Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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11/12/2021 (Nº 73) A BIOSSEGURANÇA E O TRABALHO DE ENFERMAGEM NO ENFRENTAMENTO DA COVID-19
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A BIOSSEGURANÇA E O TRABALHO DE ENFERMAGEM NO ENFRENTAMENTO DA COVID-19

Maria Emília dos S. Gonçalves

Enfermeira Docente do IFBA. Especialista em Administração Hospitalar. Especialista em docência do ensino superior. Especialista em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Jovens e Adultos. Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Regional. e-mail:emiliasam.ifba@gmail.com

Resumo: Trata-se de um artigo de revisão a partir dos descritores “Biossegurança; COVID-19 , Enfermagem e precarização do trabalho, tendo como objetivo geral: “Refletir sobre a precarização do trabalho de enfermagem no cenário atual, diante da pandemia do novo coronavírus”. Para alcançar o objetivo foi realizado estudo bibliográfico com abordagem qualitativa. Espera-se que este estudo sirva de base para novas reflexões e proposições no que se referre à segurança do trabalho dos profissionais nos aspetos da saúde e de direitos trabalhistas, maior na valorização do trabalho da enfermagem e melhor engajamento dos profissionais e das entidades de classe.

Palavras-chave: Biossegurança; COVID-19; Enfermagem; Precarização do trabalho.

Biosafety and nursing work in coping with covid-19

Abstract: This is a review article based on the descriptors “Biosafety; COVID-19, Nursing and precarious work, with the general objective: “Reflect on the precariousness of nursing work in the current scenario, given the pandemic of the new coronavirus”. To achieve the objective, a bibliographic study was carried out with a qualitative approach. It is hoped that this study will serve as a basis for new reflections and propositions regarding the job security of professionals in aspects of health and labor rights, greater appreciation of nursing work and better engagement of professionals and professional associations. .

Keywords: Biosafety; COVID-19; Nursing; Precarious work

Introdução

No final do ano de 2019 com o alerta da China sobre casos de uma pneumonia desconhecida, começava se desenhar um cenário inimaginável desde à última pandemia da gripe Espanhola, em 1918. O que parecia ser mais uma SARS se tornou uma doença que poderia ir de leve à extremamente grave, sendo causada pelo o novo coronavírus (CoV2) que ainda não tinha se manifestado no ser humano e, posteriormente foi intitulada COVID-19. Da China o vírus se propagou para vários países da Europa e logo se tornou uma pandemia obrigando medidas emergenciais para a contenção da transmissão e a busca para o tratamento.

No Brasil, o primeiro caso foi notificado em São Paulo no dia 26/02/2020 em um sexagenário que retornava da Europa e faleceu consequência à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARG). Rapidamente a doença se disseminou principalmente entre as pessoas que retornavam do exterior, até ser declarada a transmissão comunitária em vários Estados. Neste contexto, medidas foram adotadas para a proteção de pessoas com maior risco de desenvolver a forma mais grave da doença, entre elas idosos e indivíduos com doenças cardiovascular, respiratória, fumantes, diabetes, obesidade e imunoincompetentes.

Chamada pelo o Presidente da República como “gripezinha”, a COVID-19 se tornou um grande problema de saúde pública, desvendando o véu que encobria a desigualdade social, a falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) o baixo percentual de leitos e de equipamentos, tanto para a média, como para a alta complexidade, assim como a falta de investimento em pesquisa e inovação tecnológica do país. Somando a tudo isso, a precarização da formação e do trabalho da equipe multiprofissional de saúde, em especial, a equipe de enfermagem, formada por técnicos, auxiliares e enfermeiros que foram os primeiros Neste sentido, se torna primordial conhecer o vírus, a fisiopatologia da COVID-19 e as formas de transmissão, para se estabelecer medidas de contenção, prevenção e a proteção da equipe de enfermagem, que representa a maior força de trabalho nos serviços de saúde, em especial nos hospitais, passando a maior parte do tempo ao lado dos pacientes.

Dessa forma, este estudo tem como objetivo geral: “Refletir sobre a precarização do trabalho de enfermagem no cenário atual, diante da pandemia do novo coronavírus”. Para tanto, foi realizado estudo bibliográfico com abordagem qualitativa sobre o tema biossegurança, trabalho em enfermagem e os aspectos gerais relacionados ao novo coronavírus. Torna-se importante salientar a difícil tarefa que se tem pela frente, diante de um quadro que ainda está sendo pintado e são poucas investigações sobre o tema. Espera-se que este estudo sirva de base para novas reflexões e proposições no que se referre à segurança do trabalho dos profissionais nos aspetos da saúde e de direitos trabalhistas, maior na valorização do trabalho da enfermagem e melhor engajamento dos profissionais e das entidades de classe.

