Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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11/06/2019 (Nº 68) PINTANDO O MURO E EXERCENDO A CIDADANIA COM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
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PINTANDO O MURO E EXERCENDO A CIDADANIA COM EDUCAÇÃO AMBIENTAL



Fernando Antonio Abath Luna Cardoso Cananéa

Fernando_abath@hotmail.com

Ailza de Freitas Oliveira

ailzafreitas@hotmail.com



RESUMO



Este registro busca refletir sobre uma ação didático pedagógica desenvolvida numa escola pública municipal da rede de ensino da cidade de João Pessoa, no primeiro semestre do ano letivo de 2017, com estudantes do 9º ano do ensino fundamental II na disciplina de Artes Cênicas. Assim como, registrar o percurso metodológico utilizado, a fim de possibilitar o acesso da sequência didática para outros(as) educadores(as), viabilizando a reaplicabilidade passível de adaptação às realidades das escolas do país afora.

PALAVRAS-CHAVE: Arte Educação. Projetos Pedagógicos. Artes Cênicas. Educação Ambiental.



ABSTRACT


This record seeks to reflect on a pedagogical didactic action developed in a municipal public school of the teaching network of the city of João Pessoa, in the first semester of the 2017 school year, with students of the 9th year of elementary education II in the discipline of Scenic Arts. As well, to record the methodological course used, in order to allow the access of the didactic sequence to other educators, making possible the reapplication that can be adapted to the realities of schools in the country.

KEYWORDS: Art Education. Pedagogical Projects. Performing Arts. Environmental education.



Arte Educação em Projetos Pedagógicos



A arte é algo continuamente presente em nossa existência. Está por onde passamos, interagimos, ignoramos, modificamos e refletimos de forma consciente ou não. Música nos aparelhos tecnológicos, TVs, celulares; sons, das vozes e movimentações; dança, no balançar dos transportes coletivos; pintura, no papel, na face, nos lábios; desenho no corpo, na roupa, nos acessórios; movimento na forma; cor, nos ambientes naturais e transformados; encenação diária de personagens no nosso dia-a-dia; ritual cotidiano coreográfico; escrita poética nos rompantes de paixão; enfim, tantas são as manifestações artísticas que protagonizamos e/ou presenciamos em nosso existir diário.

Presente em nosso cotidiano a Arte reside inclusive, no ambiente escolar, sendo neste, de forma direcionada, pedagógica e metódica, ou seja, científica e sensível aos saberes pré existentes como passo fundante à obrigatoriedade de transmissão/aquisição dos saberes historicamente acumulados.

A Arte educação em projetos pedagógicos acontece comumente como unanimidade em ações interdisciplinares. Nossa disciplina curricular é apontada como suporte para a realização de praticamente todos os feitos no ambiente escolar, geralmente utilizando as técnicas artísticas e pontualmente fazendo uso dos conteúdos próprios da disciplina, bem como, dos objetivos inerentes à mesma. No entanto, nossa prática pedagógica tem desvelado experiências que tem a Arte educação como vetor inicial, e o protagonismo dos conteúdos referentes à disciplina aprofundado e respeitado mediante sua práxis. “El proyecto que la educación popular propone a la escuela pública afianza su ideal democratizador partiendo del reconocimiento y valoración de la diversidade y heterogeneidad cultural” (GADOTTI; TORRES, 1994, p. 332). Num cenário de cultura heterogênea, diversificada também precisa ser a maneira de ensinar e aprender, teorizar e praticar, refletir e resignificar.

Este registro busca refletir sobre uma ação didático pedagógica desenvolvida numa escola pública municipal da rede de ensino da cidade de João Pessoa, no primeiro semestre do ano letivo de 2017, com estudantes do 9º ano do ensino fundamental II, com faixa etária entre 13 e 15 anos de idade, na disciplina de Artes Cênicas. Assim como, registrar o percurso metodológico utilizado, a fim de possibilitar o acesso da sequência didática para outros(as) educadores(as), viabilizando a reaplicabilidade passível de adaptação às realidades das escolas do país afora.

