Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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A IMPORTÂNCIA DA ASSOCIAÇÃO DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: O CONTEXTO SOCIAL DOS CATADORES
Simone Sedano Fontão Mestrando em ciências, tecnologia e educação pela Faculdade Vale do Cricaré - FVC, Faculdade de filosofia ciências e letras Madre Gertrudes de São José; simonefontao@hotmail.com, sítio Leonel 2, zona rural, Presidente Kennedy-ES, (28) 999550360. Lilian Pittol Firme de Oliveira Doutora em Agronomia, UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA- UFV; LPFIRME@GMAIL.COM, R. JOSÉ ANTÔNIO DA SILVA, 36, VERA CRUZ, CARIACICA-ES, 27 99831-7895. RESUMO Os catadores de materiais recicláveis se caracterizam, essencialmente, por serem um grupo discriminado pela sociedade e condenados a viverem às margens da sociedade. No entanto, a partir da organização destes grupos, percebe-se que é possível reverter este quadro discriminatório e promover o efetivo desenvolvimento socioeconômico desta categoria de trabalhadores, que muito contribui para a sustentabilidade do planeta. Na verdade, isto já vem acontecendo em diversas associações e cooperativas de catadores espalhados pelo Brasil e pela América Latina. Desta forma, pretendeu-se entender de que forma a Associação de Catadores de Presidente Kennedy contribui como instrumento de mudança social na vida dos catadores. Sendo assim, é importante sobretudo, tendo como objetivo geral compreender as contribuições da associação como instrumento de mudança e promotora da cidadania dos catadores. Desta forma, configura-se uma pesquisa qualitativa, neste sentido, ela se deu através da condução e análise de grupo focal, estudo de caso e pesquisa bibliográfica que nos permitiu uma análise das questões levantadas. Portanto, foi possível perceber que o sucesso de uma associação pode ser atribuído à construção coletiva, a partir dos sonhos, dores e esperanças de pessoas que outrora se encontravam em estado de exclusão social e, agora, pela força da união de seu trabalho são reconhecidos pelo trabalho desenvolvido, conquistando seu espaço.
Palavras-Chave: Catadores, Coleta seletiva, Resíduos sólidos, Desenvolvimento. ABSTRACT Recyclable material collectors are essentially characterized by being a group discriminated against by society and condemned to live on the margins of society. However, based on the organization of these groups, it is clear that it is possible to reverse this discriminatory situation and promote the effective socioeconomic development of this category of workers, which greatly contributes to the sustainability of the planet. In fact, this has already been happening in several associations and cooperatives of waste pickers spread across Brazil and Latin America. Thus, it was intended to understand how the President Kennedy waste pickers' association contributes as an instrument of social change in the life of waste pickers. Therefore, it is important above all, with the general objective of understanding the contributions of the association as an instrument of change and promoting the citizenship of waste pickers. Because it was possible to realize that the success of an association can be attributed to the collective construction based on the dreams, pains and hopes of people who were once in a state of social exclusion and now, for the strength of the union of their work, they are recognized for their work , conquering its space.
1 INTRODUÇÃO Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida em que o mundo se torna cada vez mais interdependente frágil, o futuro enfrenta ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino em comum (CARTA DA TERRA, 1992). Após 28 anos que foi confeccionada a Declaração de princípios fundamentais para a construção de uma sociedade global no século XXI, intitulada Carta da Terra, este trecho de seu preâmbulo ainda se mostra incrivelmente atual, sobretudo no que se refere à necessidade de pensarmos e agirmos de forma coletiva, com foco na sustentabilidade do planeta. De certo que é um tema bastante complexo e com inúmeras vertentes, no entanto a responsabilidade social do indivíduo, para com a coletividade, é a tônica que permeia toda a filosofia preconizada na Carta da Terra. Desta forma, entendendo que o trabalho coletivo é a forma mais eficaz de se chegar a objetivos comuns, ainda mais no que se refere às questões ambientais, percebe-se, nas organizações populares, uma ferramenta de grande valia para a melhoria da qualidade de vida das pessoas de forma sustentável, contribuindo para a manutenção do planeta. A gênesis desses grupos se dá à medida em que seus atores comungam dos mesmos anseios e dores, necessitando da construção de alternativas viáveis para garantir um futuro digno para todos e a dignidade humana perpassa pela lógica da garantia dos direitos fundamentais do ser humano, logo, tais alternativas se convergem em determinados momentos nas propostas de um desenvolvimento sustentável. Esta busca coletiva de modelos de desenvolvimento socioeconômico, surge na contramão dos interesses dominantes capitalistas, pois não é interessante, aos donos do poder capital, que a classe trabalhadora se rebele e busque novas oportunidades, pois desta forma coloca em risco a sua permanência no poder O município de Presidente Kennedy é, relativamente jovem, com 55 anos de emancipação política e uma população estimada para o ano de 2019 de 11.574 habitantes, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010), tendo sua principal fonte de renda na agricultura e pecuária leiteira, sendo um município, basicamente, rural, logo, a característica do coronelismo ainda é bem latente na população com maior poder aquisitivo na cidade e, como tal, contrário a todas as propostas de organização popular que surge dos menos favorecidos. Desta forma, é notório que as pressões políticas sofridas por grupos organizados que surgem no município, como associações e cooperativas, pois estas são vistas como ameaças aos detentores do poder na localidade. Outro fator percebido, que leva estes grupos ao insucesso, está diretamente ligado à forma como eles são concebidos, em diversas circunstancias os objetivos da sua criação estão ligados a interesses alheios aos dos membros, quer seja a promoção pessoal para fins eleitorais, quer esteja ligado ao interesse de ganho monetário de determinado membro. Nesta ótica, a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, surge na contramão de toda essa realidade no município. Ela se encontra em pleno funcionamento de forma autônoma e promovendo o desenvolvimento social de seus associados, fato este que se dá, inicialmente, considerando os serviços prestados que são de grande relevância para a população como um todo, somado ainda as circunstancias da sua criação e o incondicional apoio da Prefeitura Municipal de Presidente Kennedy através da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. As circunstâncias que levaram à formalização da associação iniciam-se no ano de 2013, quando o município de Presidente Kennedy assinou um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) junto ao Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), no qual o obrigava a cumprir, de forma sistemática, a Lei 12.305/2010, que estabelece diretrizes para a implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e, dentre estas diretrizes a serem cumpridas constante no TCA, no item 3.6 do documento que visa promover a formalização da organização dos catadores em cooperativas e associações, “prestando-lhes assessoria técnica e jurídica para que realizem assembleias de constituição e para que venham a registrar em cartório os seus estatutos”. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Presidente Kennedy, que é responsável pela gestão dos resíduos sólidos do município, foi designada para coordenar as ações necessárias ao cumprimento de todas as cláusulas do TCA, dentre as quais a implantação da coleta seletiva no município de forma gradual e progressiva, bem como o fortalecimento e/ou criação de um grupo organizado de catadores de materiais recicláveis no município para realizar a triagem e destinação final adequada dos resíduos sólidos recicláveis, em conformidade com a Lei 12305/2010. Inicialmente, segundo o TCA, os atores a compor esse grupo organizado deveriam ser pessoas em situação de vulnerabilidade social e fazer da coleta de materiais recicláveis sua principal fonte de renda e serem inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Como, na época, não foram identificadas, no município, pessoas com estas características, foi feito um levantamento junto à Secretaria Municipal de Assistência Social sobre famílias em estado de risco e vulnerabilidade social e, em seguida, elas foram convidadas para uma reunião onde lhes foi apresentada a coleta seletiva como forma viável de saírem da condição de vida na qual se encontravam. Várias pessoas entenderam a proposta e se comprometeram a participar de mais reuniões de formação, a fim de fazê-los perceber a importância social e ambiental da figura do catador. Somente após meses de trabalho é que surgiu, das próprias pessoas que estavam participando e aprendendo sobre os resíduos e sua destinação, a iniciativa de formar uma associação para trabalhar a questão da coleta seletiva no município. O município, ainda em atenção ao TCA, prestou toda a assessoria possível na formalização da associação, bem como capacitações sobre associativismo e cooperativismo. Foram repassados, ainda, para a associação já estabelecida, todos os maquinários e equipamentos necessários ao seu funcionamento e um galpão. Destinando ainda todo o material reciclável coletado para fazer a segregação e a devida destinação final. O município ainda firmou um contrato com a associação onde repassa um valor para que a mesma realize todo o trabalho de gestão dos resíduos recicláveis e a educação ambiental não formal, através de visitas domiciliares informando a população sobre a importância da coleta seletiva. Neste sentido, surge-nos uma inquietação que se pretende elucidar ao logo desta pesquisa, na qual buscar-se-á entender, de que forma a associação de catadores de material reciclável contribui como instrumento de mudança e promoção da cidadania e na vida desses cidadãos? O objetivo geral pretende compreender a contribuição da Associação de Catadores de Material Reciclável como instrumento de mudança e promotora da cidadania dos catadores. Nesta lógica, os objetivos específicos são: descrever a estrutura física e organizacional da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, a partir da sua criação até os dias atuais; verificar, através de processos investigativos, se houve avanço social na vida dos membros da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis; identificar a importância da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis para os seus associados. Desta forma, o campo de se delimitou ser investigado foi a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy – ES, onde acredita-se poder perceber se, de fato, houve contribuições da entidade como instrumento de mudança social e promotora de cidadania dos catadores, e compreender esses possíveis avanços sociais a partir e sua implicação na vida cotidiana dos catadores. O artigo encontra-se estruturado em 6 capítulos onde pretende-se entender os possíveis avanços sociais dos membros da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy – ES. Para tanto, o primeiro capítulo mostra um breve esboço dos fatos que motivaram a construção deste estudo, bem como os objetivos propostos que, uma vez atendidos, se propuseram sanar as interrogações pertinentes a questões referentes a situação problema. O segundo capítulo, através de um aporte teórico, apresenta, inicialmente, um levantamento histórico das lutas de classe no Brasil “linkando” com a figura do catador de materiais recicláveis analisando seu contexto histórico e social, em seguida são propostas algumas discussões sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos e as ações adotadas pelo governo do Estado do Espírito Santo para a efetiva implantação desta política e, por fim, são oferecidas algumas considerações sobre a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy com dados efetivos sobre a atual situação da organização. O terceiro capítulo trata-se do percurso metodológico que foi seguido. Foi realizado um levantamento qualitativo das condições de vida dos integrantes da associação de catadores e a técnica de levantamento de dados foi o grupo focal, desta forma, neste capítulo foram abordadas algumas considerações sobre esta técnica e como se aplica. O quarto capítulo apresenta os resultados obtidos através da análise do grupo focal, traçando diálogos com toda a bibliografia e o histórico da associação. E, por fim, tem-se as considerações finais como uma tentativa de sistematizar os dados apresentados e trazê-los à luz, como forma de sanar nossas dúvidas sobre os porquês e propor estudos futuros sobre o assunto na expectativa de poder contribuir não só com a garantida da continuidade e fortalecimento da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, como também servir de referencial para tantos outros grupos do terceiro setor que insistem na sua caminhada “subversiva” na contramão de uma sociedade cada vez mais interdependente do planeta. