Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Relatos de Experiências
27/09/2019 (Nº 69) A ATIVIDADE DOCENTE DO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA RIBEIRINHA EM CLASSES MULTISSERIADAS
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A ATIVIDADE DOCENTE DO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA RIBEIRINHA EM CLASSES MULTISSERIADAS



Georgina Terezinha Brito de Vasconcelos1, Gelciane da Silva Brandão2

1 Doutora em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

2 Mestre em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia, Universidade do Estado do Amazonas.



Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar alguns aspectos que permeiam a prática docente do professor que atua em comunidades ribeirinhas com classes multisseriadas, no município de Parintins estado do Amazonas. A finalidade deste estudo foi analisar como se desenvolvia a atividade docente do professor da educação básica ribeirinha nas escolas multisseriadas em comunidades ribeirinhas do município de Parintins, Estado do Amazonas e quais as implicações no processo ensino aprendizagem da criança, uma vez que essa criança possui saberes específicos que são permeados por aspectos culturais e sociais, que fazem parte de seu universo local. A pesquisa realizada foi de cunho etnográfico (ANADRÉ, 2011), e os instrumentos para a produção dos dados, consistiram em: observação participante, entrevista não estruturada, análise de documentos. O arcabouço teórico-metodológico foi centrado na Psicologia Sócio Histórica de Vygotsky (2001) e no Materialismo Histórico e Dialético (MARX, 1978) e outros autores que contribuíram para a investigação. Os resultados apontaram que os pressupostos e saberes necessários à constituição da atividade docente do professor são diversos. Todavia, o processo de ensinar e aprender em uma escola ribeirinha multisseriada, deve ser pautado na organização, planejamento e adequação, de forma a atender às especificidades locais, sem perder de vista os saberes específicos dos alunos e as condições histórico-sociais em que ocorrem.

Abstract: The present article aims to present some aspects that permeate the teaching practice of the teacher who works in riverside communities with multisite classes, in the municipality of Parintins state of Amazonas. The purpose of this study was to analyze how the teaching activity of the teacher of the riverside basic education was developed in multi-state schools in riverside communities of the municipality of Parintins, State of Amazonas and what are the implications in the teaching process of the child, since this child has knowledge which are permeated by cultural and social aspects that are part of their local universe. The research was ethnographic (ANADRÉ, 2011), and the instruments for data production consisted of: participant observation, unstructured interview, document analysis. The theoretical-methodological framework was centered on Vygotsky's Historical Social Psychology (2001) and on Historical and Dialectical Materialism (MARX, 1978) and other authors who contributed to the research. The results pointed out that the assumptions and knowledge necessary for the constitution of the teaching activity of the teacher are diverse. However, the process of teaching and learning in a multiseriate riverside school should be based on organization, planning and adaptation in order to meet local specificities, without losing sight of the specific knowledge of the students and the social and historical conditions in which they occur.

INTRODUÇÃO

A formação de professores, desde o ano de 1970, integra debates no Brasil que vêm se ampliando ao longo de várias décadas, todavia, o ápice dessas discussões torna-se mais intensificado a partir das décadas de 80 e 90, com a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996. Muitos estudos desde então, apontam para as necessidades e os conflitos recorrentes ao tema que inclui entre outros aspectos a atividade docente e suas especificidades e as condições histórico-sociais em que ocorrem, tema este que será abordado neste estudo.

As pesquisas mostram que a atividade docente se constitui a partir das experiências vivenciadas pelos professores, e tem peso aos acadêmicos e aos profissionais. Gimeno Sacristán (1995, p. 65) corrobora com esse pensamento ao afirmar que a profissionalidade docente está associada ao “conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”.

Esses elementos não são fixos, mas adquiridos e modificados ao longo do exercício da profissão, portanto, é um processo contínuo, com suas bases nos saberes e fazeres adquiridos/construídos pelos professores. Complementando esse pensamento, Freire (2013, p. 47), diz que “ensinar não é transferir conhecimento”. O autor afirma ser esse um saber necessário ao professor, não apenas ser aprendido por ele, mas também pelos educandos na perspectiva ontológica, epistemológica, política, ética e pedagógica.