1. Contextualização da biossegurança

Ao se trazer a questão de biossegurança para discussão e análise, percebemos que este é um campo vasto, muito dinâmico e deve estar em constante consonância com as inovações tecnológicas, cada vez mais rápidas, podendo ser benéficas, como também, prejudiciais à vida. Neste sentido, etimologicamente a palavra biossegurança nos remete à “segurança da vida”, o que implica dizer que é imprescindível estabelecer medidas que neutralizem os riscos à vida, não apenas do trabalhador, mas também da comunidade (BRASIL, 2010). Nessa perspectiva, o conceito de biossegurança assume grande importância e é definido como: “[...] um conjunto de medidas para a segurança, minimização e controle de riscos nas atividades de trabalho biotecnológico das diversas áreas das ciências da saúde e biológicas [...]” (BAHIA, 2001).

A partir dessa perspectiva, o risco se torna a palavra-chave, sendo dessa forma primordial instituir medidas para minimizar, controlar e preservar a vida. Assim, nesta reflexão consideramos o conceito de risco trazido por PEREIRA (2004), como sendo “[...] a probabilidade de ocorrência de um dano [...]. Por sua vez, ainda apoiada no autor, o dano é traduzido como um agravo, “[...] mal ou prejuízo à saúde de um ou mais indivíduo, de uma coletividade ou população [...]”. Desse modo, se existem fatores que favoreçam riscos à saúde, podemos inferir que ter conhecimento, estabelecer medidas preventivas e de controle se torna essencial.

Ao contextualizar sobre o conceito de biossegurança, podemos perceber que ele é relativamente novo, sendo desenvolvido nos Estados Unidos na década de 1970 a partir de uma discussão científica, conhecida como conferência Assilomar, na qual se trouxe à tona a questão do avanço e impacto da pesquisa genética na sociedade, destacando a importância da proteção dos pesquisadores (SILVA; BARBOSA; PONTES 2014). Neste sentido, NEVES et al (2007) estão em consonância com Silva (2014), e destacam que

[...] Contudo, a tentativa de auto-regulação dessa reunião limitou a participação aos cientistas, excluindo outros atores sociais, gerando, assim, controvérsias públicas que culminaram em sérias implicações sociais gerando, assim, controvérsias públicas que culminaram em sérias implicações sociais (Weiner, 2001). É possível afirmar que essa limitação à participação dos diversos atores sociais teve implicações importantes na elaboração do conceito de biossegurança. (Glover, 2003). Assim, a noção de biossegurança foi concebida e adotada por grupos de elite e organizações de especialistas tecnocráticos intensamente isolados dos interesses e das pressões sociais e funciona como um modelo normativo para a regulação da biotecnologia [...] (NEVES et al, 2007).

Nessa perspectiva, na construção do conceito há uma delimitação entre o risco e a ética, na qual o risco fica a cargo dos cientistas como reguladores, e, por sua vez, a ética diz respeito aos interesses sociais, sendo da responsabilidade dos especialistas em ética. Estes debates se tornam importante ao se trazer para a centralidade a ética e a bioética na manipulação genética, a dignidade e preservação da vida humana.

Em sua base epistemológica a biossegurança atua a partir da abordagem como módulo, como processo ou como conduta (COSTA, 2000). Como módulo, a biossegurança é interdisciplinar e transversal e permeia as várias ciências, como a ética, a bioética, a educação, o direito. Como processo, a biossegurança é uma ação educativa que deve se inserir nos currículos, não como disciplinas estanques, mas de forma interdisciplinar, transdisciplinar e transversal para a construção do conhecimento nas dimensões técnicas, humanas, ética e políticas. Na abordagem como conduta, a biossegurança envolve o comportamento humano, as atitudes, a tomada de consciência, a solidariedade e autoconhecimento, evolvendo assim a educação transformadora.

No Brasil, a biossegurança começa ser institucionalizada na década de 1980 a partir da participação em um evento promovido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com o objetivo de promover treinamento em biossegurança, especialmente para a América Latina. Porém, só na década de 1990 que foi encaminhado ao Senado o projeto de Lei n. 8974/95 em biossegurança estabelecendo,

[...] normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança [...]” (BRASIL, 1995).

No ano de 2005, há a revogação da lei n.89745/95, dando lugar a Lei n. 11.105 de 24 de março de 2005, estabelecendo normas de segurança e mecanismos de fiscalização relacionados aos Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e seus derivados, o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida humana. Além disso, atribuía a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) a competência para a liberação dos transgênico.

