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CIDADANIA
PLANETÁRIA: UMA LIÇÃO DE COEXISTÊNCIA E CONVIVÊNCIA ATRAVÉS DO
COMPARTILHAR Solange
T. de Lima Guimarães (1) No
início da década de setenta do século XX, Bárbara Ward e Renés Dubos
(1972;1973) na obra “Uma Terra Somente: a preservação de um pequeno
planeta”, alertavam-nos sobre as estratégias para a sobrevivência da espécie
humana no planeta Terra, no sentido de comprometermo-nos de modo cooperativo
através de uma responsabilidade coletiva e efetiva, tendo em vista problemas,
riscos e danos passados, presentes e futuros.
Entretanto,
transcorridas três décadas, as questões apresentadas pelos autores
respectivas aos diversos problemas internacionais sócio-econômicos, políticos,
ecológicos, psicológicos, entre outros, continuam atuais, separando-nos em
processos de exclusão e segregação, quanto às alternativas de acesso,
oportunidades e possibilidades, em formas de separação sutis ou sofisticadas,
tangíveis e intangíveis, perceptíveis ou não, dependendo da visibilidade ou
não-visibilidade de suas concretudes ou imaterialidades. Planos,
tratados, acordos e legislações nacionais e internacionais foram neste período
discutidos, assinados e ratificados, mas infelizmente não foram interiorizados
mediante o desenvolvimento de uma consciência ambiental nos seres humanos,
predominando individualismos, fundamentalismos e fanatismos exacerbados,
desequilibrados, expressos em fronteiras de coerções e espaços caóticos de
extermínios e violências contra a própria espécie humana e seu mundo vivido:
guerras interiores e exteriores refletidas nas paisagens da Terra... Sobre
estas perspectivas sombrias e apocalípticas, Ward
& Dubos (1972;1973), nos admoestam à necessidade emergencial
de olharmos e reavaliarmos nossas ações, atitudes e condutas muitas
vezes alienadas em relação aos graus de interdependência referentes aos
outros e ao planeta, bem como ao encadeamento de causas e efeitos.
Apesar do alerta destes autores contar com trinta e três anos desde a
publicação dos originais em 1972, a tessitura desta reflexão não perdeu sua
atualidade nem seu caráter emergencial como podemos observar nos excertos a
seguir: MAS
NÃO SOMOS sonâmbulos nem ovelhas. Se
os homens não se deram conta, até agora, do grau de sua interdependência
planetária, isso se deve, ao menos em parte, a que esta ainda não existia em
forma de fatos claros, precisos, físicos e científicos.
A nova compreensão de nossa condição fundamental também pode
tornar-se a compreensão de nossa sobrevivência, que talvez estejamos
adquirindo no momento oportuno. (WARD & DUBOS, 1973: 269) (...)
Uma estratégia aceitável par ao planeta Terra deve, então, levar
explicitamente em conta o fato de que o recurso natural mais ameaçado pela
poluição, mais exposto à degradação, mais propenso a sofrer um dano
irreversível, não é esta ou aquela espécie; não é esta ou aquela planta ou
bioma, ou habitat, nem mesmo a atmosfera livre ou os grandes oceanos.
É o próprio Homem. (WARD & DUBOS, 1973: 273) Na
transição do século XX para o XXI, estas palavras ainda ecoam para nós como
um pedido de socorro não respondido, em um mundo onde as necessidades de uma
consciência de cidadania planetária encontram-se arquitetadas sobre estruturas
de processos e movimentos históricos voltados para visões materialistas,
sustentadas por valores utilitaristas e consumistas, herança e permanência do
pensamento e ideologias da Revolução Industrial do século XIX, que segundo
Schweitzer (1959), levaram à ruptura entre o discernimento e a vontade, a razão
e a emoção, entre o pensar e o sentir. Assim,
nossas estruturas sócio-econômicas e políticas revelam não só a desagregação
e dissociação entre a biosfera, a tecnosfera e a psicosfera, mas também uma
profunda crise axiológica, sendo o limite
de tempo para escolhermos entre ações proativas ou reativas no sentido de
assegurarmos nossa própria sobrevivência no planeta. (BERG, 2003; MORAIS,
2002) Ao
considerarmos as imagens do nosso mundo pós-moderno mas tão marcadas pelos traços
de um antigo materialismo mecanicista e tecnicista, observamos dentro e fora de
nós a instalação de uma crise de valores nunca experienciada antes, tanto na
profundidade do seu desespero como nas ambigüidades de suas angústias:
assistimos perplexos a “coisificação” dos seres humanos, pois já não
passamos de mercadorias descartáveis em um mundo em globalização (SÁBATO,
1988; MORAIS, 2002). A vida e seus
processos estão revestidos pelos valores de um mercado insensível, tornando-se
moedas correntes em um mundo regido pelas leis de um humanismo materialista e
considerado civilizado. É
este o cenário que temos diante de nós e é nele que precisamos agir
proativamente, pois analisando seus contextos sabemos que já não basta
desenvolvermos ações reativas diante das conjunturas objetivando construções
para um meio ambiente melhor, mas precisamos com urgência educar para que as
relações de alteridade (EU-TU) sejam entendidas em suas semelhanças e diferenças,
possibilitando não somente o coexistir mas também o conviver, criando a
oportunidade de compartilharmos novos conhecimentos e interpretações da Vida e
de sua plenitude. (BUBER, 1978; BERG, 2003).