O discurso teórico do professor deve ser um exemplo concreto e prático da teoria, ou seja, o que Freire (2013, p. 47) propõe, é que “tanto professor quanto alunos, vivenciem cotidianamente esses saberes teóricos”.

Diante do exposto, até o momento acerca da atividade docente, o presente estudo teve o objetivo de investigar como acontece a atividade docente do professor da educação básica ribeirinha em uma comunidade Amazônica.

A FORMAÇÃO DOCENTE: DIFERENTES PERSPECTIVAS

As pesquisas relacionadas à formação e ao trabalho docente têm se ampliado significativamente tornando-se cada vez mais pertinente uma discussão sobre como vem se configurando esse campo de estudos. Ao iniciarmos nossa abordagem sobre a temática em questão, fundamentamos nossa argumentação em alguns autores que tratam especificamente sobre o assunto. Nesse sentido, apoiamo-nos inicialmente em Imbernón (2002), o qual concebe a formação docente como um processo contínuo de desenvolvimento profissional, que tem início na experiência escolar e prossegue ao longo da vida, vai além dos momentos especiais de aperfeiçoamento e abrange questões relativas a salário, carreira, clima de trabalho, estruturas, níveis de participação e de decisão. Garcia (2009, p. 7) nos explica que a formação docente é “um processo a longo prazo, no qual se integram diferentes tipos de oportunidades e experiências planificadas sistematicamente para promover o crescimento e o desenvolvimento profissional”.

André (2010, p.274) esclarece que “nesta atualização do conceito proposto por Garcia (2009), sobre formação docente, fica claro o caráter intencional envolvido nos processos de desenvolvimento profissional e a importância do planejamento”. Outro aspecto importante com relação à formação de professores, segundo Garcia (2009), é a questão da identidade profissional. Para ele, trata-se de um “elemento indispensável para o desenvolvimento profissional”.

Concordando com Garcia, assumimos o posicionamento de que a identidade profissional realmente é um aspecto importante para o desenvolvimento profissional do professor, pois entendemos que cada um é um ser singular, social, histórico capaz de transformar e ser transformado e se constituir enquanto sujeito dessa realidade.

Assim, diante da opinião dos autores citados, suas abordagens nos levam a refletir que, o processo de formação docente enquanto processo de formação de profissionais de ensino, deve ser um processo de “aprendizagem profissional ao longo de sua vida” como bem diz André (2010 p. 274), pois os conhecimentos teóricos aprendidos nos cursos de formação por si só não se constituem em elementos fundamentais para a efetivação da atividade docente, se não, aliados aos conhecimentos práticos, que são viabilizados através das atividades práticas. Essa indissociabilidade entre teoria e prática é fundamental para a execução do trabalho do professor.

Recorrendo a Marx (1978, p.14) com relação à práxis, o autor assim se reporta “práxis é a atitude (teórico-prática) humana de transformação da natureza e da sociedade. Não basta conhecer o mundo (teórico), é preciso transformá-lo (práxis)”. Assumimos, neste trabalho, os preceitos teóricos sobre formação docente defendidos por Garcia e recorremos a Marx para fortalecer nosso pensamento sobre práxis. Se somos seres constituídos a partir de nossa história, o que constitui a profissionalidade docente do professor de educação infantil em uma comunidade ribeirinha?

Na tentativa de responder a este e outros questionamentos, relacionados à profissionalidade docente do professor da educação infantil ribeirinha, realizamos este estudo e esperamos encontrar respostas para nossas indagações.

A ATIVIDADE DOCENTE

Para iniciarmos a abordagem sobre atividade, recorremos ao conceito de atividade em geral apontado por Vasquez (2007, p. 220), que conceitua atividade como “um conjunto de atos de um sujeito ativo que modifica uma determinada matéria atos de um sujeito ativo que modifica uma determinada matéria prima que lhe é exterior, cujo resultado é um produto de diferentes naturezas”.