Embora a lei 11.105/2005 seja voltada para biossegurança relacionada à manipulação de OGM, não podemos desconsiderar as atividades que colocam em risco à vida do trabalhador, da comunidade e do meio ambiente, como hospitais, laboratórios de análise clínica, construção civil, indústria de alimentos, entre outros.

No que tange ao trabalho na área da saúde, a portaria n. 485, de 11 de novembro de 2005 aprovou a Norma Regulamentadora n.º 32 (Segurança e Saúde no Trabalho em Estabelecimentos de Saúde), sendo de grande importância, pois preconizou ações de promoção, proteção e recuperação da saúde nas diversas áreas de atuação de trabalhadores que prestam assistência à saúde. Até então havia uma grande carência de legislação, uma vez que a Portaria MTB nº 3.214, de 08 de junho de 1978 ao determinar a Norma Regulamentadora (NR 06) que tratava dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), estabeleceu e definiu os tipos de EPI’s que as empresas estavam obrigadas a fornecer aos seus empregados, de acordo com as condições de trabalho desenvolvido resguardando a saúde e a integridade física dos trabalhadores de um modo geral. Contudo, a NR 06 não comtemplou os trabalhadores da área de saúde.

Na década de 1980, a Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) começava aos pouco assolar o mundo, causando grande imunodeficiência e morte por infecção oportunista. Chamada de “peste gay” por inicialmente ser relacionada à relação homossexual masculina, ela trouxe consigo a ignorância, o medo, o preconceito, a contaminação de milhões de pessoas e a morte. Ainda não se sabia ao certo sobre a evolução da doença, as formas de transmissão, prevenção e tratamento. À medida que a AIDS começou contaminar outros pessoas, foram definidos os grupos de riscos: homossexuais masculinos, bissexuais, usuário de drogas e hemofílicos (SANTOS 1999).

Levando em conta a reflexão anterior, podemos acreditar que os profissionais de saúde não foram considerados como grupo de risco, sendo que isto pode ter ocorrido por ainda, não se ter até então, a clareza da forma de transmissão. Contudo, diante das novas descobertas da transmissibilidade, a expressão “grupo de risco” foi caindo em desuso. Nessa perspectiva, Lopez (1997) aponta que o Centers For Disease Control (CDC) dos Estados Unidos, em 1987 instituiu recomendações com o propósito de diminuir o risco por HIV e o vírus da hepatite B e C, preconizando as precauções universais que envolviam medidas de barreiras diante de sangue e fluidos corporais para a segurança do trabalhador da área de saúde.

No Brasil, além das recomendações do CDC para a proteção do profissional de saúde, a Constituição de 1988 possibilitou avanço na legislação trabalhista, determinando a redução de riscos no trabalho por meio de normas de higiene e segurança do trabalho tornando o campo fértil para as reivindicações das categorias.

Nessa perspectiva, o Estado de direito democrático possibilitou a discussão e o debate sobre a legislação da saúde do trabalhador na área de saúde, na qual a enfermagem se organizou e lutou. Nesse sentido, Robazzi e Marziale apontam que em 2002, foi importante a participação da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP) ao fazerem parte do Grupo de Trabalho (GT), constituído por auditores fiscais do Ministério do Emprego e Trabalho, para a construção da NR 32.

Desde as primeiras reuniões, para o GT, tornou-se inequívoca a necessidade de se ter um texto normatizador oficial no País para a área da saúde, havendo consenso que essa era uma oportunidade importante e inquestionável de se regularizar as diversas e problemáticas questões que a envolvem. A partir daí, reuniu-se material bibliográfico sobre os diversos problemas encontrados entre os trabalhadores da saúde. [...] A NR 32 é considerada de extrema importância no cenário brasileiro, como legislação federal específica que trate das questões de segurança e saúde no trabalho, no setor da saúde; as normatizações existentes encontram-se esparsas, reunidas em diversas outras NR e resoluções, que não foram construídas especificamente para tal finalidade. Acredita-se que mudanças benéficas poderão ser alcançadas por meio da referida normatização, uma vez que procedimentos e medidas protetoras deverão ser realizadas com vistas a promover segurança no trabalho e prevenção de acidentes e doenças ocupacionais (Robazzi e Marziale, 2002).

Retornando às reflexões anteriores, ao se fazer uma busca na internet sobre a contaminação pelo Human immunodeficiency virus (HIV) entre profissionais da saúde no período da década de 1980 e 1990, foi possível observar um baixo quantitativo de notificações de exposição ocupacional. Nesse sentido, estudo realizado por SANTOS et al (2002) ao analisarem o Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN) de São Paulo, no período de 1980 a 2000, evidenciaram o registro de apenas 02 casos de contaminação por material infectante, sendo que um deles levou à morte e foi considerado o primeiro óbito relacionado ao risco ocupacional.