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 A DIMENSÃO SOCIAL DO HOMEM Ao abordar questões referentes à Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, antes de tudo, faz-se relevante um olhar mais apurado sobre a dimensão social do homem no intuito de perceber a necessidade inerente ao ser humano de pertencer a grupos sociais e a sua importância na construção civilizatória, confrontando o que chama-se de sociabilidade com a politicidade, conforme Mondin (1980, p. 159): A sociabilidade é a propensão do homem para viver junto com os outros e comunicar-se com eles, torná-los participantes das próprias experiências e dos próprios desejos, conviver com eles as mesmas emoções e os mesmos bens. A politicidade é o conjunto de relações que o indivíduo mantém com os outros, enquanto faz parte do grupo social. Neste sentido, percebe-se que a politicidade confere ao homem instrumentos capazes de criar mecanismos dinâmicos de organização social, objetivando solucionar desafios de forma conjunta. Em sua obra A Política, livro I, Platão afirma: “o homem é por natureza um animal social” e como tal, diferenciando-se dos outros animais pela capacidade de se expressar e transformar o ambiente à sua volta. Conforme Boff (2019 p. 27) afirma “A realidade é que o ser humano faz parte do meio ambiente. Ele é um ser da natureza, com capacidade de modificar a si mesmo e a ela e, assim, fazer cultura. Pode intervir na natureza potencializando-a, bem como agredindo-a” Neste sentido, percebendo ainda o homem a partir de uma abordagem holística, necessária à percepção da dimensão social, Miranda (1993, p. 54) afirma: No campo das ciências, o homem é o ponto de partida e de chegada da investigação científica. Assumindo-se que o homem é uma totalidade, produto e produtor das próprias relações sociais, enfim, uma unidade na diversidade, não seria concebível categorizá-lo por uma abordagem fragmentar. A dimensão social é inerente ao homem desde a sua concepção, tendo em vista que é a família a primeira experiência social e comunitária que servirá como balizadora à toda construção sociocultural do indivíduo. Esta tênue linha entre o individual e o coletivo, que surge a partir das relações familiares, se reflete na sociedade. Neste prisma, concorda-se com Miranda (1993, p. 55), quando relata que “O elo entre indivíduo e sociedade se dá na medida em que somos ativos socialmente, porque o somos a título de Homens. Daí decorre o fato de a história individual e social se determinarem mutuamente”. Logo, assim como a necessidade de viver em grupos, as relações de poder sempre estiveram presentes na humanidade, gerando conflitos entre dominadores e dominados, conforme Bourdieu (1996, p. 60-61) discorre: É no horizonte particular dessas relações de força específicas, e de lutas que tem por objetivo conservá-la ou transformá-las, que se engendraram as estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem, as alianças que estabelecem, as escolas que fundam e isso por meio dos interesses específicos que aí são determinados. Neste sentido, embora necessita-se do outro para nossa sobrevivência, a convivência em grupos gera conflitos, em específico, quando os objetivos se divergem, ou então quando se estabelece uma relação de dominação versus submissão. Ao longo dos tempos, desde os povos primitivos até a modernidade, sempre houve uma polarização nas relações de poder entre dominantes e dominados, onde aqueles que exerciam o poder subjugavam de todas as formas possíveis os menos favorecidos. Fato, este, podendo ser comprovado com a dominação europeia sobre os povos pré-colombianos, onde tribos inteiras foram massacradas e escravizadas em razão da necessidade de mostrar a força dominadora. O período escravocrata, em nosso país, nos revela com bastante clareza esta relação de domínio que se perpetua nas relações sociais, sobretudo em grupos que se encontram em estado de vulnerabilidade social. Isto posto, a história nos mostra que o grande temor das classes dominantes sempre foi que seus dominados se rebelassem e buscassem, de forma sistêmica, a mudança de sua condição social, rompendo o seu cativeiro ideológico e promovendo as transformações sociais necessárias para a promoção da autonomia da sua felicidade. Pois, para a classe dominante, a manutenção da condição de miséria é necessária para a continuidade da sua condição, conforme Marx (1987) nos aponta que a ociosidade forçada, na qual parte da classe trabalhadora é submetida, se faz necessária no sentido da manutenção dos padrões de vida e crescente enriquecimento da classe dominante. Sobre este aspecto, ao abordar as questões de luta de classe, percebe-se, sobretudo no Brasil, através dos movimentos populares fomentados no final dos anos 70 e início dos anos 80, com forte base ideológica cristã, a partir de alguns movimentos ligados à igreja católica e de forma “subversiva”, contrapondo os aspectos políticos inerentes à época, dá-se a gênese do processo de transformação social, a partir da organização das classes oprimidas e dominadas. Sobre este tema percebe-se na obra de Frei Betto (1995, p.9) algumas pistas sobre a gênese dos movimentos de classe no Brasil, sobretudo os seus objetivos, conforme segue: Contudo, mesmo as organizações aparentemente menos politizadas, como os clubes de mães, que se reúnem em função do corte e uma ação concreta no bairro. O exercício de vivência em um bairro que um clube de mães propicia permite que sua solidariedade se estenda a todos aqueles que de alguma forma, são vítimas da injustiça. Mesmo não havendo ainda uma consciência de classe, percebe-se nos movimentos populares um forte sentimento de justiça e a consciência, cada vez mais explicita, dos direitos do povo. Mais do que um sentimento de justiça, o que se percebe nas lutas dos movimentos sociais é a solidariedade entre os esquecidos e marginalizados que dispostos a buscar melhores condições de vida para si e seus pares, fazem ressoar os seus gritos por liberdade, liberdade social, econômica, ideológica, neste sentido, Freire (1996) afirma que a solidariedade social e política, que neste contexto é fundamental, encontra na formação democrática uma prática de real importância, sendo opositora das práticas pragmáticas ou elitistas dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado. Embutidos desses ideais e sob os preceitos ideológicos advindos de vertentes socialistas, as organizações populares se apresentam como uma real possibilidade de promoção das transformações sociais de grupos que outrora viviam sob o julgo opressor dos poderosos. Das diversas formas de organização popular, no sentido de buscar um futuro mais digno para si e para suas famílias, a economia solidária se desponta como uma alternativa viável, sustentável e orgânica, visando sempre se adequar ao seu objetivo principal que é minimizar as desigualdades sociais e garantir dignidade para todos. De acordo com Gaiger (2016p. 1): O termo economia solidária ganhou expressão e oficialidade no Brasil a partir dos anos 1990, à medida que despontaram iniciativas econômicas notabilizadas e reconhecidas por sua natureza associativa e suas práticas de cooperação e autogestão. Ao expandir-se, a economia solidária passou a abarcar diversas categorias sociais e variadas modalidades de organização, como unidades informais de geração de renda, associações de produtores e consumidores, sistemas locais de troca, comunidades produtivas autóctones, bancos comunitários e cooperativas populares, dedicadas à produção de bens, à prestação de serviços, à comercialização e ao crédito. Diante do exposto, a economia solidária surge na contramão do capitalismo sobretudo no momento em que se propõe a superar a exclusão social de grupos historicamente vistos sob uma ótica excludente de dominação em detrimento da manutenção do estilo de vida dos detentores do capital. Outro contraponto que a economia solidária se difere dos meios de produção capitalistas uma vez que se propõe a uma forma mais justa e igualitária de distribuição de bens e serviços gerados e produzidos de forma coletiva. Neste sentido, Singer (2002) nos aponta que as crises sociais promovidas pela competição cega dos capitalistas privados impulsiona a produção solidária, na qual se dá somente a partir de quando a maioria da sociedade, que não detém o capital, promover a reorganização dos meios de produção no sentido de que os mesmos sejam de todos e que seja utilizado com o objetivo de gerar o produto social. Esta distribuição equitativa dos meios de produção tende a tornar-se um grito de resistência de grupos populares que se rebelam de forma organizada contra um sistema perverso, que favorece a manutenção dos ricos em detrimento de uma massa cada vez mais explorada econômica e socialmente. Neste sentido, é fundamental uma quebra de paradigmas no campo do trabalho corporativo, uma nova visão de meios de produção, onde os empreendimentos econômicos solidários se apresentam como alternativas viáveis para a garantia da autonomia de grupos sociais vulneráveis ao mercado capitalista. Assim, a economia solidária se apresenta como uma resposta dos próprios trabalhadores às transformações atuais do mundo do trabalho. Estas respostas são caracterizadas por iniciativas como as organizações econômicas e organizações solidárias, conforme nos apontam Romano e Antunes (2002, p.05) que: No Brasil os fundamentos da abordagem baseada em direitos estão muito mais presentes nos debates sobre desenvolvimento e combate à pobreza, tanto no espaço governamental de políticas públicas, como entre os movimentos sociais, ONGs e o mundo acadêmico, devido à importância que têm assumido as análises de luta pela cidadania e de construção de direitos sociais. Neste sentido, a economia solidária vem ganhando força no momento em que o Governo Federal vislumbrou uma real possibilidade de promoção do desenvolvimento sustentável, através do trabalho coletivo. Neste sentido, Carvalho (2011, p. 3) citando o MTE, afirma que A implementação da economia solidária como política pública, compõe um objetivo maior no momento em se se pretende através do empoderamento das classes trabalhadoras promover reais transformações no mundo do trabalho, no qual demanda do poder público respostas para relações tradicionais de trabalho, como o emprego assalariado por exemplo (CARVALHO, 2011, p.3). Desta feita, a adoção de políticas públicas que vislumbrem o fortalecimento da economia solidária, torna-se uma estratégia bastante viável no sentido de garantir a promoção da igualdade social e garantia de que todos tenham direito a sonhar com um futuro mais digno para suas famílias, ao considerar Silva e Vinhas (2004, p. 2): A economia solidaria é, na verdade, o auto-emprego coletivo de pessoas que querem voltar à produção social. Seja em cooperativas ou outras formas associativas de trabalho. Ao se juntarem, as pessoas ganham condições de competir no mercado com empresas medias e até grandes e, com isso, viabilizam sua reinserção. É importante que a economia solidária esteja amplamente embasada em pressupostos da cooperação mútua entre seus atores na perspectiva de alcançar os objetivos a que se propõe, conforme Carvalho (2011, p.3) comenta: Ainda que seja o resultado – direto e indireto – das consequências do capitalismo sobre a situação de desemprego e pobreza dos trabalhadores, a economia solidária deve ser capaz de conviver com o próprio capitalismo e ser uma resposta a suas mazelas. Ou seja, parte-se do princípio de que a economia solidária deve estar pautada em uma nova lógica de desenvolvimento, que seja capaz de combinar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano. Mais do que combinar crescimento socioeconômico com o desenvolvimento humano, a economia solidária deve favorecer o surgimento da autonomia de grupos marginalizados e esquecidos, promovendo um sentimento de inclusão e de liberdade, conforme Bertolin e Raimundo (2017, p. 3175) pontuam: Esta consciência de pertencer à espécie humana é um fragmento da totalidade em que o homem é ‘auto’, indivíduo único de decisões e ‘eco’, convivente e interativo com outros seres vivos. Portanto o homem é auto-eco-organizacional, pois para Morrin (2003, p. 32), não há possibilidade de autonomia sem múltiplas dependências, com as quais deve se organizar. Sendo assim, percebe-se em diversas organizações de economia solidária a eficácia dessa metodologia participativa de produção no momento em que estas são capazes de gerir seus meios de produção de forma a promover o desenvolvimento capital das instituições e, consequentemente, a melhor qualidade de vida dos atores integrantes em todo o processo produtivo. A economia solidária, portanto, embora tenha sua gênese nos preceitos filosóficos socialistas, torna-se parte integrante da formação capitalista. Singer (2011) evidencia o momento em que o terceiro setor se propõe a competir com o mercado para obter crescimento e visibilidade comercial em favor do resgate da classe trabalhadora da condição de pobreza e, assim, promover o seu real desenvolvimento socioeconômico. Sobre este assunto, Singer (2002, p. 127) comenta A construção de um modo de produção alternativo ao capitalismo no Brasil ainda está no começo, mas passos cruciais já foram dados, etapas vitais foram vencidas. Suas dimensões ainda são modestas diante do tamanho do país e de sua população. Mesmo