Outro autor que recorremos para aprofundar nosso entendimento sobre a questão da atividade é Vygotsky (2001, p. 72), que assim postula “o homem transforma a natureza e a si mesmo na atividade, e é fundamental que se entenda que esse processo de produção cultural, social e pessoal tem como elemento constitutivo os significados”.

Aguiar e Ozella (2006, p. 225), corroboram conosco afirmando que “o homem constituído na e pela atividade, ao produzir sua forma humana de existência, revela em todas as suas expressões – a historicidade social, as relações sociais, a ideologia e as relações de produção”.

Marx, (1844/1978, p. 15) com relação à temática em questão, assim se expressa “toda a assim chamada história universal nada mais é do que a produção do homem pelo trabalho humano”. Com essa afirmação, Marx nos mostra o trabalho não como uma atividade qualquer, mas uma atividade que produz o próprio homem por meio da apropriação da história.

Recorremos aos vários conceitos de atividade, para entendermos como se dá esse processo e fundamentar nosso estudo à luz das várias teorias e, principalmente, entendermos que a atividade humana se caracteriza como produto da consciência, nessa perspectiva, Vásquez argumenta: “A relação teoria e práxis é para Marx teórica e prática; prática na medida em que a teoria como guia da ação, molda a atividade do homem, particularmente a atividade revolucionária; teórica na medida em que essa relação é consciente”. (VASQUEZ, 2007, p.220).

De acordo com os pressupostos teóricos apontados pelos autores citados, entendemos que a atividade humana caracterizada como produto da consciência, leva o sujeito a tomar determinadas atitudes diante da realidade que lhe é apresentada. Sendo a atividade docente constituída de elementos teóricos e práticos, ela se apresenta como práxis humana e como tal se transforma em práxis educativa, ou seja, a prática docente torna-se então uma atividade da educação, sendo assim, a unidade teoria e prática torna-se fundamental para o exercício dessa atividade.

Assim, a atividade docente caracterizada como uma atividade da educação requer preparo da pessoa que irá executá-la, a compreensão de que a educação é uma prática social, logo, a atividade docente é uma prática social realizada através da práxis. Pimenta (2011, p. 105), nos brinda afirmando que:

[...]a Pedagogia enquanto ciência que estuda a educação, tem no seu âmbito o estudo da atividade docente – do exercício e do preparo dessa atividade, preparo que não se esgota nos cursos de formação, mas para o qual o curso pode ter uma contribuição específica enquanto conhecimento sistemático da realidade do ensino- aprendizagem na sociedade historicamente situada, enquanto possibilidade de antever a realidade que se quer.

Diante do que foi abordado, entendemos que a atividade docente, enquanto atividade da educação torna-se uma atividade de ensino que consequentemente necessita de um profissional habilitado para a efetivação da mesma, nesse sentido, o profissional capacitado para a execução da atividade de ensino é o professor, pois sua tarefa consiste, entre outros aspectos, em um processo de humanização, organização, elaboração, análise, planejamento, execução e apresentação de resultados de todo esse processo de ensino.

O AMBIENTE RIBEIRINHO

A Amazônia se caracteriza por apresentar uma biodiversidade e cultura únicas. Segundo Cavalcante e Weigel (2004, p. 81), “é composta por uma população indígena composta por cerca de 200 mil índios, que constituem 81 etnias diferentes em pleno uso de suas línguas e culturas específicas”. Além da população indígena, compõe também esse contexto, a cultura cabocla, vivenciada pelos grupos de ribeirinhos que habitam as margens dos rios, lagos e igarapés que fazem parte do ambiente amazônico.

Ribeirinhos são as pessoas que moram próximo aos rios, que fazem parte principalmente do complexo hidrográfico, situado na Região Norte do país. Além de apresentarem peculiaridades e características próprias, suas principais atividades são a pesca, extrativismo vegetal e o cultivo de pequenos roçados para sua própria subsistência. Suas atividades estão diretamente relacionadas com os rios, pois além de servirem como via de locomoção, servem também para lazer e meio de sobrevivência, daí a importância e o significado atribuídos aos rios para essas pessoas.

