigota (1994, p. 10) resgatando a dignidade do ser humano, vinculando as questões ambientais com as sociais. Gadotti (2000, p.96) coloca a necessidade de uma nova mentalidade, de uma percepção holística, de uma mudança radical nas atitudes, valores e ações, construindo um novo paradigma. A educação deve ter a sua influência na transformação da mente, nas ações, nas relações pessoais e com a natureza e o caráter permanente da educação de acordo com Freire, permite esta construção contínua do sujeito. Enfim, é preciso que aja responsabilidade, compromisso, onde os direitos e deveres precisam ser respeitados pelos cidadãos e dirigentes no exercício da cidadania. Devido ao caráter social que emerge quando nos propomos a discutir as questões ambientais, surgem como temas bases de uma articulação política da população: a justiça ambiental, a cidadania ativa e o empowerment .
JUSTIÇA SÓCIO-AMBIENTAL
Segundo Chiro apud Layrargues (2000, p. 117), o movimento pela justiça ambiental surgiu na metade dos anos 80, enfatizando que a questão maior se situa no direito que qualquer ser possui de viver em ambiente saudável e ecologicamente aquilibrado, independente de raça, classe, gênero, cultura ou mesmo espécie. A população é afetada pela injustiça sócio-ambiental, pelas suas condições de desigualdade social, exploração e dependência. Hogan (1995, p. 151) salienta que os pobres foram empurrados para as periferias ambientalmente precárias. E ainda Hogan (1995, p. 162) e Martinez-Alier (1998, p. 127) colocam que a desigual distribuição de recursos também é desigual quando se trata distribuir os riscos ambientais, não atingindo igualmente todos os segmentos sociais, onde os pobres e as minorias são os mais afetados.
CIDADANIA ATIVA
A cidadania se apresenta como um agente transformador da sociedade, com uma nova sociedade, com autonomia sobre o próprio corpo, a moradia e a proteção ambiental, buscando novas relações entre estado e sociedade, com uma maior abertura de espaço na gestão das políticas públicas, e por novas relações entre estado e sociedade. Para Leff (1999, p. 112) exercer a cidadania, sendo um cidadão ativo e participante nas decisões do coletivo, não é suficiente conhecer os seus direitos e deveres é necessário reivindica-los no momento oportuno, cobrando e exigindo medidas a quem compete implementa-las. O cidadão precisa despertar desta apatia, lutar coletivamente para resgatar sua cidadania e o seu direito de viver melhor, em um ambiente saudável.
EMPOWERMENT
Para Friedman apud Saito (2001, p. 132) o empowerment significa o fortalecimento político organizacional de uma coletividade para transformar a realidade. Para Freire o empowerment indica um processo político das classes dominadas, que buscam a própria liberdade da dominação, empenhando-se na obtenção do poder político. A organização do coletivo pode influenciar na transformação de uma situação problema e seu enfrentamento, pela força adquirida no interior de seu conjunto. O sujeito coletivo é aquele que se organiza e participa, em espaços, onde as lutas sociais, políticas, econômicas e culturais se cruzam e produzem práticas, adquirindo poder político e uma capacidade de mudança coletiva. Para Freire (1987, p. 135), a força do coletivo se faz com um sentimento social livre do individualismo, em que cada um seja capaz de usar sua liberdade para ajudar os outros a se libertarem, através da transformação global da sociedade.