Território de Atuação e Motivações para a Ação Interdisciplinar

Embora atenda estudantes de bairros populares da cidade de João Pessoa a escola está localizada num bairro nobre, e por isso, encontra-se ladeada de imponentes prédios residenciais e comerciais com modernas construções que atendem ao rigoroso padrão daqueles(as) que os frequentam, no entanto, o belo cenário é diariamente poluído com o alto acúmulo de lixo depositado nas calçadas que rodeiam a escola, embora a coleta seja realizada diariamente, muitos são os descartes depositados nas vias de acesso aos portões da escola, obrigando pedestres a desviarem pelo asfalto, disputando espaço entre os veículos e desfrutando do mal cheiro provocado pelo excesso de lixo.

Lojas direcionadas à classe alta da sociedade, grifes de luxo, prédios residenciais de elevado padrão, empresariais diversos, escolas privadas, inúmeros salões, cafés, restaurantes tradicionais, famosas lanchonetes de fest food, supermercados, laboratórios, clínicas médicas, entre outros empreendimentos têm seus endereços nos arredores da escola e em suas calçadas depositam todos os seus inservíveis diariamente. Apenas e exclusivamente nas calçadas da escola pública o lixo é descartado dia-a-dia.

Este cenário contrastante dos arredores da escola, situando lixo e luxo, foi o motivador para que a disciplina de Artes Cênicas atuasse com educação ambiental em prol da preservação do meio ambiente que cerca a escola e consequentemente, influi de forma direta no cotidiano de todos(as) que a frequentam e necessitam acessar passando por entre os desvios do lixo nas calçadas.

Fonte: Autores durante a aula de campo prática, 2017.

Há inúmeras calçadas passíveis de depósito de lixo, no entanto, o lixo tem sido depositado exclusivamente nas calçadas da escola pública, se repetindo igualmente em todos os lados do quarteirão, ou seja, prática regular de várias edificações. “Seria uma ingenuidade pensar que o poder de classe, de classe dominante, assistisse indiferente e até estimulando, ao esforço desvelador realizado por educadoras e educadores progressistas, no exercício de sua prática docente” (FREIRE, 2007, 101-102). Sabemos que nosso convite à reflexão não deve ocorrer de forma autoritária, grosseira, nem ameaçadora, esses não são papeis sociais que devem ser estimulados na escola, ao contrário, o convite ao diálogo mediado pelo desejo de compreender o outro é nossa característica virtuosa.



Artes Cênicas e Educação Ambiental

Nossa forma de questionamento, protesto e conscientização se efetivou por intermédio da arte, com criatividade e técnica de pintura nos muros, com mensagens ilustradas como forma de alerta, uma vez que as solicitações verbais (entre gestão e vizinhança) para a retirada do lixo não obtiveram êxito. Para Harvey (2011, p. 68), “O que chamamos de mundo natural não é uma entidade passiva”, dessa forma, educadoras das disciplinas de Ciências e Língua Portuguesa foram convidadas a integrarem a ação interdisciplinar em conjunto com a disciplina de Artes Cênicas mediadas pelo conteúdo poesia concreta e o tema transversal educação ambiental.

Tal como fue diseñada por los sistemas nacionales de educación la escuela pública tenía como ideal una noción de democratización que asimilaba universalidad a homogeneización cultural; de este modo acultaba una imposición cultural al negar la heterogeneidad cultural (GADOTTI; TORRES, 1994, p. 332).

A consciência da heterogeneidade cultural existente dentro do ambiente escolar nos conduz a aprendermos bastante com nossos(as) estudantes, ouvindo-os(as), com isso, juntos(as) vamos construindo os caminhos a serem percorridos pedagogicamente. Nossa escola pública é regada por diálogo e respeito à diversidade de saberes que nela habita, por isso, embora seja difícil atingir nossos objetivos pedagógicos, diante dos inúmeros obstáculos sociais, geralmente conseguimos.

As Artes Cênicas e a educação ambiental deram as mãos nesse fazer pedagógico obtendo significado satisfatório entre todos(as) os(as) envolvidos(as) e mobilizando visualmente com nossas pinturas nos muros a população atuante no entorno escolar. A poesia de fato se concretizou e figurou nos muros dando voz aos que fazem a escola por intermédio suave e delicado, mas direto e objetivo do desenho, da pintura, da criatividade, enfim, da arte na educação.

Pintando o Muro e Exercendo Cidadania

Acreditamos que o que deve ser ensinado e aprendido na escola precisa ter significado para todos(as) os(as) envolvidos(as) no processo pedagógico, e isso pode se efetivar num elo de respeito entre a transmissão do conhecimento historicamente acumulado e a experiência oriunda da realidade dos que juntos(as) aprendem e ensinam.