Pensar a educação no contexto ribeirinho é tentar estabelecer uma relação com esta realidade, pois é esse contexto diferenciado que se constitui em um lócus de desenvolvimento para o aluno, que muitas vezes nos é desconhecido.

Mota Neto (2004, p.82) apresenta algumas peculiaridades típicas desses ambientes, que exercem influência direta nas escolas, entre as quais destaca: as escolas apresentam condições precárias tanto físicas quanto pedagógicas; dificuldades no acesso e continuidade nos estudos, provocados pela distância, acesso e deslocamento até os lugares das aulas; constante rotatividade dos docentes; falta de professores e organização pedagógica em classes multisseriadas que abrangem a Educação Infantil até os anos iniciais do Ensino Fundamental.

No geral, essas escolas funcionam em espaços comunitários como salões comunitários, residências, centros paroquiais entre outros, geralmente fazem parte do sistema municipal de ensino. São esses espaços educacionais que proporcionam a professores e alunos um convívio em diferentes estágios de aprendizagem. Dessa forma, o professor vai se constituindo e constituindo sua profissionalidade, tendo como pano de fundo, um ambiente que a princípio lhe é desconhecido, mas com grandes possibilidades de propiciar ao professor, a construção de uma atividade docente, pautada na realidade local com um enfoque cultural, que possibilite tanto ao professor e principalmente ao aluno o estabelecimento de uma identidade.

A ATIVIDADE DOCENTE NO AMBIENTE RIBEIRINHO E SUAS ESPECIFICIDADES

Segundo o materialismo histórico, a atividade humana é sempre significada: o homem, no agir humano, realiza uma atividade externa e uma interna, e ambas as situações operam com os significados. Nessa perspectiva, Vygotsky (2001, p.72) lembra que internalizamos não o gesto como materialidade do movimento, mas a sua significação, a qual tem o poder de transformar o natural em cultural.

Exemplificando a perspectiva de Vygotsky, elencamos alguns aspectos da atividade docente, que é comum a todos os professores independente de ser da zona urbana ou rural, entre as quais destacamos: a organização do tempo e espaço, preparo da sala para receber as crianças, planejamento da rotina levando em consideração as crianças que irão fazer parte daquele contexto escolar, elaboração de projetos tendo em vista os saberes das crianças entre outras.

Os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil (RCNEI 1997), em seu artigo 3º, define o currículo como:

Um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de zero a cinco anos. (RCNEI, 1997)

A partir desses pressupostos, vamos abordar alguns aspectos que devem integrar o processo de constituição da prática docente do professor da Educação Infantil ribeirinha em um ambiente amazônico.

Sabemos que a Região Amazônica apresenta peculiaridades e particularidades que são típicas da região, principalmente no que se refere às questões ambientais e climáticas da região. É uma região que apresenta um alto índice pluviométrico, um clima quente e úmido, uma floresta, composta de uma vegetação densa e o “fenômeno da cheia,” como é conhecido em toda região, o período do ano em que as águas dos rios se elevam, provocando enchentes e inundações em alguns estados e municípios que fazem parte do complexo amazônico.

Tendo o fenômeno da enchente dos rios como peculiaridade, a educação escolar nas comunidades ribeirinhas sofre as consequências desse fenômeno natural. As escolas que estão inseridas nas comunidades ribeirinhas de várzea têm um calendário escolar diferenciado, iniciando o período letivo em setembro ou outubro, variando de acordo com o período da vazante do rio e terminando o período letivo em abril ou maio, conforme também o período de enchente do rio.

Nesse contexto, o professor inicia suas atividades docentes, organizando e planejando suas atividades, adequando a organização pedagógica do espaço escolar de forma a atender as especificidades locais, mas sem perder de vista as características partilhadas com a Educação Infantil para todas as crianças, de acordo com os preceitos propostos nos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI, 1997).