APROXIMAÇÃO COM A COMUNIDADE DO BAIRRO GETÚLIO VARGAS
Minha aproximação com o bairro Getúlio Vargas, ocorreu no iniciou de junho de 2001, com o propósito de conhecer a realidade vivida pela comunidade e compreender as suas relações sociais, assim como encontrar um grupo de pessoas, que mantivessem encontros periódicos. De acordo com Oliveira & Oliveira (1986, p. 27) uma das dificuldades do pesquisador é a sua inserção e, ao mesmo tempo, a sua aceitação como pessoa estranha no meio de uma comunidade. A inserção é um processo pelo qual o pesquisador procura atenuar a distância que o separa do grupo social com que pretende trabalhar. Por isto, acreditei que tais lideranças poderiam abrir as portas do bairro, para que eu pudesse estreitar a distância que me separava das pessoas da comunidade. Foi então que dei início as minhas tentativas de aproximação e inserção no bairro através de pessoas que exerciam alguma liderança nas seguintes entidades representativas: Cooperativa de produção, Associação de moradores, A Escola municipal Getúlio Vargas, O Atendimento sócio-econômico em meio-aberto e a Comunidade Católica. Algumas destas entidades não funcionavam enquanto um coletivo, sendo constituídas somente pelos seus representantes. Enfim, não possuíam um grupo engajado e nas poucas ações relacionadas às questões ambientais não havia a participação das pessoas da comunidade. Parecia que a luta diária pela sobrevivência constituía-se na maior prioridade das pessoas desta comunidade, as quais vivem num contexto de desigualdades e injustiças sociais tão marcantes. Após muitos encontros frustrados e muitos questionamentos, pois não encontrava no bairro um grupo com o qual pudessem estabelecer contatos periódicos, a Comunidade Católica, a última a ser contactada, em junho de 2002, por intermédio da D. Jaci, líder comunitária, apresentava uma estrutura, Além das atividades religiosas inúmeros programas e projetos utilizavam o espaço da paróquia, apesar das dificuldades de mantê-la em funcionamento, pela falta de estrutura e segurança. O grupo de mães que se encontrava no local, estava envolvido em suas tarefas de confecção de acolchoados e outros artesanatos. O grupo era estruturado, com encontros periódicos e, muito receptivo, pois expus o meu propósito e fui acolhida no grupo. Havia finalmente encontrado o grupo para a realização de encontros.
CONHECENDO A COMUNIDADE
Com o intuito de me aproximar do grupo e de conhecer a maneira como estas pessoas viviam, seus anseios, angústias e prioridades, além de participar com o grupo na confecção de acolchoados, participei de outras atividades, por aproximadamente seis meses, nas quais algumas participantes do grupo também atuavam como: festas, reuniões, encontros e no preparo do sopão e carreteiro. O poder público tenta através de alguns programas amenizar uma das necessidades reveladas por Maslow (s.d. p.47), a de suprir carências de alimentação, como acontece neste bairro, proporcionando condições para o fornecimento de sopão e carreteiro duas vezes por semana. Entretanto, os buracos vazios, as deficiências são muitas nesta comunidade. Os desejos insatisfeitos de filiação, de identificação, de estreitas relações de amor, de respeito e prestígio também tratados por Maslow (s.d. p, 47) constituem em buracos vazios. A violência, a falta de segurança, o medo e a fome aparecem constantemente em suas falas. Além de satisfazer necessidades de sobrevivência, trabalhar outras questões com essas pessoas, como de cuidado consigo e com seu corpo, torna-se fundamental. Durante o preparo do sopão e carreteiro, surgia a oportunidade de discutirmos sobre temas que faziam parte do cotidiano delas, que emergiam em conseqüência de fatos acontecidos no bairro, compartilhando suas poucas alegrias e suas tantas tristezas. A necessidade de uma liderança exercida de maneira responsável e com lisura em suas atitudes foi constatada como sendo fundamental neste grupo do sopão e carreteiro, pois os recursos públicos destinados deveriam ser utilizados de maneira correta. De acordo com Beal o líder percebe as tendências de ação do grupo e orienta-o na direção acertada. Já quanto a exclusão social total, esta foi percebida em algumas famílias, as quais não se beneficiam com nada, vivendo à margem de tudo. Sem registro, documentação, não existem como cidadão.
FESTAS: VISÃO PATERNALISTA
Analisada sob a ótica de ações participativas ampliadas e coletivas, a participação das pessoas da comunidade em momentos festivos, denuncia uma visão paternalista comumente existente nestas ocasiões, com distribuição de presentes ou doação impede a participação nas atividades propostas pelo simples prazer e satisfação. A carência dos moradores por momentos de lazer, a falta do seu poder de decisão, assim como de limites no uso da sua liberdade, foi uma grande dificuldade observada, restringindo a participação consciente e comprometida com os propósitos da ação. Essa visão por sua vez dificulta o engajamento de um maior número de pessoas no planejamento, organização e execução de uma atividade, determinando o sucesso ou não da ação proposta.