Se valores humanos como o amor pelo outro, a solidariedade ativa, o desejo do bem, a vontade da paz, o cuidado partilhado para com o ser-da-vida, a cooperação entre iguais diferenciados ao invés da competição entre diferentes tornados desiguais e, enfim, a responsabilidade de cada um de nós para com a felicidade de pessoas e de povos podem ser ensinados e devem ser aprendidos, então a escola não pode se furtar a ser uma de suas postas de entrada (BRANDÃO, 2002, p. 131-132).

Na escola estimulamos hábitos saudáveis de convivência com resiliência, tolerância e respeito, a si, aos outros(as), ao meio ambiente. Agindo em consonância com esses valores sociais iniciamos nosso percurso pedagógico na disciplina de Artes Cênicas com debate inicial sobre a questão do depósito errôneo do lixo nos arredores da escola e a possibilidade de pintarmos os muros com mensagens criativas e ilustradas de estimulo a higiene do lugar coletivo. “As escolas e a prática educativa que nelas se dá não poderiam estar imunes ao que se passa nas ruas do mundo” (FREIRE, 2007, 101-105). Fomos atingidos pelo ocorrido externamente e motivados a agirmos em busca da mudança comportamental.

Fizemos tempestade de ideias com várias sugestões de ilustrações oriundas dos estudantes e nas aulas expositivas seguintes aprendemos sobre o conteúdo poesia concreta. Lemos textos, visualizamos slides com exemplos, fizemos exercícios escritos, dinâmicas práticas, leituras dramáticas de textos sobre a temática e esboço dos desenhos individuais contendo poesia concreta sobre a temática da preservação ambiental e conscientização do descarte adequado do lixo.

Concomitantemente, na disciplina de Ciências a professora proferiu aula expositiva e debate sobre a educação ambiental, os danos que o descarte errôneo do lixo ocasiona e a necessidade de preservar o ambiente. Enquanto na disciplina de Língua Portuguesa ocorreu o aprofundamento sobre o conteúdo poesia concreta e a apreciação estética de poemas concretos como possibilidades de ampliar a criatividade. Esta sincronia permitiu a elaboração de poemas concretos originais.

Após as ideias surgirem os(as) estudantes foram individualmente concretizando-as em folhas de papel A4, colorindo-as, testando-as, e em seguida, coletivamente debatendo-as, apresentando-as a turma, ouvindo sugestões, aperfeiçoando-as com reelaborações e por fim, após aprovação, ansiosamente transferidas para os muros.

A construção da relação com a natureza como inerentemente dialética indica uma série de possíveis transformações nos comportamentos humanos bem como um processo de evolução natural, incluindo a produção humana da própria natureza, que torna essa relação dinâmica e perpetuamente aberta (DAVID, 2011, p. 67).

Agora o lixo não impera mais solitário, ao seu redor, falam painéis pintados nos muros por jovens protagonistas da escola pública, mobilizados por um trio de educadoras e por ideias de preservação ambiental, respeito ao meio em que vivemos e cuidado com o caminho que conduz ao espaço físico escolar, pois nele, se projetam sonhos e se tentam realizações.

Se não atingimos os que depositam o lixo, certamente, os(as) estudantes da escola não se associarão a eles(as), pois foram desmotivados(as) com as reflexões resultantes desse trabalho pedagógico a sujarem também. E se isso não é tudo, para nós, educadoras(as) envolvidas, é muito, por conseguirmos sensibilizar nossos(as) estudantes. E são eles(as) que desejamos alcançar didática e pedagogicamente.

Com mediação das categorias presentes na educação popular, como solidariedade, diálogo, amorosidade, identidade, cooperação e coletividade, podemos realizar ações pedagógicas que humanizam o ambiente escolar democratizando a cultura, a ciência e o conhecimento. Respeitando o lugar específico da escola ao tempo em que desrespeitando as relações de poder, por rompermos as possibilidades de democratização do saber, atingindo/alcançando todos(as) que na escola estão, inclusive, os que compõem a escola pública e sobretudo a classe baixa da sociedade.

La escuela tiene um lugar específico en el campo cultural que consiste en democratizar la cultura, el acceso al conocimiento y a la ciencia. Esta función la cumple de un modo desigual, reproduciendo así a través de las relaciones de saber, las relaciones de poder en la sociedad (GADOTTI; TORRES, 1994, p. 331).