assim, não há como olvidar que dezenas de milhares de pessoas já se libertaram pela solidariedade. O resgate da dignidade humana, do respeito próprio e da cidadania destas mulheres e destes homens já justifica todo esforço investido na economia solidária. É por isso que ela desperta entusiasmo. Assim, percebe-se na economia solidária uma real possibilidade de mudanças significativamente positivas na vida de pessoas que outrora se encontravam desacreditadas e massacradas por um sistema excludente e opressor. Acreditar e investir nesta realidade é a melhor forma de, solidariamente, contribuir com esta causa, de certo que há muito o que se fazer no tocante à disseminação dos ideais da economia solidária, no entanto, de forma gradual ela vem se concretizando e transformando a realidade de inúmeras famílias 2.2 RECORTE HISTÓRICO DAS ASSOCIAÇÕES DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS Neste contexto, compreende-se as associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis como uma forma subversiva de resistência social, frente aos desafios enfrentados, sobretudo, ao considerar as condições sociais que a maioria dos indivíduos que integram esses coletivos se originam. A figura do catador de materiais recicláveis sempre foi vista de forma discriminatória por parte da sociedade, dado o caráter do seu trabalho, que o obriga a viver em meio ao lixo, coletando resíduos para serem vendidos para, assim, garantir o sustento de seus familiares. De acordo com Bertoli (2013, p 1) Os catadores de materiais recicláveis constituem um segmento de trabalhadores em expansão. No Brasil, entre os anos de 1999 e 2004, seu número aumentou de 150 mil para 500 mil e, atualmente, estima-se que mais de um milhão de pessoas1 vive da catação, ou seja, do trabalho de catar, separar e comercializar materiais recicláveis. Esses trabalhadores realizam suas atividades nas ruas, no interior de galpões ou, ainda, em suas próprias casas. Aos poucos os catadores foram percebendo a necessidade de se unir em pequenos grupos, onde podiam conseguir um preço melhor pelos materiais coletados, dando-se, assim, o start para a criação de pequenas associações, em que só conseguiram ganhar notoriedade nacional a partir da formação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), que teve como primeira conquista para os catadores o reconhecimento pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). No ano de 2001, o MNCR promoveu, com apoio governamental, o 1° Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis em Brasília, contando com a participação de 1600 congressistas de 17 estados da Federação, onde através de um documento intitulado a Carta de Brasília traziam à tona toda a discussão da problemática das condições de serviço dos catadores e da falta de apoio institucional, conforme segue: Conscientes da nossa cidadania e da importância do trabalho que desenvolvemos e das tecnologias por nós elaboradas, já qualificadas em mais de cinco décadas de atuação cotidiana, tomamos a iniciativa de apresentar ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei que regulamenta a profissão catador de materiais recicláveis e determina que o processo de industrialização (reciclagem) seja desenvolvido, em todo o país, prioritariamente, por empresas sociais de catadores de materiais recicláveis. MNCR, (1990, p15). Este congresso, fortaleceu as associações e cooperativas de catadores, iniciando um processo de reconhecimento de sua figura profissional como algo benéfico para o meio ambiente e para a saúde pública. No ano de 2003, foi realizado em Caxias do Sul o 1° Congresso Latino-Americano de Catadores, no qual expôs a realidade da situação dos catadores de materiais recicláveis da América Latina e promoveu unidade entre os países envolvidos, onde o clamor de todos fosse verdadeiramente ouvido. Este Congresso trouxe uma vitória bastante positiva para os catadores, pois foi o estopim que faltava para iniciar as discussões referentes à criação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, ondo o Governo Federal instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial de Saneamento Ambiental objetivando promover a integração das ações de saneamento, em que resultou na criação do Programa Resíduos Sólidos Urbanos. Este programa teve como objetivo incentivar os estados e municípios a desenvolverem ações de redução, reutilização e a reciclagem de resíduos sólidos urbanos, bem como a melhoria na gestão destes materiais e a erradicação do trabalho infantil através da eliminação dos lixões. A partir deste “start” para as discussões governamentais sobre a questão da reciclagem, não só no Brasil, como em toda América Latina, houve muitos debates e avanços progressivos até culminar, no ano de 2010, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, bem como a criação de diversos mecanismos que garantiam aos catadores a sua autonomia e dignidade, como o Comitê interministerial da Política Nacional de Resíduos Sólidos, o Decreto n° 7405, que instituiu o Programa Pró-Catador e o Comitê Interministerial Para Inclusão Social e Econômica de Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis, bem como a criação do Comitê Interministerial da Inclusão Social de Catadores de Lixo. Neste sentido, percebe-se que a organização de grupos de catadores com objetivos mútuos de garantir um melhor preço pelas matérias recicláveis triados, foi a forma de resistência que efetivou uma melhor qualidade de vida dos catadores e de seu grupo familiar, muito se assemelhando com a proposta da economia solidária preconizada por Singer (2002, p. 10): [...] é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda. Evidencia-se, portanto, a importância da economia solidária como promotora da inclusão de cidadãos que excluídos do processo produtivo e desprovidos da capacidade de promover a ascensão social de sua família, vislumbra a real possibilidade de conquistar a sua autonomia efetiva através da união de pessoas que compartilham as mesmas dores e sonhos. 2.3 CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: CONTEXTO SOCIAL Entendendo o processo de associativismo como um meio de produção solidária, onde o fruto do trabalho realizado é devidamente dividido de forma justa entre os associados, percebe-se então que se trata também de um meio de produção que emerge das massas, outrora, dominadas. Neste contexto, Gadotti (2009, p. 15) descreve que a “economia solidária, mais que um modo de produção, é um modo de vida. O espírito da economia solidária é cooperar, viver melhor juntos. Ela nos obriga a ver as pessoas sob outro olhar”. Ao abordar a questão da economia solidária, como forma viável de promover o desenvolvimento social de forma coletiva, surge-me uma inquietação relacionada aos catadores de materiais recicláveis, ao considerar a especificidade e importância de seu trabalho, que são discriminados e postos à margem da sociedade, conforme nos aponta Pinhel (2013, p.18-, 19): Constituem uma massa de desempregados que, por sua idade, condição social ou baixa escolaridade, não encontram mais lugar no mercado de trabalho formal. Existem, ainda, aqueles que, a despeito de serem um pouco mais escolarizados, também não conseguem uma posição profissional num mundo marcado pelo compasso tecnológico e digital. Por fim, há um grupo de homens e mulheres com histórias de vida muitas vezes assinaladas pela violência, pelo sofrimento e pelo preconceito. De modo geral, são explorados pelos comerciantes intermediários (conhecidos como “sucateiros”) e donos de lixões, para quem entregam seus materiais a preços muito inferiores aos praticados no mercado. Como se pode perceber, a figura do catador de material reciclado sempre foi vista sob uma ótica associada à miséria que faz do lixo,o seu principal, senão, única fonte de renda para garantir o sustento de sua família. Nesta ótica, Pinhel (2013) indica uma relação do crescimento da atividade de catação de resíduos com os níveis extremos de pobreza, pois, segundo o autor, parte dessas pessoas trabalha em situação de extrema miséria, buscando materiais em sacos de lixo na rua ou em lixões, expondo a si e sua família a uma péssima condição de vida, em especial, as crianças, sujeitas ao risco de viver no lixo, e do lixo. No entanto, o trabalho realizado por estes “invisíveis sociais” quando analisados de forma global, possuem extrema relevância para o contexto ambiental e sanitário. Boff (2009, p. 27) firma que “a realidade é que o ser humano faz parte do meio ambiente. Ele é um ser da natureza, com capacidade de modificar a si mesmo e a ela, e assim fazer cultura. Pode intervir na natureza potencializando-a, bem como agredindo-a”. De acordo com Amaral e Rodrigues (2018, p.12) [...] de todo o lixo produzido no Brasil, 30% tem potencial para ser reciclado, porém apenas 3% deste total é efetivamente reciclado. A reciclagem é uma excelente alternativa para a problemática de resíduos sólidos urbanos, alcançando a esfera ambiental, o âmbito social e o desenvolvimento econômico. Neste sentido, a coleta seletiva, embora apresentada como alternativa para questões socioambientais, ainda precisa ser trabalhada com mais afinco por parte das autoridades no sentido de se fazer cumprir a Política Nacional de Resíduos Sólidos, não apenas por conta das questões sanitárias e ambientais que a implicam, mas sobretudo no sentido de garantir aos catadores de materiais recicláveis a sua inclusão social através da inserção no mercado de trabalho. De acordo com Medeiros e Macedo (2006. p. 66), [...] a inclusão desses catadores ocorre de forma perversa, pois pela sua condição pode-se inferir que o catador de materiais recicláveis é incluído ao ter um trabalho, mas excluído pelo tipo de trabalho que realiza. Realizando em condições inadequadas, com elevado grau de periculosidade e insalubridade, sem reconhecimento social, com riscos muitas vezes irreversíveis à saúde, com ausência total de garantias trabalhistas. Mesmo com um quadro tão desfavorável para a figura dos catadores de materiais recicláveis, a coleta de resíduos sólidos possibilita, a muitos, uma melhor condição de vida, e se mostra como alternativa viável para o resgate social de famílias que viviam abaixo da linha da pobreza. Nesta ótica, os catadores buscam dia a dia se organizar em grupos de economia solidária na expectativa de garantir a dignidade a suas famílias e se reintegrarem à sociedade, sendo vistos como iguais. Nesta perspectiva, Freire (2005, p.70) afirma. Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram ‘fora de’. Sempre estiveram ‘dentro de’. Dentro da estrutura que os transforma em ‘seres para outro’. Sua solução, pois não estar em ‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se ‘seres para si’. Evidenciam-se as razões pelas quais um quantitativo de catadores de materiais recicláveis vem se organizando em grupos de economia solidária, na perspectiva de promover o tão sonhado desenvolvimento socioeconômico de forma sustentável. De certo que não é uma tarefa fácil, pois requer resistência e resiliência dos grupos organizados, neste prisma, Freire (1996, p.31) afirma que: É preciso, porém que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação, mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos. A PNRS vê, na coleta seletiva, uma importância fundamental, não só pelo seu enfoque econômico e social, como também ambiental, tendo em vista que o material coletado atualmente representa uma considerável parcela de resíduos que estariam poluindo o meio ambiente, comprometendo as futuras gerações. Através da implantação da PNRS, é possível observar um constante crescimento de municípios que adotam algumas iniciativas de promoção à coleta seletiva ao longo dos anos, conforme nos aponta o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil nos anos de 2011 a 2017, da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) (TABELA 1). Tabela 1 – Quantitativo em Porcentagem dos Municípios Brasileiros que Desenvolveram Ações de Incentivo à Coleta Seletiva
FONTE: Abrelpe 2018 – www.abrelpe.org.br/panorama/ Apesar do exponencial crescimento no quantitativo de municípios que adotam medidas que vislumbrem a implantação da coleta seletiva, conforme exposto na Tabela 1, na prática, esses esforços, muito pouco se materializam em resíduos destinados à coleta seletiva, fato este que pode ser comprovado ao analisar dados da Associação Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (ANCAT) que nos mostra que houve uma considerável queda de materiais coletados e destinados para a coleta seletiva, no ano de 2018, ao se comparar com o ano anterior em que quase todas as regiões do país, com única exceção para a região Centro-Oeste (GRÁFICO 1). Gráfico 01 – Volume de resíduos sólidos coletados pelas cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis por região da Federação.