ASSISTÊNCIA X ASSISTENCIALISMO
A assistência prestada às crianças, idosos, inválidos e mendigos é um dever do estado, pois estes são supostamente incapazes de gerir sua própria sobrevivência. Entretanto ela não pode ser rebaixada ao assistencialismo, quando se trata de indivíduos capazes e com condições de suprir as suas necessidades e de seus familiares através de um trabalho digno. De acordo com Demo (1996, p. 31) o estado assistencialista mantém, de uma certa forma, a estrutura de desigualdade social, oferecendo medidas paliativas para amenizar as diferenças, mas mantendo-as e incentivando a sua continuidade. Não há como negar que o assistencialismo através do sopão e carreteiro e da distribuição de cestas básicas, tem abrandado a fome de um número de pessoas, entretanto, o assistencialismo aliena e sustenta uma situação injusta.
A FOME REVERENTE E URGENTE
A intensidade do problema da fome está assumindo proporções incontroláveis, como demonstra a preocupação primordial do atual governo e da sociedade. No entanto, essas medidas não são respaldadas na cidadania, pois políticas públicas de cunho essencialmente assistencialista, incentivam o imobilismo apático e módico. A fome aparece como a principal preocupação desta comunidade. Diversas famílias vivem na miséria, não conseguem a sua subsistência. Ë evidente que não se pode mais adiar a busca de soluções que tratem de maneira responsável e com a brevidade necessária a questão da fome. Os programas existentes que objetivam minimizar o problema da fome são elitistas e muitas vezes injustos, pois continuam excluindo os mais necessitados. Dejours (1986, p.9) ao criticar o conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), como um estado de conforto, de bem estar físico, mental e social, enfatiza que a angústia tem um papel a desempenhar na vida das pessoas, pois essa angústia estimula a transformação do homem e da realidade. O desejo de alcançar algo pode gerar angústias, no entanto, é o objeto de desejo que faz uma pessoa lutar. O perigo reside, justamente, na apatia, na falta do desejo, quando ele não é mais possível.
ENCONTROS DEMOCRÁTICOS: BUSCA DE ESTRATÉGIAS PARA ENFRENTAR A PROBLEMÁTICA AMBIENTAL
Participaram dos encontros, realizados de junho a dezembro de 2002, um grupo composto de sete (7) pessoas. Os encontros foram denominamos de Encontros Democráticos, baseados nos Círculo de Cultura de Paulo Freire, metodologia criada para conscientização dos sujeitos envolvidos. Esta metodologia já foi também utilizada por outros autores, sendo denominada por Minasi (1996) como Encontros de Cultura, por Soares (2000) como Grupos de reflexão-ação e por Saito (2000) como práticas sociais coletivas. As participantes dos ED possuem muitos pontos em comum nas suas histórias de vida, vindo do campo para a cidade, sobrevivendo com muitas dificuldades, tornando-se sujeitos da resignação ou revolta, dependendo da maneira como encaram a realidade vivida, como expressa Fantin (1997, p. 54). A segregação, na distribuição espacial da população, foi observada por Kowarick (1980, p. 41) em um crescimento caótico, onde a construção da casa própria (barraco), através da ajuda mútua, em um lote de terra, muitas vezes adquirido como doação ou comprado por uma bagatela, constitui a única possibilidade de alojamento para os trabalhadores menos qualificados, cujos rendimentos não permitem outro modo de moradia. Desse modo, algumas moram no bairro desde o seu início, observando o seu crescimento desordenado e, conseqüentemente, os problemas de estrutura urbana se avolumando com o passar dos anos. O bairro foi escolhido pelas suas famílias por ser a única possibilidade de uma moradia com um custo mínimo. Foi preciso estar junto com às participantes dos Encontros Democráticos para descobrir e compreender como se estabelecem relações entre elas e como as lideranças se constroem no seu interior. Foi observado que o grupo dos ED apresentava problemas de gerenciamento na realização de atividades, assim como problemas de relacionamento entre suas componentes, o que parece ter melhorado no decorrer do tempo. Enfatiza Baremblitt (1986, p. 190) que “a teoria dos