Nessa perspectiva, Santos; Monteiro; Ruiz (2002) a partir de um artigo jornalístico publicado em julho de 1999 que descrevia um caso de contaminação por HIV resultante de exposição ocupacional, as autoras realizaram uma investigação epidemiológica dos relatórios da época e constataram que se tratava de um auxiliar de enfermagem que em 1994 se contaminou após acidente com material pefurocortante durante punção venosa. Na ocasião, foram realizados dois testes, com resultados negativos neste período e, ainda foram descartados outros fatores de riscos.

Em 1995, houve a soroconversão constatada pelo o teste Elisa e em 1996, o teste Western Blot confirmou o resultado positivo, sendo o profissional afastado do trabalho, pois houve evolução para AIDS com o aparecimento das doenças oportunistas. Em 1997, o caso não foi registrado como exposição ocupacional, uma vez que nos registros do Sistema Brasileiro de Relato de Doenças Infecciosas (SINAN) no banco de dados para AIDS o formulário não incluía a notificação por exposição ocupacional, sendo classificado como risco não identificado. Somente em 1999 que este caso foi considerado como contaminação pelo HIV e AIDS por exposição ocupacional.

Pelo o pouco que foi exposto até aqui, ressaltamos a importância de a biossegurança no fazer dos profissionais de enfermagem, para a qualidade e a preservação da vida do trabalhador e da comunidade. No entanto, não se pode se limitar apenas às normas de prevenção e controle. A biossegurança deve abarcar a dimensão científica e a formação dos sujeitos não só na para seguir normas, mas para questionar as bases que mantém a precarização da formação, a precarização e desvalorização do trabalho em enfermagem.

2. O vírus que mudou o mundo

Após meses desde o surgimento de casos que desencadearam a primeira pandemia do século XXI, ainda estamos convivendo com um vírus desconhecido pelo o leigo, mas conhecido pelos cientistas. O coronavírus pode infectar os animais como aves, porco, camelo e o ser humano.

Considerado um RNA vírus, significa que ele é passível de mutação genética, favorecendo dessa forma sua reprodução e sobrevivência no ser humano, sendo que dos 07 coronavírus humanos (CoVhs), 03 deles são responsáveis por epidemias como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) causada pelo SARS-CoV1, a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) causada pelo o MERS CoV e agora o novo coronavírus (SARS-CoV2) causando a pandemia  Coronavirus disease - COVID -19 (GÓES,2012).

A busca para melhor conhecimento sobre o vírus e sua atuação no organismo se torna muito importante para o aperfeiçoamento do tratamento e o desenvolvimento de imunobiológico para prevenção. Nesse sentido, GÓES aponta que a morfologia do coronavírus é esférica, composta por camadas de lipídeos e proteínas, dando-lhe um aspecto de coroa. Sua infectividade e virulência estão relacionadas às glicoproteínas Spike que assumem importante papel na penetração do vírus nas células, ao induzir a fusão do envelope viral com a membrana celular do hospedeiro.

Outro aspecto importante é trazido por Maria Cátira Bortolin (2020), cientista e Professora doutora da UFRGS, ao descrever o contexto da sua pesquisa aponta a participação da angiotensin-converting enzyme 2 (ACE2) ou Enzima conversora da angiotensina (ECA), que embora fisiologicamente tenha a função de manter o metabolismo do sistema cardiovascular, na COVID-19 essa enzima é utilizada para infectar a célula do hospedeiro. BORTOLINI aponta ainda, a capacidade de adaptação do vírus, configurando um “[...] Um cenário perfeito e a seleção natural transformaram esse novo coronavírus em um especialista em infectar humanos [...] BORTOLIN, (2020). Ao utilizar a ECA para infectar o hospedeiro, esta proteína tão importante para o sistema cardiovascular, fica danificada comprometendo o metabolismo cardiovascular e a regulação pressão da arterial. Nesse processo há forte e exacerbada reação imunológica, comprometendo muito os órgãos, entre eles os pulmões, causando a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) decorrente do comprometimento maciço dos alvéolos, levando a gravidade da doença, e a pneumonia bacteriana, afetando outros órgãos nobres como o coração e os rins (IDEM).