Para Berg (2003: 57) o compartilhar é o caminho para as conexões do
conviver e da paz, onde “O pensamento precisa sempre estar ligado ao
sentimento, e o sentimento com a ação positiva imediata, onde quer que você
esteja e com quer que você esteja”. Neste
sentido, Morais (1993:101), fundamentado em Maturana (1992), ao refletir sobre
alguns dos aspectos concernentes a estas relações entre pessoas e meio
ambiente, e as dimensões da Ecologia e, em especial, da Ecologia da Mente, ou
Terceira Ecologia, afirma que: “o necessário, pois, não é que destruamos
o mundo que temos, para construirmos um outro ideal; mas apenas entendermos que
só teremos de fato o nosso mundo com os outros, e que a razão só atinge seu
real valor se mobilizada pelo desejo da convivência.” A
busca dos caminhos para o ideal de uma cidadania planetária deve ainda levar em
conta as comunidades de conflitos existentes nos dias de hoje, onde a
fragilidade das estruturas sócio-econômicas e culturais nos fala de um mundo
fragmentado entre os limites das inseguranças e das instabilidades que ameaçam
todas as formas de vida, geradas pela efemeridade, volubilidade daquilo que as
diferentes comunidades humanas consideram como seus princípios e que causam
tantas distorções e contradições perceptivas e interpretativas relacionados
às realidades ambientais (EPSTEIN, 2001), considerando-se o pluralismo e a
complexidade dos seus códigos de normas sociais. Diante
da multiplicidade dos diferentes níveis de realidade ou domínios da existência
(EPSTEIN, 2001:68), é mister que estejamos sentindo a responsabilidade de
cooperarmos na construção de um mundo melhor onde a vida seja favorecida, abraçando
um humanismo dialógico, onde o ser humano seja parte, co-autor e cooperador nos
processos de recuperação e manutenção de um equilíbrio ecológico harmônico.
Esta nova atitude não refletirá construções desestabilizadoras,
desconexas e decadentes, produtos de uma ilusão e de um equívoco imaturos, mas
estará arquitetada por processos interativos estabelecidos por relações de
alteridades, reciprocidades e complementaridades, impregnados da profunda
espiritualidade/sacralidade que tem delineado a nova visão ecológica , sendo
vislumbrada por alguns dos nossos principais educadores, cientistas e filósofos
contemporâneos. No
contexto desta visão, os sentimentos de pertinência, de conexidade, de
alteridade, de valores e de consciência são
integrados “a partir da perspectiva de nossos relacionamentos uns com os outros, com
as gerações futuras e com a teia da vida da qual somos parte” (CAPRA,
2000:26); (GUIMARÃES, 2004; 2005) O
desenvolvimento da consciência de uma cidadania planetária passa por momentos
distintos embora simultâneos muitas vezes: a renovação de nosso interior e a
recuperação de nosso planeta.
Também deve ser alicerçado em
valores transcendentais, envolvendo perspectivas de reconstrução dos espaços
habitados pelos seres humanos, ou seja, da valorização e resgate do sentido de
humanização de suas paisagens construídas, dando lugar às utopias mais
sagradas e desejadas que permitam o compartilhar não somente dos bens e
recursos materiais, mas da dignidade, da lealdade, da tolerância imbuídas na
experiência humana de viver na “Terra, substrato e nutriz da vida”.