papéis se compõe, então, dessa representação que cada um tem de si mesmo e que responde a uma representação de expectativas que as demais pessoas têm de nós”. Mesmo em um grupo pequeno, ou em uma comunidade, os papéis exercidos por cada participante podem ser percebidos com clareza. As atitudes das pessoas correspondem às expectativas que os demais têm em relação a ela. Os papéis assumidos passam a ser conhecidos pelo pesquisador, assim como os conflitos e ansiedades gerados pelo convívio tão próximo que, ao mesmo tempo aumentam laços de amizade e companheirismo. Segundo Freire (1987, p. 87) “nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão de mundo, ou tentar impor, mas dialogar sobre a sua e a nossa”, por isto a importância e o cuidado para que os temas emergissem da percepção que a própria comunidade tem dos seus problemas ambientais. Para Saito (2000, p. 25), “identificar o tema gerador significa, entre tantas coisas, aquilo que diga respeito à comunidade, que seja um tema-problema, capaz de tocar fundo nos interesses do jogo”. As participantes trazem alguns questionamentos pertinentes a responsabilidade em assumir obras de saneamento, sendo da população ou do poder público? Nas questões sociais emerge os problemas referentes a fome , frio, assistencialismo e questões referentes ao funcionamento e estrutura do grupo. Nas questões ambientais emergiram problemas como: saneamento básico, limpeza das ruas e alagamentos, falta de área de lazer, coleta e comércio de lixo, acidentes e contaminações nas enxurradas. Para problematizar as questões levantadas foram propostas ao grupo algumas atividades, que se realizaram a medida que os encontros aconteciam.
A PARTICIPAÇÃO NA TRILHA COMO ESTRATÉGIA DE CONHECIMENTO DA PROBLEMÁTICA AMBIENTAL
Com a constituição do grupo, participante dos Encontros Democráticos, propôs-se a participação em uma trilha, no CAVG, na área do açude e proximidades, o qual tem o seu abastecimento dado pela água pluvial e dejetos oriundos do bairro. Percorrendo o entorno do açude e lugares onde havia mais lixo depositado. Buscou-se, deste modo, ampliar o conhecimento das participantes sobre a problemática ambiental observada e sua relação com a problemática do bairro, com um enfoque sistêmico. Durante a trilha algumas inquietações foram formuladas, além de provocar lembranças de um passado, expressado com saudosismo, ficando acordado que no próximo encontro problematizaríamos a situação observada, resgatando os comentários e as análises do grupo, através de uma amostra de fotos da trilha. A participação na trilha foi um momento de muita importância para a valorização da capacidade do grupo de aprender e compreender uma problemática ambiental e o alcance de sua dimensão. Quando formos abordar uma problemática ambiental torna-se fundamental conhecer além do que se pode enxergar, e este foi o objetivo quando da realização da trilha, abordar a visão sistêmica, analisada por Capra (1996, p.39). A realização da trilha no CAVG oportunizou o conhecimento da problemática ambiental local e da percepção de sua relação direta e muito próxima com o bairro. Compartimentando cada localidade e seus problemas, deixamos de analisar o todo e de perceber as conseqüências dos impactos em outros locais. De acordo com Chiro apud Layrargues (2000, p. 118), “devemos pensar local (mas conhecendo os vínculos com o global), e agir localmente”. Ainda, esclarece que o chavão “Pensar globalmente, agir local”, obscurece as experiências e ações dos indivíduos para a melhoria das condições locais nas comunidades marginalizadas. O desvelamento crítico, segundo Gadotti (1996, p. 719) significa “chegar ao fundo das coisas, conhecê-las, descobrir o que há em seu interior, atuar sobre o que se conhece para transformá-lo”. Não sendo suficiente o conhecimento, é necessário o desejo de transmitir, o que foi sentido em algumas falas. As participantes perceberam que o bairro estabelece com o CAVG uma relação direta e ficaram surpresas pela descoberta de que a água utilizada em suas casas tem um destino, que ela chega a algum lugar e de que de alguma maneira retorna às suas casas. O grupo expressa o peso da