Somado ao quadro pulmonar, há o relato de casos relacionados à coagulopatia em pacientes com a COVD-19 internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) que apresentavam elevados níveis de fibrinogênio Dímeros, como relatado por LLITJOS et al (2020) e também em um estudo brasileiro, ainda não divulgado no Brasil, porém difundido por Karina Toledo da| Agência FAPESP, ao descrever uma investigação da médica Elnara Negri do Hospital das Clínicas da FM-USP e Hospital Sírio-Libanês, que identificou casos associados ao tromboembolismo e o uso de anticoagulante tanto como profilático como terapêutico para pacientes com a COVID-19. Segundo a reportagem, para Elnara Negri (2020), este quadro de embolismo está relacionado à resposta do organismo às severas lesões no tecido alveolar, levando a uma resposta infamatória, provocando uma tempestade de proteínas que atuam como sinalizadores imunes e desencadeiam o processo coagulação. Os coágulos podem fazer obstruções em veias levando à trombose profunda em membros inferiores, mas podem migrar e obstruir artérias importantes no pulmão, causando a embolia pulmonar.

Estamos diante de uma doença ainda desconhecida, sem um tratamento específico e que se revelou perigosa tanto para idosos como para jovens. Em sua forma mais grave o indivíduo pode apresentar dispneia, baixa saturação de oxigênio em ar ambiente, desconforto respiratório, aumento da frequência cardíaca e respiratória, podendo variar de acordo com a idade dos sujeitos e as comorbidades. Nesse sentido, idosos e portadores de doenças crônicas como diabetes, hipertensão, doença cardiovascular e imunocomprometidos são os mais veneráveis, podendo ainda piorar o quadro. Embora os estudos apontem que 85% dos casos de COVID-19 sejam leves, os outros 15% são responsáveis por longa permanência na UTI, sendo alta taxa de ocupação de leitos, maior risco para complicações, maior necessidade de equipamentos médicos e equipe especializada para atender o indivíduo que precisa de suporte ventilatório, monitoramento cardíaco e hemodiálise, entre outros. Daí a importância do distanciamento social e o acompanhamento dos indivíduos considerados do grupo de risco, levando em conta o baixo quantitativo de leitos de UTI disponíveis.

Outro aspecto a ser ponderado se trata do trabalho em saúde e, em especial da enfermagem, diz respeito à transmissibilidade e letalidade do vírus. De acordo com o Ministério da Saúde (2020) a transmissão se dá majoritariamente por via respiratória por meio das gotículas expelidas da boca e nariz. Porém, quando se trata do procedimento de acesso à via respiratória por intubação orotraqueal, aspiração de secreção, ventilação manual, ressuscitação cardiopulmonar, oxigenação por cateter nasal e broncoscopia, há a produção de aerossóis, expondo o profissional ao risco.

Deve-se ainda considerar que com base na classificação de risco por agentes biológicos, o coronavírus pode ser classificado como classe de risco IV, oferecendo “[...] alto risco individual e para a comunidade com grande poder de transmissibilidade, em especial por via respiratória, ou de transmissão desconhecida [...]” (BRASIL, 2017). Nessa classe estão os agentes que [...] até o momento, não há nenhuma medida profilática ou terapêutica eficaz contra infecções ocasionadas por estes. Estes agentes causam doenças graves, tem alta capacidade de disseminação, como o vírus Ebola e o da varíola [...] (IDEM).

De acordo com o Ministério da Saúde (2020), uma vez o vírus no organismo, ele tem um período médio de incubação entre 5.2 dias podendo chegar até 12.5 dias. O indivíduo infectado pode transmitir em média de 07 dias após o início dos sintomas, sendo ainda possível a transmissão, mesmo sem o aparecimento dos sinais e sintomas. Além disso, devemos considerar sua capacidade de letalidade.

Para SILVA (2020), em março a taxa de letalidade pelo COVID-19 foi estimada em torno de 0,5 a 4%, sendo semelhante à da gripe espanhola (2 a 3%). Decorridos 03 meses da pandemia, no Brasil a letalidade está atualmente em 5,1%, elevando o poder do vírus para causar mortes.

Nesse sentido, se deve salientar a importância da biossegurança nas ações de enfermagem, que foi comtemplada na NR 32 de 2005, como resultado de reivindicações dos profissionais de saúde, desde a década de 1990, como mencionado anteriormente e cuja construção teve a importante participação de enfermeiros. Daí é imprescindível que a biossegurança não seja apenas um amontoado de normas, protocolos, procedimento operacional padrão, mas que vá além, questionando um sistema de exploração e precarização do trabalho em enfermagem, sendo imprescindível acender e reacender as pautas de reivindicações e lutas dos profissionais e estudantes de enfermagem, como ato político de ação e intervenção no mundo.