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de intensificar, em âmbito nacional, as ações que favoreçam a efetiva aplicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, no que se refere à implantação e fomento da coleta seletiva. É importante perceber e valorizar a coleta seletiva como ferramenta de promoção do desenvolvimento sustentável, tendo em vista sua dimensão ambiental, social e econômica. Percebe-se que grupos de catadores vêm se organizando de forma a melhorar a qualidade dos produtos segregados, bem como aumentar a quantidade de material objetivando melhorar a sua renda e, dessas uniões informais, as associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis se despontam como uma ferramenta que promove a integração, destes, no mercado de trabalho. Neste sentido, os catadores estão conquistando seu espaço social, fato este comprovado no reconhecimento como categoria profissional oficializada na COB – Classificação Brasileira de Ocupações, no ano de 2002, onde são registrados pelo número 5192-05 e sua ocupação descrita como catador de material reciclável (www.ministeriodotrabalho.gov.br) garantindo, aos mesmos, a real possibilidade de serem reconhecidos como cidadãos que exercem uma atividade de extrema importância para o planeta. A Política Nacional de Resíduos Sólidos vem como um outro fator determinante para a garantia dos direitos e do fomento à atividade de catadores de materiais recicláveis, no momento em que coloca a coleta seletiva como estratégia de desenvolvimento sustentável e mola propulsora para a retirada de grupos que outrora vivam em estado de extrema pobreza desta condição. 2.4 POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS – RECORTE SOCIOECONÔMICO E SUA IMPLICAÇÃO NA VIDA DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS Ao considerar a problemática da disposição irregular dos resíduos sólidos domiciliares, Silva Neto e Rocha (2015, p.2) ponderam que. Os resíduos sólidos estão entre os maiores desafios da sociedade contemporânea. Esse desafio ganhou maior projeção pelo grande vazio jurídico e falta de conhecimento técnico sobre a área que, por muitos anos, permitiu que a gestão e o manejo dos resíduos sólidos fossem realizados de uma forma muito simples, sem as devidas técnicas de proteção socioambiental Nesta ótica, surge a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) cujo principal objetivo é o enfrentamento das consequências sociais econômicas e ambientais oriundas do manejo inadequado dos resíduos sólidos. A Lei 12.305/2010 que institui a PNRS, regulamentada pelo Decreto 7.404/2010, que estabelece a gestão integrada dos resíduos sólidos como ferramenta essencial para tal enfrentamento, torna-se o marco legal referencial à promoção de políticas públicas que realmente contribuam para a diminuição dos impactos sociais e ambientais provocados pela produção e deposição inadequada de resíduos sólidos. A PNRS surge como um marco regulatório, onde apresenta um novo modelo de gestão dos resíduos sólidos, no qual além de delegar as devidas responsabilidades aos geradores, estabelece a coleta seletiva como centro do processo desta gestão. Neste sentido, Wirht e Oliveira (2016) afirmam que a gestão dos resíduos sólidos, assim como apresentado na PNRS, tem o real potencial para unificar a prestação de serviço público, política de inclusão social e dimensão comunitária ambiental. Desta forma, a Lei reconhece a importância do trabalho das cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis definindo que elas sejam priorizadas na contratação para a execução dos serviços de limpeza urbana, o trabalho deste profissional, que antes era visto sob a ótica carregada de preconceito e exclusão, com a implantação da PNRS ganha notória responsabilidade socioambiental, cabendo ao poder público a responsabilidade por garantir que os catadores desses resíduos, organizados em cadeias de economia solidária possam, com êxito, cumprir o seu trabalho. Para tanto, é necessário, ao poder público, o efetivo compromisso com a implantação da PNRS como instrumento de controle socioambiental. Neste sentido, Jardin et al. (2012, p.72), afirmam que: O próprio titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos tem obrigações expressas no âmbito da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. A opção do legislador não foi, portanto, retirar o poder público da gestão de determinados resíduos e delegar tarefas, de forma simplista para o setor empresarial. (...) A contratação de associações de catadores de materiais recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda é definida como prioridade a ser respeitada Ao perceber o caráter social da PNRS, se torna cada vez mais evidente a importância da efetiva implantação de tal política como parte de uma estratégia de promover o êxodo da linha de pobreza de inúmeras pessoas que, outrora, jaziam nas ruas da cidade, nos lixões a céu aberto, exilados dos seus direitos básicos como cidadãos e mantidos escravos de sua miséria isolada. Sendo, portanto, não apenas responsabilidade do poder público, mas de todos os geradores de resíduos, quer no campo da indústria e do comércio, quer em nossas residências. Somente a partir do momento em que romper com certos paradigmas, sobre a importância dos resíduos sólidos na promoção da cidadania e resgate social, é que de fato a coleta seletiva será realidade sustentável. Neste sentido, Elias Neto e Rocha (2015, p.3) comentam que “um aspecto importante da PNRS e de seu principal instrumento, a Lei, é o fato de não citar se quer uma única vez a palavra lixo, apontando para um novo modo de lidar, culturalmente, com aquilo que consideramos lixo”. Outro aspecto importante da PNRS é a importância que é dada à Educação Ambiental como instrumento essencial na implantação da coleta seletiva nos municípios, de acordo com o Decreto n° 7.404/2010, que regulamenta a Lei 12.305/2010, em seu art. 77: A educação ambiental na gestão de resíduos sólidos é parte integrante da Política Nacional de Resíduos Sólidos e tem como objetivo o aprimoramento do conhecimento, dos valores, dos comportamentos e do estilo de vida relacionados com a gestão e o gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos (BRASIL, 2010). Neste sentido, a Educação Ambiental se torna um fator de extrema importância, sobretudo no momento em que percebe-se o seu caráter inclusivo e social. Tristão (2012, p.40) aborda o seu caráter emancipatório ao afirmar que: A educação ambiental, entendida, de modo geral, como uma prática com potencial emancipatório para a vida, enfrenta alguns desafios na contemporaneidade. (...) que alguns desses desafios que se apresentam em sua cartografia são: enfrentar a multiplicidade de visões, superar a visão do especialista, superar a pedagogia das certezas e superar a lógica da exclusão. Outro fator a ser considerado é que no Decreto 7.404/2010,em seu art. 2°, aponta que a Educação Ambiental proposta deve estar em harmonia com os referenciais da Política Nacional de Educação Ambiental, sobretudo nas suas vertentes formal e não formal, propondo uma integração de saberes, onde os atores envolvidos, sociedade civil organizada, órgãos governamentais, empresas e sociedade, como um todo, possam ser impactados de forma a estabelecer um nível de consciência planetária de interdependência. Conforme nos disciplina Jacobi, Tristão e Franco (2009, p.67): As práticas educativas ambientalmente sustentáveis nos apontam para propostas pedagógicas centradas na criticidade e na emancipação dos sujeitos, com vistas à mudanças de comportamento e atitudes, ao desenvolvimento da organização social e da participação coletiva. Nesta proposta de educação reflexiva e engajada, centrada nos saberes e fazeres construídos com e não para os sujeitos aprendentes e ensinantes, a educação ambiental difere substancialmente da informação ambiental. Esta ainda é focada na elaboração e transmissão de conteúdos descontextualizados e ‘despolitizados’, no sentido de instaurar mudanças efetivas na realidade através da tessitura de um conhecimento crítico, intencionalmente enganado. Percebendo a Educação Ambiental como instrumento de integração e implementação da PNRS, evidencia-se o caráter inclusivo no tocante às questões sociais, visto que ela não trabalha apenas aspectos isolados e, sim, propõe que todos os seres vivos estão integrados de forma que o bem-estar socioambiental promovido pela política, através das ações dos catadores de materiais recicláveis, principalmente, no momento em que esta promove a cidadania dos catadores. Ao abordar a PNRS, é importante lembrar que o Estado do Espirito Santo saiu na vanguarda da Federação, pois no ano de 2009 foi promulgada a Lei Estadual n° 9.264/2009 que institui as políticas estaduais de resíduos sólidos, que abrange todo o estado, para um horizonte de 20 anos e que, ao analisar esta lei, percebe-se que atende aos preceitos da PNRS, ademais, a PERS-ES, foi elaborada em consonância com os objetivos e as diretrizes das políticas Nacional e Estadual de Saneamento Básico, de Recursos Hídricos e de Educação Ambiental. Sendo assim, percebe-se, nesta lei estadual, vários pontos em comum, especialmente no tocante à coleta seletiva como instrumento de promoção social e garantia de um ambiente equilibrado do ponto de vista ambiental. 3 METODOLOGIA 3.1 CAMPO DA PESQUISA A Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy está localizada na comunidade rural de Santana Feliz, no município de mesmo nome, no extremo sul do Estado do Espírito Santo. O município possui uma extensão territorial de 586,5 km², limitando-se com as cidades capixabas de Marataízes, Itapemirim, Atílio Vivácqua, e com o município de São Francisco de Itabapoana da região Norte Fluminense. Segundo dados estimados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, para o ano de 2019, sua população estimada é de 11.574habitantes. A agricultura e pecuária formam a base econômica do município. Em razão da descoberta de grandes jazidas de petróleo na costa do município, Presidente Kennedy vem experimentando uma nova realidade, por este motivo, em sua costa, recebe uma considerável parcela rescisória da exploração do petróleo. Desta forma, os royalties recebidos favorecem a implantação de ações concretas de desenvolvimento local. Presidente Kennedy se encontra entre os maiores municípios do país, no que se refere ao PIB per capta, segundo dados do IBGE de (2016) o valor foi de R$ 169.012,45 (cento e sessenta e nove mil e 12 reais e quarenta e cinco centavos. No entanto, este valor não reflete no real desenvolvimento socioeconômico da população ao considerar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município, de acordo com o IBGE (2010) de 0,657, colocando o município no ranking de número 2964°, em comparação aos demais da Federação. Desta forma, mostra-se uma, de suas importantes fragilidades. O município, elaborou o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB-PK) que aborda os eixos água, esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais e resíduos sólidos, podendo garantir investimentos municipais na implantação de sistemas municipais de saneamento básico, favorecendo toda a população. Mesmo sem a aprovação do PMSB-PK, Presidente Kennedy vem desenvolvendo ações que vislumbram o cumprimento das ações apresentadas no plano, dentre elas a gestão dos resíduos sólidos em cumprimento da Lei 12.305/2010. A gestão dos resíduos sólidos do município é feita pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que contratou empresas especializadas para a realização dos serviços inerentes à coleta e destinação final dos resíduos. Dentre os serviços, pode-se listar: coleta de resíduos sólidos domiciliares e coleta de resíduos de esgotamento sanitário, no qual o município possui uma estação municipal de transbordo e, posteriormente encaminhado, esse material coletado para a destinação final adequada em aterro sanitário controlado. A coleta de resíduos sólidos do serviço de saúde é realizada por uma empresa especializada que proporciona a correta destinação final destes materiais. É realizada, ainda, a coleta dos resíduos recicláveis que são destinados para a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis que também é contratada pela municipalidade para realizar a triagem e a destinação final correta dos resíduos triados. Ao considerar a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis como a única do gênero, em ação no município de Presidente Kennedy, somado ainda aos objetivos da pesquisa, evidenciam-se as razões pela qual foi proposta esta pesquisa. 