responsabilidade de cada um sobre posturas utilitaristas frente ao problema da poluição na água. As falas soam quase como um pedido de desculpas pela ignorância de uma realidade tão próxima, e que sofre a influência de fatos gerados no próprio bairro: O grupo procura identificar os responsáveis pela situação observada, apontando uma postura inadequada dos moradores do bairro, a necessidade do engajamento na luta por melhorias e as instituições governamentais algumas vezes como cumpridoras e em outras apontando a ausência de políticas públicas. A acomodação e a espera limitam e dificultam a conscientização dos moradores, caracterizando a tutela governamental, a dependência a espera pacientemente por uma providência. Assumindo somente para si a responsabilidade pela resolução dos problemas do bairro, a comunidade torna-se um comparsa, um parceiro na concordância e permanência de uma política inadequada e injusta.
“VIDA DE INSETO”: UMA METÁFORA DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Com a finalidade de instigar nas participantes a percepção de como um grupo organizado, minimamente aglutinado em torno de interesses coletivos, poderia ter mais força e poder, realizou-se uma sessão de vídeo, com o filme “Vida de Inseto”, que retrata como vive em sociedade um formigueiro, a sua fragilidade frente ao poder de dominação dos predadores, ao mesmo tempo relata uma força e determinação em momentos de extrema opressão. As participantes demonstram perceber a semelhança entre a nosso modelo de sociedade e a do formigueiro. A união, a servidão, a dominação, assim como a força do coletivo, o Empowerment, para sair de uma situação de opressão; a necessidade da organização das associações como instâncias de participação ativa; e a dominação alienante, causando insatisfação e revolta emergem no encontro posterior à sessão de vídeo. O cidadão, quando se organiza e participa, compreendendo, interessando-se e exigindo seus direitos, adquire poder político e uma capacidade de mudança coletiva (GUTIÉRREZ, 1999, p.15), tornando-se sujeito coletivo, que se organiza enquanto associações de moradores, grupos diversos, organizações não-governamentais, entre outros. Estes espaços, onde as lutas sociais, políticas, econômicas e culturais se cruzam e produzem práticas, proporcionam, a esta coletividade, a elaboração de uma identidade no interior de múltiplas diferenças. Para Friedman apud Saito (2001, p. 132), Empowerment significa “o fortalecimento político-organizacional de uma coletividade, que toma como referência os interesses comuns. Pratica uma ação solidária e colaborativa para transformar a realidade local. O Empowerment indica um processo político das classes dominadas, que buscam a própria liberdade da dominação, empenhando-se na obtenção do poder político (FREIRE, 1986, p. 138). Romper com uma situação de acomodação, através da união e conjunção de força interior de cada um, sentindo-se fortalecido pela cumplicidade do outro, pode ser uma estratégia popular na conquista por seus espaços. Estes espaços de participação ativa podem ser as associações comunitárias desde que segundo kleinschmidt & Silva (1985, p. 36) ela possua uma forte ligação com o conjunto de moradores do bairro, defenda seus interesses e garanta a participação do povo nas decisões, entretanto as associações, existentes no bairro, não parecem exercer o papel de aglutinadoras de pessoas, disponibilizando momentos para compreensão e discussão política dos problemas que afligem a comunidade, dificultando o surgimento do “sujeito coletivo”. No movimento em que se processam sujeitos coletivos, percebe-se uma dura, lenta e conflituosa construção, sendo práticas difíceis de serem concretizadas e principalmente visualizadas (FANTIN, 1997, p. 29). Quando estes segmentos falham no processo de mobilização e participação, a interação entre os membros e suas relações não se estabelece, perdendo o sentido e significado do viver em comunidade. A situação nos bairros que “refletem as conseqüências do sistema de dominação: vivem em condições de marginalidade, de exclusão social, em espaços periféricos, e em posição de defesa” (COGOY, 1998, p. 