3. A precarização do trabalho em enfermagem em tempo da pandemia do coronavírus

A COVID-19 não é democrática como foi veiculado na televisão e nas redes sociais. Sabe-se que qualquer pessoa pode ser contaminada pelo o coronavírus e desenvolver a doença. Não obstante, a pandemia revelou e escancarou a desigualdade social em um país que insiste em desmantelar políticas públicas de acesso à saúde, educação, saneamento básico, segurança, cultura e lazer, para uma população formada por pretos, pardos e pobres em sua grande maioria. Da mesma forma que esta crise sanitária traz à tona a precarização do trabalho na área da saúde. De uma hora para outra, a população elegeu os profissionais de saúde como heróis, o que é compreensivo, pois diante da crise se emerge a [...] tendência do homem de mitificar o mundo à sua volta, num esforço de justificar aquilo que não entende [...] (Vieira, 2018 apud Eco,1976), tentatando se sentir mais seguro.

O trabalho em saúde é realizado por pessoas, que não são super heróis e precisam de condições dignas de remuneração, instrumentos de trabalho e proteção da saúde física e mental. Entre a equipe de saúde, a enfermagem como profissão secular, é composta por enfermeiras (os), técnicas (os) e auxiliares de enfermagem, representando a maior força de trabalho no estabelecimento de saúde, especialmente no hospital, no qual demanda maior tempo de assistência ao paciente. O enfermeiro, o técnico e o auxiliar de enfermagem não são anjos da guarda, nem sacerdotes e nem heróis. São trabalhadores e exercem uma atividade reconhecida desde a segunda metade do Século XIX, como profissão.

Nessa direção, PIRES (2009), aponta as características que fazem da enfermagem uma profissão: (i) demanda uma formação especializada para atividades especializadas, (ii) a exigência do domínio e conhecimento, (iii) o controle e reprodução desse conhecimento, por meio da formação e da pesquisa, (iv) a regulação do exercício profissional por leis e (v) um código de ética.

Nessa direção, para Wanda Horta (1979),

[...] a enfermagem é a ciência e a arte de assistir o ser humano no atendimento de suas necessidades básicas, de torná-lo independente desta assistência, quando possível, pelo ensino do autocuidado; de recuperar, manter e promover a saúde em colaboração com outros profissionais [...] (Wanda Horta, 1979).

Como ciência, a enfermagem está ancorada em uma base científica e tem como desafio a integralidade entre a teoria e a prática e o acompanhamento das inovações tecnológicas e pesquisas, neste mundo em constante transformação.

Em sua dimensão humana, Wanda Horta nos aponta que a [...] “Enfermagem é um serviço para o ser humano” [...], que presta assistência e faz para o paciente aquilo que ele não pode fazer por si. É ajudar, educar, acompanhar e desenvolver o autocuidado e a autonomia do sujeito. Na dimensão ética, que vai além do definido no Código de ética profissional, a enfermagem cuida considerando as diversidades culturais, étnicas, gêneros, religiosas, políticas e classes sociais, sempre pautada no conhecimento técnico-científico e na unicidade do ser e no respeito.

Como arte, o trabalho envolve técnica, razão e emoção. A enfermagem não é como uma pintura, nem música e muito menos a arte do improviso. Sua arte diz respeito à aplicação do conhecimento técnico-científico para cuidar de pessoas, possibilitando que atinjam o seu máximo de saúde. No que tange à dimensão política, a enfermagem é agente de mudanças para a transformação social com vistas à autonomia dos sujeitos, do empoderamento de grupos vulneráveis, no controle social e no fortalecimento e reconhecimento da profissão em busca de condições humanas no trabalho e na formação dos novos profissionais.

Nessa perspectiva, se torna importante refletir sobre as bases que reproduzem e mantêm a precarização do trabalho em enfermagem em um momento no qual, decorridos 03 meses, se contabilizam 194 profissionais da enfermagem que morreram pela COVID-19 ,com 18.708 casos de contaminação e taxa de letalidade de 2,48%, como foi registrado no “Observatório da enfermagem”, criado para a notificação e acompanhamento.

Desde o início da pandemia, a imprensa e as redes sociais divulgavam as péssimas condições de trabalho dos profissionais relacionadas à falta de EPI e de insumos como o papel toalha para secar as mãos, medicações e material médico hospitalar e assim como a falta de conhecimento técnico para o uso de EPI especializado. Além disso, a equipe cumpre intensa jornada de trabalho sem descanso, com falta de um bom dimensionamento de pessoal, atraso do pagamento do salário, baixa remuneração e até a falta de local para o descanso. Somado ao risco biológico, a enfermagem está exposta aos riscos físicos, químicos, ergonômico, quedas e psicossociais.