3.2 COLETA DE DADOS E SUJEITOS DA PESQUISA No intuito de descrever os avanços sociais dos membros da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, a abordagem qualitativa, se mostra a mais eficaz no momento em que se propõe investigar um fenômeno social. Conforme nos aponta André (2013, p. 97) [...] se fundamentam numa perspectiva que concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados. Como ferramenta exploratória, para atingir os objetivos propostos, utilizou-se a observação e análise de grupo focal. Em específico, ao considerar, Gondim (2013, p. 152) O uso dos grupos focais está relacionado com os pressupostos e premissas do pesquisador. Alguns recorrem a eles como forma de reunir informações necessárias para a tomada de decisão; outros os veem como promotores da autorreflexão e da transformação social e há aqueles que os interpretam como uma técnica para a exploração de um tema pouco conhecido, visando o delineamento de pesquisas futuras. Neste sentido, a opção pelo grupo focal como forma exploratória se deu devido à peculiar característica de possibilitar o debate e troca de saberes dos participantes, ao mesmo tempo que são coletados os dados. Neste sentido, é pertinente destacar que, através do grupo focal, podem surgir informações sobre a forma como a associação de catadores é percebida pelos seus membros, sendo possível avaliar a importância que a mesma representa na vida destes profissionais. Para a aplicação da pesquisa, foram reunidos nove membros da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, destes, apenas três mulheres participam da associação desde a sua constituição. O conhecimento prévio de questões inerentes ao grupo, é importante no momento em que se propõe a construir debates em um grupo focal, pois permite ao facilitador estabelecer conexões e mediar, de forma mais próxima, conflitos que podem vir a surgir, bem como manter o grupo no foco das questões pertinentes ao objetivo, conforme nos aponta Gadotti (2005, p.36). Entretanto, a condução do grupo, com intervenção moderada, menos diretiva, não implica que se deixe o grupo perder o foco da pesquisa, nem que aspectos importantes não sejam trazidos pelo moderador caso o grupo não os aborde. Neste sentido, entendendo serem necessários alguns conhecimentos prévios acerca da atual situação da associação de catadores para servirem de balizadores na condução do grupo, a pesquisadora se reuniu com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, entidade esta que acompanha de perto a associação desde a sua fundação até os dias atuais, sendo esta, também, responsável pelo contrato firmado entre a prefeitura municipal e a associação para a realização dos serviços de triagem e destinação final dos resíduos sólidos recicláveis. Na referida reunião, foram identificadas questões importantes que serão relatadas ao longo das discussões. Para melhor entender o universo dos entrevistados, houve, ainda, uma preocupação de conhecer e analisar as estruturas, equipamentos e condições de trabalho em que vivem os membros da associação. Na realização do grupo focal, todos foram reunidos no pátio da Associação à sombra de uma árvore, sentados em cadeiras e dispostos em círculos. Inicialmente, foi proposta uma dinâmica para quebrar o gelo e, ao mesmo tempo, oferecer algumas informações pertinentes à pesquisa (FIGURA 2). Para a prática em si, foi necessário realizar uma ambientação prévia, objetivando realizar o máximo de registro possível. Objetivando preservar a identidade dos membros da Associação, principalmente ao considerar o cárter pessoal das informações descritas, optou-se por atribuir nomes fictícios aos relatos descritos no decorrer da pesquisa. Foram utilizados dois aparelhos de smartfones e um gravador de voz que ficaram dispostos em locais estratégicos. Participaram da aplicação desta técnica dois voluntários que auxiliaram no registro dos dados para, posteriormente, sistematizá-los. Cadeiras foram dispostas em um grande círculo possibilitando, aos associados, maior contato visual entre si. 4 RESULTADOS 4.1 ASSOCIAÇÃO DE CATADORES DE PRESIDENTE KENNEDY Embora mediante a criação de inúmeros instrumentos governamentais de valorização de grupos sociais do terceiro setor, o seu efetivo reconhecimento e aceitação, pela população, ainda tem se mostrado um desafio muito grande. Sobretudo em regiões isoladas do país, onde trazem, em sua história, as marcas da opressão de grupos familiares e/ou políticos que, em função da manutenção do seu poder, imbuídos de uma visão retrógrada e individualista usam de toda a sua força para impedir que os menos favorecidos se organizem e busquem de forma comunitária a sua independência economia, social e política. Sob esta lógica, o município de Presidente Kennedy-ES, localizado no extremo sul do Estado do Espirito Santo, com uma população estimada pelo Censo do IBGE para 2019 de 11.574 habitantes, não se difere, pois mesmo na atualidade, características típicas do período do coronelismo ainda se mostram bastante evidentes entre a população mais carente, os coronéis de outrora, não mais existem. No entanto, permaneceram o medo e a desconfiança encarnados na população, fomentados por grupos políticos que, em nome da manutenção de um poder imposto, através de outras formas opressoras torna a população refém do seu assistencialismo em troca de migalhas. Assim, por muitos anos, a cultura do cooperativismo vem sendo combatida e massacrada, em função da real ameaça que representa para os “donos do poder”, e este combate feito, através dos tempos, reflete na população, onde a desconfiança e o medo de se organizar imperam a sua libertação social, econômica e política. Ao considerar o pequeno volume de resíduos coletados no município, a associação inicialmente, entendeu que não poderia associar muitas pessoas pois ao final da venda dos materiais o valor rateado não seria suficiente para suprir as necessidades básicas de todos. Desta forma, a solução encontrada para esta problemática foi limitar o número máximo de dez associados, logo, sempre que algum associado deixa a associação o seu cargo é preenchido por pessoas que estão em um cadastro de reserva. A estrutura da Associação conta com um galpão, onde é realizada a triagem dos resíduos sólidos recicláveis e armazenando do material prensado para posterior comercialização. O galpão, em questão, estava equipado com duas prensas hidráulicas, um elevador de plataforma, uma balança eletrônica, uma mesa separadora, vários suportes para big bags. Para melhor compreende-se a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy e sua implicação no possível desenvolvimento socioeconômico dos seus associados, é importante conhecer um pouco sobre a dinâmica do trabalho dos catadores e suas condições de trabalho. A Associação funciona com dez membros, composto por cinco mulheres e cinco homens, associados que revezam os trabalhos entre a prensa hidráulica e a triagem de resíduos. Todo o material chega até a associação através de dois caminhões baú de uma empresa contratada pela prefeitura para a realização da coleta dos resíduos recicláveis que estão armazenados nos diversos pontos de coleta espalhados por todo o município, em específico em aparelhos públicos como escolas e postos de saúde. Um fato curioso é a presença de dois casais entre os associados, sendo que, inicialmente, as esposas trabalhavam na Associação e, com o tempo, os esposos se interessaram pelo trabalho, ao perceber que elas estavam tendo uma boa renda. A partir de então entraram em um cadastro reserva e, no momento oportuno, se integraram a ela. Duas vezes por semana os associados saem as ruas passando nas residências realizando um trabalho de educação ambiental, onde incentivam a comunidade a fazer a separação e destinação correta dos resíduos, com o objetivo de melhorar a qualidade e quantidade de material reciclável. Os associados possuem equipamentos de proteção individual, como avental, luvas, botinas, máscara etc., no entanto, não usam com frequência pois alegam que estes materiais atrapalham, no momento de fazer a triagem. Embora a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que é responsável pela fiscalização dos serviços prestados pela Associação, exija o uso frequente dos EPIs. Todos os equipamentos, bem como o galpão, foram doados em sistema de comodato pela Prefeitura Municipal de Presidente Kennedy, na qual, após instrumentalizar a Associação, a contratou para a realização da triagem e destinação final dos resíduos sólidos recicláveis. No dia da aplicação do grupo focal, foi possível perceber que o local estava bem apresentável, com os equipamentos limpos e em ordem, embora uma grande quantidade de material a ser triado estivesse no meio do galpão, os demais ambientes estavam limpos e organizados mostrando, desta forma, o carinho e a dedicação dos associados com o seu espaço de trabalho. Embora o trabalho de triagem gere muitos rejeitos que são destinados a estação de trasbordo municipal, não foi percebido nenhum odor desagradável produzido pelo acúmulo de lixo, pois o mesmo estava devidamente coberto e protegido para posterior destinação final A história recente do município está repleta de grupos que tentaram se organizar em associações e sucumbiram, ora por pressões políticas e falta de apoio, ora por interesses escusos de pseudos líderes que utilizavam da boa-fé e da esperança de um futuro melhor de alguns para a sua promoção e ascensão social e política. Outro fator de relevância que nos aponta a dificuldade para a formação de grupos de terceiro setor, no município, se dá em razão do recebimento dos royalties pela produção de petróleo. No entanto, os valores não conseguem ser traduzidos em real desenvolvimento a Presidente Kennedy, em razão das ingerências administrativas que optam por privilegiar o assistencialismo, contribuindo para a manutenção de um estado de total dependência da população mais carente e de baixa instrução. Esta cultura assistencialista imprime na sociedade uma dependência tal que “adormece” os sonhos e desejos de se tornarem protagonistas de sua história, e se conformam com as “migalhas” que lhes são atiradas; em outras palavras, causa uma acomodação social perigosa, pois “receber o peixe” é melhor, mais cômodo do que pescar e, sob esta ótica, uma hora ou outra o peixe pode vir a faltar por não haver mais pescadores. Neste cenário, a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, surge, não por vontade própria dos atores envolvidos nela, mesmo porque, não existia a figura do catador de materiais recicláveis no município, surge pela necessidade em atender um TCA assinado entre o Ministério Público Estadual e a Administração Municipal, forçando-a a cumprir, na íntegra, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, onde preconiza a implantação da coleta seletiva de forma gradual em todo o território municipal. Para tanto, Presidente Kennedy se viu obrigado a buscar alternativas para a implantação de uma associação de catadores no município. Segundo informações da Secretaria Municipal de meio Ambiente, através do Departamento de Educação Ambiental, conforme relatos gravados e transcritos obtidos através de uma reunião com o Sr. Romer Fraga dos Santos Chefe de Divisão de Resíduos Sólidos à época. Segundo ele, foi realizado uma busca junto à Secretaria Municipal de Assistência Social de pessoas que se encontravam em estado de extrema pobreza. Neste levantamento, foram identificados um grupo de aproximadamente 30 famílias. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente através de visitas domiciliares contatou estas famílias e as convidou para uma reunião na sede da secretaria. Esta reunião teve como propósito apresentar a coleta seletiva como alternativa viável de melhoria da qualidade de vida do grupo reunido. Na ocasião foi informado que não se tratava de oferta de “emprego” e sim uma forma de trabalho digno realizado de forma coletiva. Muitas famílias presentes não concordaram em trabalhar com “lixo”, no entanto, outras famílias se mostraram otimistas em relação a coleta seletiva. Foram realizadas uma série de reuniões com o grupo, no sentido de formar e informar sobre o trabalho do catador. O município, providenciou um galpão, uma série de materiais para que a associação iniciasse os serviços. O município ainda realizou várias atividades de educação ambiental formal e não formal para sensibilizar a comunidade quanto a coleta seletiva e espalhou inúmeros pontos de entrega voluntário de materiais recicláveis pela sede do município e nas escolas. Conforme percebido no que expôs do Sr. Romer Fraga dos Santos, o surgimento da Associação de Catadores de Presidente Kennedy se difere, um pouco, da realidade das demais associações de catadores, no entanto, as lutas e frustrações se convergem, no momento em que compartilham as mesmas dores: preconceito, discriminação, marginalização. Portanto, este cenário aos poucos está mudando, pois as questões ambientais estão, dia a dia, ganhando mais visibilidade e a população, em geral, está se atentando para a importância da preservação e cuidado com o planeta. Desta forma, a separação e descarte apropriado dos resíduos sólidos secos tem se mostrado uma tática adotada por, cada vez, mais famílias. 4.1.1 Termo de compromisso ambiental e a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy Partindo do pressuposto de que a PNRS deve ser implementada em todo o território nacional, bem como a importância da Política Estadual de Resíduos Sólidos do Estado do Espirito Santo, o Ministério Púbico do Estado, juntamente com o Ministério Público do Trabalho, elaboraram, no ano de 2013, um TCA celebrado individualmente com todos os municípios espírito-santenses, objetivando adotar medidas destinadas a adequar a gestão municipal de resíduos sólidos à PNRS, tendo especial atenção a implementação da coleta seletiva nos municípios. Desta feita, e preocupado, acima de tudo, com os resultados positivos que as assinaturas do TCA poderiam gerar, o Mistério Público Estadual, juntamente com outros órgãos e entidades estaduais, realizou uma série de reuniões de acompanhamento do cumprimento do TCA em todas as regiões do Estado, onde os municípios podiam apresentar os avanços e as dificuldades que, porventura, vinham a surgir para cumprimento dos itens contidos no termo. Nestas reuniões, sempre registradas em atas, o Ministério Público estabelecia metas a serem cumpridas pelos municípios e as cobrava de forma enérgica. Nos itens 3.6 e 3.6.1 do TCA, rezava: 3.6. Promover a formalização da organização dos catadores em cooperativas e associações, prestando-lhes assessoria técnica e jurídica para que realizem assembleias de constituição e para que venham a registrar em Cartório seus estatutos. 