(DARDEL, 1952). A
educação para a consciência de uma cidadania planetária deve ser
desenvolvida em seus princípios essenciais, sob a forma de programas de educação
para a paz, focalizando valores que promovam a inclusão, a integração das
dimensões ecológicas (biosfera, tecnosfera, psicosfera), e sobretudo, o
compartilhar, consideradas as diferenças e similaridades das várias regiões
geográficas da Terra. Esta
educação e consciência para a conservação do planeta, ao valorizarem uma
cultura de interdependência e interatividade ecológica, nos lembrariam de que
as fronteiras demarcadas por políticas e nacionalismos individualistas não
significam auto-suficiência e que a relação entre humanos e entre o ambiente
mais antiga é justamente a da interdependência. Portanto,
a educação, a ética e a justiça ecológicas se apresentam como norteadoras
destes novos rumos, das transformações profundas que trazem em seu bojo prenunciando uma nova era de
mudanças em nosso mundo vivido a partir de nós
- “um ser que
compartilha”. (BERG, 2003: 71) No
meio de todos os cenários deteriorados e desestimulantes de um mundo em
globalização, os horizontes de uma outra realidade se encontram delineados, podendo ser contemplados já à luz
da dimensão temporal do presente. Não se trata de miragens ou de sonhos sobre
utopias. Mas de um caminho aberto há
décadas por visionários e sonhadores que construíram realidades concretas,
tangíveis, que ousaram comprometer-se com a Terra e com a Vida: ouviram o
chamado em seus corações. Este
mesmo chamado continua ressoando através do coro das muitas vozes que vieram
antes de nós, que viveram outras épocas, encorajando-nos a perseverar e a
prosseguir neste mesmo caminho. A
Vida nos cobrará a vida.
O desenvolvimento da consciência de uma cidadania planetária é um
convite para coexistir e conviver, mediante o compartilhar.
Para todos nós, um exercício de esperança e um convite à ação
a partir do agora. Referências
Bibliográficas: BERG, M. O Caminho.
Rio de Janeiro: Imago, 2003. BUBER, M. Eu e Tu.
São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. CAPRA,
F. A
Teia da Vida.
São Paulo: Cultrix, 2000. DARDEL,
Eric. L'Homme
et la Terre: nature de la realité geographique.
Paris: Presses
Universitaires de France, 1952. EPSTEIN,
G. A
Terapia do Sonho Acordado. Campinas: Livro Pleno, 2001 GUIMARÃES,
S.T.L. Nas trilhas da qualidade: algumas idéias, visões e conceitos sobre
qualidade ambiental e de vida...
(no prelo), 2005. GUIMARÃES,
Solange T. de L. Dimensões da Percepção e Interpretação do Meio
Ambiente: vislumbres e sensibilidades das vivências na natureza, Percepção
e Conservação Ambiental: a interdisciplinaridade no estudo da paisagem
/ OLAM – Ciência & Tecnologia. Rio Claro: Aleph
Engenharia & Consultoria Ambiental Ltda., vol.4, n. 1, abril/2004, pp.
46-64. MATURANA,
H. R. El
Sentido de lo Humano.
Santiago:
Hachette, 1992. MORAIS,
R. de. Ecologia
da Mente.
Campinas:
Editorial Psy, 1993. MORAIS,
R. De. Espiritualidade
e Educação. Campinas:
Centro Espírita Allan Kardec/Depto. Editorial, 2002. SÁBATO,
E. Homens
e Engrenagens.
Campinas: Papirus, 1988. SCHWEITZER,
A. Decadência
e Regeneração da Cultura. São
Paulo: Melhoramentos, 1959. WARD,
B. & DUBOS, R. Uma Terra Somente: a preservação de um pequeno planeta.
São Paulo: EDUSP, 1973. Esta
reflexão é dedicada aos Amigos & Mestres, por ordem de suas passagens em
minha vida: Wilson Jacomini, Augusto Takara, Berenice Gehlen Adams, Mónica
Ester Shocron; Laura Waisman, Licurgo Nakasu, Regina Celi Ara: preciosas vivências
no caminho do compartilhar a vida. (1)
Geógrafa e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em
Geografia, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, UNESP, campus de Rio
Claro. Professora convidada no Curso de Especialização em Educação Ambiental
do CRHEA/USP, São Carlos. Contato:
hadra@uol.com.br ; www.olam.com.br GUIMARÃES,
S.T.L. Cidadania Planetária: uma
lição de coexitência e convivência através do compartilhar. Anais do Simpósio Comemorativo aos 10 Anos do Curso de
Especialização em Educação ambiental e Recursos Hídricos, CRHEA/USP, 06 a
08 de julho de 2005, pp. 118-121.
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