O sofrimento mental tem sido constante entre os profissionais de saúde, em especial a equipe de enfermagem, que passa 24 horas com o paciente. Além das extensas horas em um setor fechado e sem luz natural, a enfermagem precisa lidar com a pressão diante da gravidade do quadro do paciente, das complicações, o stress da equipe médica, do controle e atenção aos equipamentos de suporte e o atendimento à equipe médica, nutricionista, fisioterapia, entre outras.

Acrescenta-se ainda o fato de o profissional se ver diante de expressivo número de morte diariamente e do sofrimento alheio, podendo ocasionar sentimento de frustação e fracasso. A vivência constante com a morte faz com que o profissional se veja diante da própria morte, causando medo de também morrer e deixar a família. Ainda é preciso considerar que o profissional tem receio de contaminar a família e para protegê-la, mudam de casa e com ela toda dinâmica familiar. Mesmo diante de tanta importância do trabalho da enfermagem, o profissional é estigmatizado por vizinhos do condomínio ou no bairro que têm medo de serem contaminados, como foi veiculado nos noticiários e rede social.

Em face do exposto anteriormente, se torna importante refletir sobre a precarização do trabalho que modifica a dinâmica da sociedade capitalista a partir da flexibilização produtiva, impondo ao trabalhador a execução de múltiplas tarefas, a flexibilização das leis trabalhistas, o trabalho temporário com contratos também precários, com baixos salários e outras formas de prestação de serviço, como o trabalho por tempo determinado, trabalho part-time, assalariados terceirizados e membros de cooperativas, levando à perda de direitos trabalhistas como analisa Pires.

Cresce a terceirização, flexibilizam-se as relações trabalhistas, bem como muda a estrutura vertical das instituições emergindo um modelo de rede, com forte colaboração interempresas e intersetorial. A empresa ou instituição mantém o que é central e terceiriza parte do seu processo de produção. Deste modo, o trabalho não é desenvolvido apenas pelo trabalhador assalariado e protegido pelos benefícios do Estado de bem-estar social. [...] ‘precarização do trabalho’, com múltiplas relações contratuais, tem contribuído para aumentar as dificuldades de representação e atuação sindical deixando os trabalhadores desprotegidos e mais vulneráveis às exigências gerenciais e patronais (PIRES, 2008).

Nessa direção, Antunes (2000) analisa que a reconfiguração do capitalismo contemporâneo acentua sua lógica destrutiva, desenhando algumas tendências e entre elas, o modelo de regulação do estado de bem estar social que veio encoberto pela regulação do neoliberalismo privatizante e antissocial e evidenciando duas manifestações graves: a precarização do trabalho e a degradação do meio ambiente e da relação homem-natureza.

Trata-se, portanto, de uma aguda destrutividade, que no fundo é a expressão mais profunda da crise estrutural que assola a (des) sociabilização contemporânea: destrói-se força humana que trabalha; destroçam-se os direitos sociais; brutalizam-se enormes contingentes de homens e mulheres que vivem do trabalho; torna-se predatória a relação produção/natureza, criando-se uma monumental “sociedade do descartável”, que joga fora tudo que serviu como “embalagem” para as mercadorias e o seu sistema, mantendo-se, entretanto, o circuito reprodutivo do capital. (ANTUNES, 2000, p.38).

Desse modo, a área da saúde também é afetada, mesmo que o produto do seu trabalho não produza mercadoria, mas o cuidado à saúde como bem inalienável e direito de todos.

Nesse sentido Pires (2009) aponta que no Brasil, houve, e se pode afirmar, que ainda há o aumento de trabalhador com novas formas de relação de trabalho e que não tem os mesmos direitos trabalhistas que os assalariados. São profissionais com contrato temporário para exercer atividades pontuais, como plantonista, cobertura de férias, licenças ou para fins específicos, como o caso do Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde que realizou a contratação temporária de profissionais de saúde.

Este programa lançado em 2003 pelo o governo federal tinha como objetivo a expansão da Estratégia de saúde da família para o interior do país. Para isso, foi realizada contratação de médicos e enfermeiros, que deveriam fazer a especialização em saúde da família e receberiam como proventos, uma bolsa da CNPQ e deveriam trabalhar nos municípios eleitos. Nesse sentido, MANICA (2000) antes mesmo do efetivo início do programa, já fazia crítica relacionada aos valores das bolsas entre médicos e enfermeiros, e afirma:

[...], entretanto, para viabilizar o Programa, ainda este ano, o governo estabelece uma precária relação de trabalho com os profissionais. Trata as enfermeiras de forma diferente ao definir, um valor menor para a bolsa destas profissionais, contrariando princípios do próprio governo federal que estabelece isonomia quando o sistema de bolsa salário é utilizado como forma de compensação financeira (MANICA, 2000, s/p).