3.6.1. Apresentar o cadastro atualizado de todos os catadores de materiais recicláveis e seus familiares, com a devida comprovação de inclusão no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico, para seleção dos beneficiários dos Programas Federais de Bolsa Família, Tarifa Social e Energia, Pró-Jovem, dentre outros (TCA 01/13 – MPE/MPT/ município de PRESIDENTE KENNEDY) No entanto, não foi percebido, no município a tradicional figura do catador de material reciclável, aquele que faz da coleta seletiva a sua única ou principal fonte de renda. Existia, à época, pessoas isoladas que faziam do recolhimento de latinhas um complemento para a sua renda familiar. Este fato representou um entrave para o cumprimento do termo e foi levado ao Ministério Público, no sentido de buscar uma alternativa para a questão. Neste sentido, foi proposto ao município a alternativa de buscar, junto à Secretaria Municipal de Ação Social, munícipes que viviam em situação de pobreza extrema e, após reuniões e capacitações, apresentar a coleta seletiva como forma de conquistar a sua autonomia social e econômica. Após inúmeras reuniões, apresentando as possibilidades que a coleta seletiva poderia proporcionar somada, ainda, aos constantes diálogos estabelecidos com esses atores sobre a importância de formar um grupo para, juntos, conquistar maior espaço e projeção, enquanto catadores de materiais recicláveis, é que surgiu, dos próprios munícipes, a ideia de se organizarem enquanto associação para trabalhar, de forma compartilhada, a coleta seletiva no município. Desta forma, no dia 24 de setembro de 2015 deu-se o exercício fiscal da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis do município de Presidente Kennedy (ACKPEK), no entanto, para chegar até a sua efetiva formalização, a Prefeitura local, através da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, realizou diversos encontros com os “futuros” catadores. No entanto, para chegar até a formalização da Associação, foi necessário todo um trabalho com os membros da associação. Ao considerar que não foram encontradas, no município, pessoas que fazem da coleta seletiva sua única ou principal fonte de renda, e tendo a necessidade de cumprir as cláusulas do TCA, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, realizou uma busca junto à Secretaria Municipal de Assistência Social por cidadãos em estado de vulnerabilidade social para formar um grupo onde seria apresentada, a eles, a coleta seletiva como meio de promoção social. A primeira reunião aconteceu na sede da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, com um público de, aproximadamente, 30 famílias que não compreenderam direito a proposta, pois a maioria dos presentes estava pleiteando um “emprego” ou outro benefício vindo da Prefeitura Municipal de Presidente Kennedy. Vale ressaltar que uma triste característica das pessoas em estado de vulnerabilidade social é a extrema dificuldade de assumir o protagonismo de sua história, tornando-se profundamente dependentes do poder público ou da ajuda de terceiros para suprir as suas necessidades, sendo ‘coniventes” com a situação de miséria vivida até o momento, fato este percebido em Freire (1987, p. 29), ao abordar a relação do opressor e oprimido. Até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de seu estado de opressão ‘aceitam’ fatalistamente a sua exploração. Mais ainda, provavelmente assumam posições passivas, alheia das, com relação à necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação no mundo. Nisto reside sua ‘conivência’ com o regime opressor. Após esse primeiro contato com aqueles que viriam a compor a associação de catadores, apenas um pequeno grupo se mostrou disposto a conhecer melhor o universo dos catadores de materiais recicláveis e as possibilidades que poderiam ser abertas. Desta feita, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente iniciou um trabalho com o grupo, de forma a instrumentalizá-los com informações e motivá-los a desempenhar os trabalhos pertinentes à coleta seletiva. Foram realizadas inúmeras capacitações, encontros e visitas técnicas que culminaram com a proposta dos integrantes do grupo em formalizar uma associação. Somente após esta necessidade, percebida pelo grupo, é que foi abordada a possibilidade de o município oferecer alguns incentivos para a coleta seletiva. Dando-se início ao processo de formalização da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Residente Kennedy. Paralelo a formalização da associação, e em atenção ao item 3.6.2. do TCA “Disponibilizar equipamentos e estrutura para as organizações de catadores, tais como galpões de armazenamento, prensas, balanças, picotadeiras e outros”, as ações foram realizadas. Sendo assim, o município iniciou o processo de aquisição de alguns equipamentos a serem ofertados em sistema de comodato para a Associação, de forma a garantir que pudessem ser executados plenamente os trabalhos pertinentes à triagem e destinação final de materiais recicláveis. Uma vez a Associação devidamente instituída, com toda a documentação pertinente à sua formalização, o município de Presidente Kennedy, a contratou para realizar a triagem, destinação final adequada dos materiais recicláveis e a ações educação ambiental através de visitas domiciliares através do contrato n° 0256/2016. O valor do contrato, garantia uma renda fixa mensal aos catadores de R$ 678,00, além dos valores levantados com a venda dos materiais segregados. Atualmente, a Associação celebrou o seu terceiro contrato com o município e conta, em seu quadro de associados, com 10 membros que fazem a divisão de forma igualitária do produto do seu trabalho. Um fato que nos chama bastante a atenção e que é o objeto de estudo deste trabalho é o visível desenvolvimento socioeconômico dos membros da instituição. O contrato firmado entre a Associação e o município prevê um valor fixo referente aos serviços de triagem dos resíduos sólidos recicláveis, acrescido de um valor para a realização de ações de Educação Ambiental nas residências e a correta destinação final dos resíduos triados, valores estes que variam de acordo com a produção dos associados. Desta forma, quando a Associação recebe o pagamento pelos serviços prestados, faz a divisão igualitária do valor fixo que recebe, ficando o restante para pagamento de tributos e investimentos futuros. É também feita a divisão, igualmente, da venda dos materiais recicláveis, garantindo aos associados uma renda mensal em torno de 01 (um) salário-mínimo. Percebe-se que os associados que em sua maioria outrora não tinham nenhuma fonte de renda, agora, através da associação vislumbram a possibilidade real de se tornarem independentes. Na Tabela 2 tem-se a evolução dos contratos, ao longo dos anos, onde se evidencia o valor total dos contratos e o valor fixo pago, mensalmente, à Associação que é dividido igualmente entre todos os associados. Tabela 2 – Relação de valores pagos pelo município de Presidente Kennedy à Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy – ES por contrato.
Portal da Transparência Prefeitura Municipal de Presidente Kennedy (2020) Importante observar que,no último contrato, houve uma considerável queda nos valores pagos.O fato se deve a alguns ajustes que o município teve que fazer em relação ao fornecimento dos serviços pela Associação, desta feita, Presidente Kennedy,que pagava um valor pela destinação final e pela Educação Ambiental, com os ajustes, passou a pagar apenas pela última, que é realizada de porta em porta pelos associados, levando até os munícipes informações relevantes sobre a importância da coleta seletiva. A Associação recebe, por este serviço, um valor para cada residência visitada. Outro fato de relevância é a questão da preocupação dos associados com as questões trabalhistas, onde todos os associados possuem certificação de microempreendedor individual, realizando mensalmente o recolhimento dos tributos necessários a garantir toda a cobertura previdenciária ao trabalhador. 4.2 GRUPO FOCAL Embora a Associação tenha 10 membros, uma pessoa não pode comparecer para a aplicação do grupo focal, por motivo de saúde, logo, a técnica foi aplicada a apenas 9 participantes que contribuíram de forma bastante positiva. Através da técnica de quebra-gelo pude obter algumas informações valiosas como a importância da Associação para o catador e questões referentes ao sentimento individual dos mesmos por ela e sua relação de trabalho com os demais catadores. A dinâmica elencada para este momento foi a “Teia do Envolvimento”, na qual, embora seja uma dinâmica de apresentação, a sua estrutura permite fazer algumas alterações para que sirva como técnica de quebra-gelo e, ao mesmo tempo, uma ferramenta interessante para o levantamento de algumas informações prévias. Os objetivos da dinâmica foram de promover a desinibição inicial, fazer um diagnóstico prévio das impressões do grupo em relação à associação e conhecer o papel que a mesma exerce em sua vida, esta foi batizada de “Teia da Vida ou Vivência do Grupo”. De posse de um rolo de barbante, inicialmente, prende-se uma de suas pontas em uma das mãos e o rolo foi lançado para um dos integrantes da Associação que, após prender o barbante em seu braço, deveria responder à seguinte questão: O que a Associação de Catadores representa para você? Após sua resposta, lançou o rolo de barbante para que outro associado respondesse a mesma questão e, assim, sucessivamente. Após todos responderem a primeira pergunta, o último a responder lançou o rolo para o primeiro associado que respondeu o questionamento, que depois respondeu à seguinte questão: Como é a minha relação com meus companheiros de trabalho e em que eu posso melhorar? Após a resposta teve que lançar o rolo de barbante para um companheiro diferente do que lançou na primeira rodada. Ao término da dinâmica, foi solicitado aos associados que externassem o seu sentimento sobre aquela dinâmica. Depois que todos se manifestaram, o facilitador, expôs que o desenho que se formou com o barbante, ao ser lançado de um associado ao outro, lembra uma teia e ela estaria ligada diretamente a cada membro da Associação, formando a teia da vivência do grupo onde, a partir da experiência de vida de cada um, se dá a construção de um sonho que é de todos, colocando cada membro da organização responsável pelo bem-estar do grupo. Após essa técnica, iniciou-se, de fato, os debates relacionados ao grupo focal. Como forma de direcionar as questões a serem impostas, a pesquisadora seguiu um roteiro próprio com questões que, posteriormente, a partir das respostas dos participantes, foram se formando outras, estabelecendo um diálogo entre o grupo. Antes da realização do grupo focal, os participantes assinaram uma autorização individual que validou as informações que foram prestadas, inclusive garantindo o princípio da confidencialidade entre pesquisador e grupo pesquisado. Para a prática, ao conduzir os participantes a falar sobre o que a Associação de catadores representa em suas vidas, todos os presentes sinalizaram que é a sua principal fonte de renda, sem a qual não seria possível levar alimento para seus familiares. No entanto, uma associada, a senhora Maria, relatou que: “além de ser a principal fonte de renda, representa uma oportunidade de conhecimento, de integração com a comunidade e reconhecimento político”. Desta forma, evidencia a real condição socioeconômica do grupo que depende, exclusivamente, da associação, não apenas para si, como também fonte de sustento de seu grupo familiar, percebe-se ainda que os mesmos conseguem se reconhecer como parte integrante de um processo produtivo e de desenvolvimento local. Conforme afirma Pinhel (2013, p 26) “Os catadores chegam aos dias atuais caracterizados como profissionais – ‘catador de matéria reciclável’ – e protagonistas de um crescente e importante movimento político”. Percebe-se, ainda, através da fala da dona Maria, a preocupação com a formação, com o reconhecimento da comunidade e o respeito por parte do poder público. Mostrando, desta forma, o nível de evolução de um grupo de pessoas que, outrora, se encontrava às margens da sociedade, desacreditado de si. Conforme Freire (2005, p. 43) A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resulta a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se. e porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la. (...). Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mais na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressor e oprimido. Neste sentido, torna-se compreensível a fala de dona Maria quando exalta que atualmente existe um “reconhecimento público” da Associação, através da força solidária do trabalho em grupo, ela vem conquistando seu espaço na sociedade. Fato, este, corroborado através da Secretaria Municipal de Meio Ambiente que fez um relato sobre a atuação da Associação no município, onde a mesma participa ativamente do Conselho Municipal de Meio Ambiente, contribuindo com discussões importantes para a sustentabilidade do município, bem como o reconhecimento das escolas públicas municipal e estadual que, com frequência, leva seus alunos até lá para conhecerem o funcionamento da mesma, reconhecendo, assim, a sua importância, não só do ponto de vista ambiental, como social. Embora feita esta leitura de aparente realização pessoal, é necessário explorar o nível de satisfação dos catadores com a Associação, bem como o relacionamento interpessoal entre os membros, tendo em vista que é o nível de satisfação e o bom relacionamento entre todos que funcionam como combustível para o empenho e dedicação dos mesmos junto a ela, somado, ainda, ao bom relacionamento entre seus membros. Neste sentido, ao questionar se os catadores eram felizes na Associação, dentre os presentes, oito afirmaram serem plenamente felizes, ao passo que apenas uma pessoa alega não estar completamente feliz. Para melhor entendimento dos fatores que levam à felicidade, ou não, dos catadores, transcreveu-se abaixo três depoimentos dos catadores sobre o assunto: “Eu amo o que faço, gosto muito do meu trabalho, mais eu não sou feliz no meu local de trabalho. O que falta para melhorar é o respeito, é cada um respeitar o espaço do outro”. (Antônia) Esta fala de dona Antônia vem refletir um momento peculiar na qual a Associação está passando, conforme foi informado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, ela atravessa uma pequena crise entre a diretoria, pois alguns associados não aceitam a antiga presidente, no caso em questão a dona Antônia, que segundo a Associação deixava um pouco a desejar no que diz respeito a questões burocráticas e sendo inflexível em determinados casos com os associados, estabelecendo uma relação parecida com a relação patronal no mundo do trabalho, o que deixava parte dos associados descontente. Desta forma, a solução encontrada pelos catadores foi a realização de uma assembleia extraordinária, na qual depôs a presidente e se estabeleceu uma nova diretoria. Diante deste fato, criou-se uma atmosfera de desconfiança e hostilidade disfarçada entre as pessoas do grupo, em especial entre a antiga e a atual presidente. Por conta dos fatos narrados acima, encontra-se justificativa na fala de dona Antônia. Evidenciando a necessidade da realização de um trabalho mais efetivo entre os membros da organização, que vislumbre promover a reintegração do grupo. ” sou feliz e o que posso melhorar aqui é o respeito aos meus companheiros e não trazer problemas de fora para dentro, porque ninguém precisa saber dos meus problemas”. (Marcos) Esta resposta vem a corroborar com as situações provocadas por Dona Antônia. No entanto, apresenta um certo nível de maturidade ao exortar que não se deve trazer problemas para o grupo e, sim, tentar, entre eles, buscar soluções pacíficas através do diálogo. Neste sentido, Pinhel (2013, p. 168) contribui de forma bastante eficaz ao perceber a importância da formação e capacitação na construção de relacionamentos que favoreçam o desenvolvimento do grupo como um todo. Assim, um trabalho de formação e capacitação num empreendimento voltado para essa realidade deve ser fundamentado em processos participativos e realizado de forma a qualificar e fortalecer os trabalhadores. Tudo deve contribuir para que eles possam desenvolver o planejamento, as ações e práticas cotidianas, e também desenvolver o relacionamento com um contexto mais amplo para uma atuação estratégica. No entanto, uma fração da associação se mostra alheia a todos os dramas, anteriormente, citados e demostra o seu contentamento com a Associação pelo simples fato de poder com o seu trabalho dar uma vida mais digna para seus familiares. “Sou feliz porque é onde eu tiro o sustento para os meus filhos (...) Se eu não for feliz no meu serviço, vou ser feliz aonde? (risos)”. (Marcia) De forma bem-humorada, a catadora em questão, refletiu sobre a fala dos demais membros, tendo em vista que a felicidade está exatamente em poderem suprir as necessidades básicas da família, realidade esta que, segundo eles, sem a associação, não seria possível. Percebe-se, portanto um alto nível de satisfação com o trabalho associativismo, mesmo porque a gestão da Associação produz condições de ao final do mês garantir uma renda significativa aos seus associados. Vale ressaltar o que Pinhel (2013, p. 170) diz sobre a questão da autogestão, na qual é a base ideológica em que se firmou a organização. A autogestão tem o ser humano como centro e a justiça social como objetivo, e até por isso os empreendimentos devem ser economicamente viáveis. Para isso, deve-se buscar a excelência na produção e atendimento ao cliente, buscando as melhores técnicas de gestão do negócio. A produção que satisfaz as necessidades do cliente, além de proporcionar retorno financeiro, produz o retorno do bom resultado do trabalho coletivo e a satisfação em ser reconhecido pelo produto do próprio trabalho. A teia da vida do grupo provocou, de forma voluntária, discussões importantes que favoreceram um debate acerca da convivência do grupo e da forma como eles atualmente percebem a associação e o significado, da mesma, na sua vida. No entanto, para o entendimento pleno da situação é preciso perceber um pouco como era a vida dos associados antes de se integrarem à associação e, principalmente, como eles se percebiam. Desta forma, transcreve-se, a seguir, as contribuições de alguns de seus membros: “Eu não tinha nenhum dinheiro, separada, sozinha, não tinha muita convivência com as outras pessoas e vou dizer que muitas vezes não tinha nem o que comer em casa, porque não recebia nenhuma ajuda da prefeitura. Quando eu trabalhava na enxada, isso é quando tinha serviço, eu ganhava um dinheirinho, fora isso, não tinha nada.” (Maria) “Eu também trabalhava na roça e ganhava cinquenta reais por dia, mais era um trabalho muito difícil, ficar no sol, mais era preciso né?” (Marcia) “Eu era dona de casa, mais vivia com muita dificuldade. Graças a Deus nunca faltou nada em casa, só ele trabalhava na roça, (o esposo de Antônia que atualmente trabalha na associação) hoje, trabalhando junto, nossa vida melhorou, tanto no lado pessoal como no profissional” (Antônia). Evidencia-se, portanto, a origem humilde dos associados, que como outros milhares de catadores e catadoras de materiais recicláveis se viam vítimas de um sistema opressor que forçava a continuidade da sua situação de miséria em favor da manutenção do poder dominante que, de certa forma, promovia a desumanização da classe oprimida, forçando-a a se rebelar contra o sistema, não de forma violenta, mas através da resistência que vem do trabalho comunitário, desta, rompendo os grilhões ideológicos e construindo uma nova história. Neste sentido, Freire (2005, p. 16) comenta: A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação, a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde a lutar contra quem os fez menos, e esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam de fato, opressores, mais restauradores da humanidade de ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores. Importante resgatar, neste momento, a condição socioeconômica dos membros da Associação antes de se integrarem a ela, onde todos dependiam de programas sociais para a sua sobrevivência, sendo forçados a realizar trabalhos na lavoura ou se submetendo a outros tipos de trabalhos informais para conseguir o mínimo possível para sua família. Não conseguiam enxergar uma outra opção de sobrevida, pois já não mais eram capazes de sonhar com dias melhores, estavam apenas esperançosos de continuar sobrevivendo. No entanto, com o advento da Associação, eles puderam experimentar um ar de esperança, e nela se agarraram e ousaram acreditar neste sonho, sonho este que se faz real e promissor na vida dos catadores. Neste sentido, Andrade (2018, p.2) afirma que: Consideramos que o trabalho coletivo requer o reconhecimento da existência de outros e de uma interdependência entre estes na realização da atividade laboral, principalmente pelo fato de que nesse contexto, trabalho manual e intelectual estão íntima e complexamente articulados, provocando a resolução dos problemas inerentes aos processos de planejamento, organização e realização de tarefas no contexto de uma relação dialógica. Entende-se, com esta citação, que é facilmente perceptível que a associação de catadores, tem um grande potencial para transformar de forma positiva a realidade social dos cidadãos, no entanto, é necessário se aprofundar nesta questão, a fim de que não nos reste nenhuma dúvida quanto aos objetivos propostos. Neste sentido, é relevante entender como o trabalho desses profissionais é percebido pelo seu núcleo familiar. Tendo em vista a característica do trabalho realizado pelos catadores, o preconceito e a discriminação é uma variável que deve ser levada em conta, sobretudo quando se pretende perceber como se dá a questão do desenvolvimento social dos catadores, desta forma, Medeiros e Macedo (2006, p. 68) justificam a necessidade de tal análise conforme segue: O lixo, segundo Miura (2004), representa para os catadores seu meio de vida, a condição para garantir sua sobrevivência, a sua integração no mercado de trabalho, sem deixar de ter a conotação negativa construída socialmente em torno do lixo, ou seja, lixo é aquilo que é jogado fora, que gera asco, discriminação e preconceito. Nesta perspectiva, perceber o que a família sente, em relação ao trabalho realizado pelos associados, poderá dar um panorama melhor da satisfação dos associados, e perceber o nível de envolvimento de cada família. Assim, o relato abaixo nos mostra algo bastante interessante, no momento, sobre a percepção familiar acerca do trabalho de catador. “Eu já venho de uma geração de reciclagem, porque meu pai era catador e trabalhava no lixão, eu tinha muita vergonha do meu pai. Eu quando via ele na rua todo sujo catando lixo, ficava toda triste porque eu não entendia o que ele estava fazendo, eu não sabia que separando tudo, a gente consegue um bom dinheiro que dá para sobreviver, e hoje eu sobrevivo do que eu tinha vergonha, e hoje eu sou o orgulho do meu pai e ele também é um exemplo para mim e um orgulho para minha família (...) é bom o meu trabalho. Hoje eu estou sentindo na pele o que meu pai sentia, pois, a minha filha que tem a mesma idade que eu tinha na época, morre de vergonha, mais fica toda feliz com as coisas que eu compro para ela com o dinheiro daqui, mais eu falo com ela todo dia que não é para ter vergonha daquilo que a gente consegue com suor do rosto, é um trabalho digno como outro qualquer”. (Antônia). A fala de dona Antônia expressa claramente o preconceito e discriminação do trabalho realizado pelo catador, no entanto, quando a família percebe que é em razão deste trabalho que lhe é permitido acessar bens e serviços essenciais para a sua sobrevida, e que se trata de uma forma digna de trabalho, a tendência é que se “caia por terra” tais pré-conceitos e preconceitos e o ofício de catador se torna aceitável no seio familiar. Traçando um paralelo entre o passado e o presente de dona Antônia, percebe-se que o mesmo se repete com sua filha, onde há um pré-conceito e preconceito por parte dela, tal como aconteceu entre ela e seu pai. No entanto, ao perceber que o trabalho em questão é digno e é o que garante o sustento da sua família, há uma maior aceitação por parte do ente. Entretanto, é preciso entender se este sentimento de discriminação é percebido pelo catador não apenas por familiares, como também por parte da comunidade em geral. Desta forma, dona Antônia relata: “Eu já me senti muito discriminada, principalmente quando não estou no trabalho e vou a algum lugar chique, e encontro pessoas que me conhecem, inclusive daqui da secretaria mesmo, igual aconteceu quando eu estava em uma festa e encontrei uma pessoa da que da secretaria e ela se assustou e disse: você por aqui?! Falando como se aquele não fosse o meu lugar. Isso foi muito ruim. Mais eu não sei se foi discriminação ou eu mesma é que estava me discriminando. (...) no começo eu tinha vergonha de dizer que eu era catadora, hoje eu assumo e tenho orgulho de dizer que sou catadora!” (Antônia) Como se pode perceber, a profissão de catador ainda é um fator de exclusão social, conforme nos aponta Chauí (1980, p.21): As classes sociais não são coisas nem ideias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais. Ao perceber esta problemática da exclusão social, que persiste na sociedade, os participantes de grupo foram provocados a relatar situações de exclusão que já vivenciaram por conta do seu trabalho na Associação, alguns catadores afirmaram que não perceberam nenhuma situação discriminatória, no entanto, outros se propuseram a relatar de forma resumida, conforme segue: “Às vezes as pessoas me veem aqui dentro e depois me vê lá fora, as vezes eu penso que as pessoas falam assim: eu não vou comer na casa dela porque ela trabalha com lixo! Existe uma discriminação sim, e muitas das vezes somos a gente que faz.” (Maria) A partir da fala dos catadores, acima, percebe-se não apenas uma questão de preconceito externo, mas também um sentimento de autopiedade, pois a discriminação que alguns percebem, não se configura neste sentimento, propriamente dito, de terceiros, mas uma questão pessoal, de auto discriminação. Este fato é facilmente explicável, pois os associados, a bem pouco tempo atrás se encontravam em um estado de vulnerabilidade social, que contribuía para uma auto exclusão. Romano e Antunes (2002, p. 56) corroboram com esta discussão ao afirmar que Um dos principais mecanismos que se criam socialmente para justificar a exclusão social é argumentá-la