Embora as relações de poder presentes na sociedade não viabilizem que o lixo deixe de ser depositado nas vias de acesso a escola pública, fortalecendo a desigualdade social entre as relações de saber e de poder, como educadoras, é nosso dever continuarmos a fazer, motivando e refletindo em respeito ao lugar teoricamente específico da escola, enquanto campo cultural que permite e viabiliza o acesso ao conhecimento e a ciência. Mas, para, além disso, sensibiliza e estimula o diálogo, o respeito e a cidadania.

Esta micro experiência vivenciada numa escola pública que agora registramos com o recurso da linguagem escrita é um exemplo prático de conexão entre a realidade específica de nossa escola e a construção coletiva de saberes e aprendizagens. Aguçando competências protagonizadoras com nossos(as) estudantes oportunizamos dinamismo ao conteúdo teórico estudado, além de aproximarmos a educação pública da educação popular. Nosso desejo é que este registro sirva como inspiração para novas práticas pedagógicas e que as críticas construtivas oriundas deste, nos conduzam a novas aprendizagens.

Una madura relación entre la educación pública y la educación popular puede ser muy fecunda. Por un lado, la primera aporta a la segunda la possibilidad de masificar y replicar sus microexperiencias. Por otro, la educación popular puede desde ló específico y lo cotidiano contribuir a la elaboración del curriculum y de los contenidos de modo que éstos no estén desconectados de las realidades específicas y de las competências que permiten a los sectores populares ser protagonista en la construcción de una sociedad más justa y democrática (GADOTTI; TORRES, 1994, p. 333).

Justiça e democracia são imperativas na interrelação do universo escolar com o cotidiano do mundo, não há sociedade justa sem ser democrática, e vice-versa. Assim como, não há sociedade justa e democrática sem que a escola também o seja. O ambiente escolar é um micro organismo social, nele é refletido o que decorre da sociedade em que está inserido. Em nossa escola buscamos atuar com justiça e democracia. Uma forma de sermos justos(as) com o meio ambiente é respeitando-o e compreendendo-o como algo de posse e uso democrático por e para todos(as) que compõem o universo. Assim, preservar se faz mister.



Reflexões Pertinentes



A integração dos feitos educacionais com as ocorrências do entorno escolar, relacionando conteúdos e formas aos fazeres sociais movimenta o corpo docente e discente na transformação da função escolar enquanto entidade socialmente articulada e mobilizada, historicamente situada e definida, politicamente presente e projetada, pedagogicamente atuante e aprendente, e, artisticamente existente e necessária.

Es necesario transformar la función social de la escuela que há estado tradicionalmente ligada a la transmisión de un saber ya definido en función de la integración social. El acceso al saber universal no debe inplicar el acceso a un saber abstracto, desconectado del contexto cultural y social. El desafio teórico y metodológico es pensar cómo el curriculum contiene lo universal y a la vez permite la expresión de los saberes particulares (GADOTTI; TORRES, 1994, p. 333).

Os saberes particulares dos(as) estudantes foram acolhidos e somados aos saberes trazidos sobre os conteúdos e essa fusão resultou numa ação prazerosa e significativa para todos(as) os(as) envolvidos(as) no processo pedagógico. Aqui o saber universal se conectou ao saber local e fez história.

Diante da concretização de ações interdisciplinares como essa, percebemos que “Cabe a elas e a eles, finalmente, fundados nestes saberes, fazer educação popular, no corpo de uma rede sob o comando autoritário antagônico” (FREIRE, 2007, 103). Neste caso, eles(as) somos todos(as) nós envolvidos(as) no fazer educacional na rede pública de ensino. Enquanto o autoritarismo grita as impossibilidades, a utopia possível sussurra o caminho e nos move ao fazer com poesia e sensibilidade, fundamentação e leveza, significado e significância.



REFERÊNCIAS



BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Soletrar a letra P: povo, popular, partido e política – a educação de vocação popular e o poder do Estado. In: FÁVERO, Osmar; SEMERARO, Giovanni (org.) Democracia e Construção do Público no Pensamento Educacional Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2002.

DAVID, Harvey. O enigma do capital: as crises do capitalismo. Tradução de João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. 8. ed. Coleção Dizer a Palavra. São Paulo: Villa das Letras, 2007.

GADOTTI, Moacir; TORRES, Carlos A. Educação Popular – utopia, latinoamericana. São Paulo: Cortez/EDUSP, 1994.



Ilustrações: Silvana Santos