Dessa forma, professores e alunos vão se constituindo enquanto sujeitos dessa realidade como afirma Vygotsky (2001, p.74), “o homem é um ser ‘dialético’, constituído historicamente na relação com o social, o que o torna único e singular”. Todavia, segundo ele, este homem se constitui na e pela atividade. Complementando o pensamento de Vygotsky, Freire (2008, p.47) nos fala da “importância da relação em tudo que fazemos na nossa experiência existencial enquanto experiência social e histórica”.

PERCURSO METODOLÓGICO

Esta é uma pesquisa do tipo etnográfico fundamentada na Psicologia sócio histórica, cuja a base está na Psicologia Histórico Cultural de Vigotski (2001). Fundamentada no marxismo, adota o materialismo histórico dialético como filosofia teoria e método. Ao analisarmos uma dada realidade precisamos conhecer todos os seus contrapontos, conhecer os fatos da maneira como eles se apresentam; dessa forma, Marx e Engels (1999, p.26) afirmam que “os fatos dos quais partem não são arbitrários nem são dogmas, são pressupostos reais”. Seguindo ainda os preceitos de Marx (1978, p.130) ele nos diz “não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.

Ancorados nos princípios marxistas pretendeu-se investigar a atividade docente do professor que atua na escola, o cotidiano dos alunos e dos comunitários que vivem na comunidade, as relações produzidas entre os sujeitos e em que condições materiais essas relações são produzidas, pois, seguindo a linha de pensamento de Marx e fundamentada em Vigotski, as formas singulares de linguagem, pensamento, sentimentos e ações formam um conjunto de relações, em que o homem se constitui como verdadeiramente humano.

Além de desenvolvermos uma pesquisa nos parâmetros do materialismo histórico dialético, fundamentamos a abordagem como estudo de caso do tipo etnográfico. Segundo André (2013, p.15), “a pesquisa etnográfica é uma adaptação da etnografia ao estudo de um caso educacional”.

Os instrumentos utilizados para a produção dos dados foram: observação participante, entrevista não estruturada e análise de documentos. A observação participante segundo André (2013, p.30) “possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado”. Foram feitas observações do cotidiano da comunidade, as relações sociais dos sujeitos e as atividades docentes desenvolvidas pelo professor em sala de aula.

A entrevista semiestruturada permitiu analisar como o professor se constitui como sujeito em um ambiente tão diverso e específico e como se constituía sua atividade docente em um ambiente ribeirinho, onde as atividades escolares são influenciadas pelo período de enchente e vazante do rio.

O lócus da pesquisa foi uma escola municipal multisseriada de educação básica, escola Nossa Senhora da Conceição, na comunidade ribeirinha Nossa Senhora da Conceição, no município de Parintins, estado do Amazonas. Os sujeitos da pesquisa foram, 03 professores, 08 alunos e 03 comunitários.

A técnica de análise de documentos é valiosa pelo fato de que os documentos constituem uma fonte rica e estável de informações, podendo ser consultados diversas vezes. Os diferentes tipos de documentos escritos podem incluir leis e regulamentos, normas, cartas, memorandos, diários pessoais, autobiografias, jornais, discursos, estatísticas e arquivos escolares. Os documentos analisados foram o calendário escolar, o plano de trabalho do professor, a ata de fundação da comunidade e da escola.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os resultados obtidos durante a trajetória da investigação, apontaram que os saberes necessários para a realização de uma prática docente são diversos, tendo o fenômeno da enchente dos rios, como uma das principais peculiaridades das escolas ribeirinhas. Sabemos que a região Amazônica, peculiaridades e particularidades que são típicas da região, principalmente no que se refere às questões climáticas e ambientais. Apresenta um alto índice pluviométrico, uma floresta composta por uma vegetação densa e “fenômeno da cheia”, como é conhecido em toda a região, o período do ano em que as águas do rio se elevam.

Esse fenômeno influencia diretamente na educação escolar das comunidades ribeirinhas, pois promove uma forma diferenciada de realizar essa educação, começando por um calendário escolar específico, em que as aulas iniciam em setembro de um ano, (época em que os rios da Amazônia encontram-se no período da seca), e, terminam no mês de março ou abril do outro ano quando o rio inicia seu processo de enchente.