ideologicamente, com preconceitos que subestimam o valor dos setores pobres e excluídos, sejam estas mulheres, classes sociais ou grupos étnicos. Mas para que o sistema de exclusão funcione, é necessário que os setores desempoderados se assumam estes preconceitos que paradoxalmente os desfavorecem. De fato, a exclusão social é uma realidade na vida dos catadores, conforme destacam Costa e Pato (2015), citando Bertoli (2009) em uma publicação do Encontro Nacional dos catadores, promovido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), em 2015, vêm a corroborar com a fala das catadoras ao afirmar que os catadores enfrentam discriminação e desvalorização laboral, sendo vistos, ainda, como um grupo em vulnerabilidade social. Esta visão, ainda está impregnada não apenas na sociedade, como também no próprio catador, que em função de um pré-conceito relacionado a sua atividade laboral se auto exila, socialmente, com impressões distorcidas da realidade à sua volta. Segundo Medeiros e Macedo (2006, p.68) essa dualidade é característica ao se trabalhar com reciclagem: O trabalho com o lixo não tem uma única representação ou sentido, ou é dotado de características ruins ou de características boas. Ele abarca tanto aspectos positivos quanto negativos, por isso, a relação dos catadores com o lixo é ambígua, refletindo a dialética inclusão/exclusão, saúde/doença, orgulho/humilhação. A partir da fala do grupo, foi possível perceber que, embora a necessidade de sobreviver seja a tônica da questão que permeia as discussões, a presença da solidariedade mútua se torna cada vez mais evidente. Mesmo porque o trabalho associativista tem como foco o desenvolvimento solidário, que gera benefícios para o grupo. Neste contexto, Singer (2004, p.1) descreve que: Desenvolvimento solidário é um processo de fomento de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma. Este desenvolvimento solidário, de que trata Singer, reflete nos associados em realizações pessoais, pode conquistar coisas que outrora ficavam apenas nos seus sonhos, e ainda se permitem a estabelecer metas mais ousadas. Conforme nos relata Renato, um catador que está na Associação há pouco mais de 1 ano: “Meu pai era caminhoneiro e ele sempre trabalhou com caminhão, lembro que quando era criança eu ficava fingindo que estava dirigindo o caminhão dele, que não era dele, era do patrão, eu brincava junto com meu irmão. (Que também faz parte da associação) Mais hoje, eu e meu irmão temos um sonho e se Deus quiser, vamos realizar, nós já até conseguimos tirar a nossa carteira de motorista, e agora estamos juntando dinheiro para conseguir comprar o nosso caminhão e então sair por esse mundão de meu Deus. (Renato) Renato é um dos mais recentes membros da Associação e, ao abordar a questão do seu sonho, evidencia que a organização é apenas uma ferramenta para conseguir seu real objetivo, que é a aquisição de um caminhão. Após esta fala, o grupo foi direcionado a estabelecer diálogos sobre as suas realizações e seus sonhos, tendo em vista que as respostas puderam favorecer a percepção dos avanços sociais do grupo. As transcrições abaixo relatam os sonhos e realizações de alguns associados. “Eu quando cheguei aqui não tinha absolutamente nada em casa, as vezes nem comida, hoje eu tenho a minha geladeira cheia, meu fogão novinho, minha máquina de lavar e meu guarda-roupa! Sempre sonhei em ter uma TV e você pode ir lá na minha sala que vai encontrar uma telona grande onde assisto minhas novelas, tudo comprado com dinheiro daqui. Outra coisa que consegui comprar com o dinheiro daqui foi a minha moto, é um pouco velhinha mais me leva pra onde eu quiser. Agora a minha meta é ajudar a minha filha a conseguir a casinha dela” (Adriana). A evolução socioeconômica de dona Adriana é bastante evidente, mediante o seu relato. No entanto, o fato que nos chama bastante a atenção é que embora com dificuldades financeiras no passado, segundo a mesma, chegando a trabalhar sem alimento, por não ter nada em casa, não desistiu da Associação e perseverou até conseguir resultados positivos, mostrando que dona Adriana acreditou no sonho de se tornar uma empreendedora a partir da reciclagem. “Minha conquista maior é eu ter o meu conforto, poder comer o que eu quiser, comprar minhas roupas e meus perfumes, fico muito feliz mesmo quando eu entro no supermercado e encho carrinho. No início deste ano eu fiz junto com meu marido um plano de comprar um carro para a gente e se Deus quiser, até o final do ano vamos comprar”. (Antônia) Dona Antônia é membro fundador da Associação, inicialmente ela trabalhava ali e era desencorajada pelo seu esposo que era diarista em lavouras da região. Após perceber os resultados positivos da Associação, este, também ingressou na mesma atividade e organização e os dois percebem, naquele local, a sua única fonte de renda, que é suficiente para suprir as necessidades de sua família e garantir um conforto digno a eles. “Deus me ajudou e hoje eu tenho a minha casinha que construí depois que vim trabalhar aqui. Tudo que tem lá veio com dinheiro daqui! Agora eu quero juntar mais um dinheirinho e fazer o meu terraço”. (Lurdes) Uma das conquistas mais notáveis foi a de dona Lurdes, tendo em vista que a mesma, sem o auxílio de ninguém, conseguiu construir sua casa em um terreno próximo à residência de seus familiares. Segundo ela, só foi possível realizar este sonho a partir do momento em que se tornou associada, pois com o dinheiro que recebe, uma parte ela usava para as suas despesas e outra parte era guardado para a construção da residência. Quando percebeu que tinha um valor considerável, comprou parte do material de construção e iniciou em regime de mutirão, com amigos e familiares, a construção desta. A casa foi construída em 2 anos. “Eu moro com a minha irmã e os filhos dela, mais antes eu vivia pedindo ajuda a um e outro para poder comprar bebida! (Trata-se de um alcoólatra em fase de recuperação), hoje eu consigo ajudar a minha irmã com o dinheiro daqui eu pago a luz e a água e ainda ajudo a colocar comida dentro de casa e me sobra ainda”. (Luiz) Luiz, possui sérios problemas com o álcool. Por conta disso, reside com sua irmã que o acolheu. No entanto, na Associação ele não consome álcool e realiza as tarefas como qualquer associado. Antes de integrar a associação, chegou a morar na rua dormindo ao relento e vivendo através de doações de terceiros. O fato dele conseguir controlar seu vício no trabalho e não depender da caridade alheia é uma evolução considerável, no que se refere ao desenvolvimento social do mesmo. “De tudo que vocês falaram, de uma coisa não tem preço, é poder ver a alegria nos olhos dos nossos filhos quando a gente chega com um brinquedo para eles! Hoje meus filhos andam igual a filhos de rico”. (Mario) Ao estabelecer uma relação entre o início do ingresso dos catadores na associação com as falas acima, evidencia-se a ascensão econômica e social do grupo onde, outrora, se tratavam de anônimos dependentes de aparelhos do estado para a sua sobrevivência, negados e desacreditados por todos. Hoje, ousam sonhar com dias melhores, não um sonho apenas, mas a possibilidade real de que estes sonhos se tornem, de fato, realidade, pois não sonham sozinhos, sonham juntos e sonhando juntos conquistam seu espaço. Nesta perspectiva, percebe-se nos catadores em diferentes dimensões preconizadas por Romano e Antunes (2002), tais como: aumento da autoestima, do despertar da capacidade de ação dos grupos e pessoas e o acesso aos meios de vida, propiciando, ao grupo, mudanças sociais significativas, que tendem a evoluir na medida em que forem surgindo novas conquistas. Traçando uma comparação entre o início da Associação e os dias atuais, percebe-se uma evolução significativa dos catadores, tanto do ponto de vista socioeconômico, como no relacionamento interpessoal. Conforme relata, dona Maria, uma experiência vivida nos primeiros dias da organização: “Quando começamos a trabalhar na associação, fizemos muitos cursos aqui, mais eu tinha vergonha de falar e ficava só ouvindo. Mais eu era muito estourada, quer dizer, ainda sou, mais hoje eu consigo me controlar mais. Lembro que foi a primeira vez que nós fomos fazer visita nas casas lá em Kennedy, (Os catadores realizam visitas domiciliares para fazer trabalho de educação ambiental) teve uma casa que além de não querer atender a gente, um homem ficou falando um monte de coisas lá. Xingando a gente como se nos fossemos bicho. Na hora o sangue ferveu e comecei a brigar com ele e quanto mais ele falava mais com raiva ia ficando, até que peguei um tijolo para jogar na janela da casa dele. Graças a Deus que meus companheiros não deixaram, senão eu iria era para a cadeia. Hoje, eu não faço mais isso, graças as reuniões e as palestras que a gente tem aqui eu melhorei muito, até mesmo a minha filha fala que eu estou mais calma e procuro resolver as coisas conversando agora”. (Maria) Importante salientar que, na constituição da Associação, a maioria dos membros não tinha a mínima noção do que era a coleta seletiva e muito menos da importância de uma organização deste porte. Tratava-se, portanto, de um grupo heterogêneo, que não se comunicava entre si e com problemas sérios de relacionamento interpessoal. Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, foi necessário um trabalho muito intensivo, no sentido de construir vínculos entre os membros da Associação para, posteriormente, iniciar, de fato, formações relativas à coleta seletiva e associativismo. Todo o processo teve que ser aprendido, tanto por parte da Associação como por parte da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que construíram, juntos, mecanismos que facilitaram vencer barreiras sociais e culturais. Os desafios, pelos quais os membros da Associação passaram, tiveram como prêmio o amadurecimento do grupo e o seu desenvolvimento gradual, em todos os níveis. Neste sentido, com base nos desafios e no êxito da Associação, na promoção social, foi proposta uma cartilha que servirá de guia para a formalização e fortalecimento a grupos de catadores de materiais recicláveis que iniciam um processo de organização, na busca por dias melhores. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Constituir uma associação de catadores requer um grande esforço de todos, e os objetivos precisam ser claros e partilhados pelo grupo. Conforme aconteceu com a Associação de Catadores de Presidente Kennedy, pois desde o primeiro momento da sua formação, os objetivos foram trabalhados e sendo construídos conjuntamente entre todos os associados. O sucesso da associação pode ser atribuído à construção coletiva a partir dos sonhos, dores e esperanças de pessoas que, outrora, se encontravam em estado de exclusão social e, agora, pela força da união de seu trabalho são reconhecidos pelo trabalho desenvolvido. A Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, atualmente, tem agido, de fato, como uma importante ferramenta de promoção de mudanças sociais e valorização da cidadania dos seus associados, tendo em vista a evolução socioeconômica dos catadores. Dentre os desafios enfrentados pela associação pode-se citar a questão do relacionamento interpessoal, especialmente, considerando que se trata de um grupo de pessoas distintas que convivem diariamente trabalhando de forma solidária, é de se esperar que ocorram alguns atritos por divergência de pensamentos. No entanto, atualmente, os membros da Associação conseguem, de forma madura, gerenciar as crises e, com elas, aprender novas lições, evidenciando um importante amadurecimento da organização. Disto posto, conclui-se que, de fato, a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy contribui, positivamente, para o desenvolvimento socioeconômico de seus associados, exercendo uma importância ímpar para os mesmos, por ser a principal fonte de renda, garantia de sustento da família e da manutenção da sua posição social na comunidade. Ao analisar a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Presidente Kennedy, seus desafios e vitórias, em específico a progressão socioeconômica que propiciou aos seus membros, surge-nos novas inquietações sobre a visão de como a comunidade a percebe e a importância que lhe é devida, bem como a eficácia das campanhas de Educação Ambiental para a melhoria da qualidade dos resíduos destinados a ela. Para tanto, percebe-se como necessário que haja futuros estudos que permitam elucidar tais interrogações, na tentativa de corroborar com o trabalho em questão. 6 REFERÊNCIAS ANDRADE, Márcia Campos, O nascimento de uma associação de catadores de material reciclável - um estudo de caso; Psicol. Am. Lat. n.14 México out. 2008, disponível em: encurtador.com.br/aimVY. Acesso em: 21/03/2020. ANDRÉ, Marli. O que é um estudo de caso qualitativo em educação?Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 40, p. 95-103, jul. /dez. 2013. _________. Anuário da Reciclagem 2017/2018; Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis; publicado em 06/09/2019. Disponível em: http://www.mncr.org.br/biblioteca/publicacoes/relatorios-e-pesquisas/anuario-da-reciclagem-2018-2018. Acesso em: 22/10/2019. ALVES, Maria Tereza Gonsalves; SOARES, José Francisco; XAVIER, Flavia Pereira. Índices Socioeconômicos das Escolas de Educação Básica Brasileira. Ensaio: aval. pol. públ. 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