20), deveriam causar insatisfação na população, a tal ponto que fizesse emergir a mobilização, a organização e, como etapa culminante, o processo reivindicatório. Na fala de uma participante, está implícita a “incapacidade”, de que trata Freire (1988, p. 50) “de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem, em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua incapacidade”. Enfatiza Boff (2000, p. 42), que a dominação obriga a três atitudes: ou ao submetimento para sobrevir, implicando a traição da própria história; ou a resistência, a rebelião e a clandestinidade, correndo riscos; ou o disfarce, o simulacro e o jeitinho, adaptando-se. Diante dessas evidências, parece que os integrantes da comunidade precisam ser motivados a participar da organização de uma estratégia popular, de forma cooperativa, de modo que não esteja voltada basicamente para a questão da subsistência e sobrevivência, porém, com um caráter mais político, saindo da condição de dominação e alienação. A organização de uma estratégia popular, desalienante, emancipatória, com uma participação política, poderia se dar através dos Núcleos em Educação Ambiental (NEA).
NÚCLEO EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL: ESPAÇO POSSÍVEL PARA TRANSFORMAÇÃO
As participantes sentiram a necessidade de socializar as informações adquiridas e do engajamento de outras pessoas da comunidade, de modo a ampliar a participação popular na discussão das questões sócio-ambientais. “A possibilidade de maior acesso à informação potencializa mudanças comportamentais necessárias para um agir mais orientado na direção da defesa do interesse geral” (JACOBI, 1998, p. 11). Nesta citação, é salientada a importância da participação de uma comunidade informada e esclarecida, fazendo despertar o “desejo” de mudanças, de maneira que possam unir forças, tornando-se sem dúvida, prioritário nessa luta. Então, em um primeiro momento, solicitou-se a participação de um representante da Secretaria de Qualidade Ambiental (SQA), órgão governamental responsável pela construção do projeto dos Núcleos de Educação Ambiental, para explanar e detalhar a proposta. Este encontro teve como proposta a troca de vivências e experiências entre o grupo e a representante da SQA, onde o grupo explicitou o que havia assimilado das atividades que participou e a representante da secretaria explicitou, para o grupo, as atividades realizadas pela secretaria, como proposta de aproximação com a comunidade e de incentivo para a implementação do Núcleo de Educação Ambiental nos bairros da cidade. Neste encontro a auto estima do grupo parece ter crescido, pelo envolvimento da representante de uma Secretaria do governo municipal, e demonstravam entusiasmo com a possibilidade de implementação do núcleo no bairro. De qualquer modo, o grupo propôs em um segundo momento ampliar a discussão, com a participação de outras pessoas, em especial aquelas que tem uma inserção na comunidade e pessoas da própria comunidade. Após uma dinâmica de sensibilização, realizada com as presentes, o conhecimento da problemática ambiental do CAVG e BGV assimilado ao longo dos encontros pelas participantes dos ED, foram transmitidas aos presentes no encontro. Compartilhar a responsabilidade entre a comunidade e o poder público é apontado como necessário. Acreditam que se a comunidade fizer a sua parte, a cobrança aos dirigentes de uma política pública que atenda aos seus anseios, poderá ser efetivada com mais sucesso. Os vários questionamentos que surgiram ao longo desse estudo, favoreceram a busca de caminhos que oportunizassem um esclarecimento e uma maior politização das pessoas da comunidade a respeito das questões sócio-ambientais, do seu direito à cidadania, assim como da relevância e necessidade de uma participação ativa e coletiva. Os núcleos em EA poderão dinamizar a participação da comunidade a partir de uma nova postura, com o objetivo de discutir e enfrentar os problemas vivenciados pela população, contribuindo para a formação de cidadãos conscientes e críticos em suas tomadas de decisões, pressuposto básico para a construção de uma sociedade sustentável. O núcleo poderia constituir-se