Nesse contexto, o professor inicia suas atividades docentes, organizando e planejando suas atividades, adequando a organização pedagógica do espaço escolar de forma a atender as especificidades locais, sem perder de vista as características partilhadas da escola multisseriada, dos saberes e experiências locais, constituindo assim um significado para a sua atividade docente que até então lhe é desconhecido.

Segundo o materialismo histórico, a atividade humana é sempre significada: o homem no agir humano, realiza uma atividade interna e outra externa, e ambas as situações operam com significados. Dessa forma, professores e alunos vão se constituindo enquanto sujeitos dessa realidade, que é muito conhecida para o aluno, mas, muitas vezes é desconhecida para o professor.

Outro ponto analisado, foi a grande rotatividade dos professores, que acontece em decorrência da falta de estrutura oferecida pela secretaria na comunidade. O professor necessita morar na comunidade, pois, não é possível ele ir e vir para a comunidade todos os dias e as condições de moradia para o mesmo são precárias, uma vez que o espaço físico destinado para esse fim, não possui condições físicas e estruturais adequadas para uma convivência diária saudável, e isso faz com muitas vezes o professor que vai trabalhar na escola não se adapte à realidade local, então, ele acaba desistindo e voltando para a cidade abandonando o trabalho.

Alguns aspectos foram elencados como obstáculos para a efetivação do trabalho do professor, entre os quais destacamos:

  • Condições precária do alojamento dos professores;

  • Falta de acompanhamento e orientação pedagógica para o professor;

  • Condições físicas precárias do prédio escolar devido a enchente do rio;

  • Falta de material didático;

  • Professores sem preparação para trabalhar com classe multisseriada;

Todavia, vale ressaltar aqui que a escola da terra e da água, como parte integrante do ambiente ribeirinho, proporciona momentos de ricas experiências e aprendizagem para os sujeitos que dela fazem parte e dela se apropriam. Os ribeirinhos da várzea, por possuírem um contato direto com a água, apresentam um conhecimento mais aprofundado sobre determinados fenômenos que é passado de geração a geração. Tanto o caminho feito por terra, quanto por água para chegar a escola, é permeado por saberes empíricos que as crianças aprendem desde cedo, entre estes destacamos: o modo como pegar o remo, conduzir a canoa no rio, o horário em que coloca a malhadeira (rede de pesca) para pegar o peixe etc.

Esse foi outro aspecto analisado, em que foi detectado que os saberes tradicionais que estão presentes no cotidiano da comunidade, não interagem com o saber sistematizado, embora a proposta curricular, apresente conteúdos que podem estabelecer uma atividade docente pautada numa perspectiva interdisciplinar. Todavia, apesar de todos esses entraves e obstáculos, a professora que serviu de sujeito e ministrou aula durante a realização da pesquisa, foi a única que iniciou e terminou o ano letivo na escola, realizando uma atividade docente pautada nos saberes e experiências da comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os pressupostos e saberes necessários à constituição de uma prática docente, são diversos, entretanto, nossa intenção não é aprofundarmos todos os saberes da prática docente. Nosso objetivo ao discutir o tema, é refletir sobre como se constitui a atividade docente do professor da Educação básica ribeirinha, à luz das abordagens apresentadas para compreendermos melhor o processo de ensinar e de aprender e de vivê-lo em sua plenitude em um contexto educacional ribeirinho.

Com base nas reflexões deste estudo, podemos considerar que a atividade docente do professor da Educação básica ribeirinha, deve ser compreendida como uma prática pautada na organização, planejamento e adequação, de forma a atender as especificidades locais, mas sem perder de vista os saberes específicos das crianças, sua história de vida, suas relações sociais, para que juntos, possam constituir-se sujeitos transformadores e transformados para todas as práticas, de modo que a atividade docente do professor, não se constitua em mera reprodução de programas vazios de sentido, mas, em um processo contínuo e permanente de reflexão sobre sua prática para a realização de ações libertadoras, críticas e transformadoras.

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Ilustrações: Silvana Santos