em espaços para o exercício da cidadania. Os espaços de participação política em uma comunidade, oportunizando a discussão de questões sócio-ambientais, como já dito anteriormente, praticamente inexistem no bairro. Entretanto, nos núcleos de EA, pela característica de ser uma proposta idealizada e implementada por um órgão do governo, a comunidade teria este espaço, com mais força política para reivindicar os seus direitos. Certos direitos naturais inalienáveis, como: trabalho digno; direito à alimentação; direito ao tratamento médico; moradia com dignidade; direito à educação e direito à segurança, dependem de serem reconhecidos pelos dirigentes, como tal, em relação ao indivíduo. “É possível que exista um indivíduo, que vive em uma sociedade, na qual não possui todos os direitos de um cidadão típico? ”(GOUVÊA, 2002, p. 11). Esse questionamento simples e óbvio possui um sentido sagaz, na tentativa de alertar para uma situação que pode não estar visível, no entanto não é invisível, bastando querer enxergá-la. A dificuldade encontrada na comunidade parece ser a de mobilização de algumas potencialidade que existem no bairro, mas que se encontram adormecidas pela descrença não só nos dirigentes, mas no ser humano e na sua capacidade de articulação e força. O grupo foi sendo ampliado e, adquirindo certa autonomia e iniciativa, sendo fortalecido pela participação coletiva. Enfim, nos últimos contatos estabelecidos pareceu que eram muitas as possibilidades de implementação do núcleo em EA no Bairro Getúlio Vargas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A postura utilitarista e fragmentada, empregada aos recursos hídricos, vem sendo discutida por organismos nacionais e internacionais, entretanto torna-se evidente a relação sócio-ambiental desta problemática, com todas as implicações desta relação. A injusta distribuição espacial, com as péssimas condições ambientais observadas nas zonas periféricas das cidades, pelas conseqüências da falta de políticas públicas adequadas e justas, como também por uma postura equivocada das comunidades, é uma característica presente no BGV. Na minha aproximação com a comunidade foi possível perceber que algumas questões eram prementes para as pessoas daquela comunidade: a fome; a insegurança, a violência, a exclusão, o assistencialismo, a dominação, a necessidade de liderança, dentre outras. Nos encontros democráticos dois momentos tiveram maior reflexão e descoberta: a trilha, que ampliou o conhecimento das participantes a respeito da problemática ambiental do CAVG e sua relação, numa visão sistêmica , com o BGV, compartilhando responsabilidade entre a comunidade e o poder público ; A metáfora foi compreendida com o filme Vida de Inseto, que mostrou como a força de um coletivo pode provocar mudanças, reconhecendo a semelhança no modelo de dominação, tal como a nossa sociedade. O grupo sentiu necessidade de socializar as informações e de ampliar a participação, de modo a comprometer mais pessoas com a proposta de implementação do Núcleo de EA. A capacidade de aprender e trocar experiências diferenciadas, ampliando mutuamente o conhecimento foi uma constante em todo este processo. O Núcleo de EA poderá ser o espaço para discussão, servindo como estratégias que reforçarão e concretizarão a idéia fundamental de pensar a EA não formal, para o enfrentamento da problemática ambiental, comprometendo algumas entidades representativas, pessoas da comunidade e dirigentes governamentais. Esta pesquisa não teve a pretensão de resolver as questões ambientais apresentadas no CAVG E BGV, mas partilhar com outras pessoas aquela situação que eu havia constatado em minhas andanças. Neste percurso, como já explicitei, muitas indagações foram formuladas e outras tantas ficaram sem resposta. Durante todo o percurso deste trabalho, redimensionei inúmeras vezes a importância de discutir as questões sócio-ambientais com as pessoas desta comunidade, diante da situação de pobreza e exclusão, entretanto, a necessidade de ampliar os seus horizontes, a vontade de saber mais sobre o que desconhecem impulsionou esta pesquisa.
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