Diante do exposto, é preciso questionar as bases que mantém a desvalorização da enfermagem a ponto desta se tornar naturalizada.

Nessa perspectiva, ao analisar estudo realizado por MELO et al (2016), existe estreita relação entre autonomia do profissional, valorização e precarização do trabalho. Os autores apontam que a autonomia da profissional da enfermeira, fica condicionada às decisões do médico, estando isso relacionado à construção histórica e social, na qual a profissão da enfermagem sustenta o trabalho do médico e tem sua autonomia limitada às ordens e decisões do médico, estando isso relacionado ao modelo biomédico centrado na doença e procedimentos especializados, sobretudo no ambiente hospitalar.

Além disso, o modelo de organização capitalista impõe a divisão técnica do trabalho na atenção à saúde, envolvendo vários profissionais e fragmentando o cuidado em saúde. Nesse modelo, o médico tem um papel central de ordenador do trabalho, detentor do saber e tem posição central na assistência e os demais profissionais assumem um papel como secundário e até mesmo subordinado.

Assim o modelo biomédico ainda vigente, a flexibilização e a precarização do trabalho na enfermagem, fazem com que a autonomia da enfermeira seja anulada ou limitada.

[...] a enfermeira ocupa nas relações sociais de produção o lugar de funcionária assalariada, detentora apenas da força de trabalho e destituída dos meios de produção e de outra forma de capital, conforme afirma Santos5. Tal situação impõe à enfermeira a venda da sua força de trabalho ao capital, atendendo às exigências de quem a emprega e também aos determinantes sociais do seu trabalho, com destaque para a reestruturação produtiva e a precarização do trabalho (MELO et al,2016).

Ainda se vive a falta do reconhecimento da utilidade social do trabalho da enfermagem, tanto entre os demais profissionais da saúde, como por parte das instituições de saúde e os usuários. Quanto mais desvalorizado, mais precarizado será o trabalho em enfermagem. Nessa direção, torna oportuna a reflexão da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEN) ao apontar que “[...] O reconhecimento pessoal sempre foi um dos retornos e carinhos que recebemos das pessoas que assistimos. Mas enfermeiras e enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, precisam de melhores condições de trabalho, redução da jornada de trabalho (30 horas), salários dignos[...]” ABEN (20020).

Torna-se importante salientar que a enfermagem é composta por 03 categorias: enfermeiro, técnico e auxiliar de enfermagem, e, vem permeada pela divisão social do trabalho, na qual a enfermeira realiza majoritariamente o trabalho intelectual e os técnicos e auxiliares realizam o trabalho manual. Desse modo, as categorias vivenciam a desvalorização e precarização do trabalho de formas diferentes, mas trazem em si pontos em comum como descrito pelo relatório final sobre o perfil da enfermagem no Brasil, coordenado por MAHADO (2017), apontando a existência de vínculos trabalhistas na condição de subemprego e subsalário. Nessas modalidades, os profissionais da enfermagem trabalham poucas horas semanais, inferior a 20 horas, configurando subjornada de trabalho, sem vínculo empregatício e transformando a atividade profissional em “bico”.

Ainda de acordo com (Machado, 2017), no que se refere ao subsalário, diz respeito àqueles profissionais que recebem um salário muito abaixo do que é devido, pela a função que ocupa e é estabelecido pelo mercado de trabalho. Nessa situação estão os profissionais que recebem valor igual ou inferior a R$ 1000,00. Nessa condição, em torno de 59 mil profissionais (3,3%) em “subjornada de trabalho”, sendo que 31 mil (1,8%) declararam manter jornadas semanais com menos de 10 horas, não se configurando assim como emprego informal.

Pode-se dizer que, dada a natureza da atividade, a Enfermagem é uma profissão de trabalho institucionalizado, com inserção forte nas estruturas formais de emprego, seja, público, privado ou filantrópico. O que reforça a ideia de que a empregabilidade é uma questão central para essa categoria (MACHADO et al, 2017,p.341)

Assim, sob a perspectiva neoliberal que instituiu o Estado Mínimo e até a saúde vira mercadoria, a atenção em saúde começa a ser privatizado por meio da terceirização, passando a administração para empresas, consórcio público e as Organizações Sociais (OSs) e entre elas a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) criada em 2011. Embora, em seu pano de fundo, as OSs tenham sido criadas para gerir os serviços públicos, elas representam a privatização em várias áreas, em especial da saúde. Dessa forma o Estado tira a sua mão de áreas essenciais como a saúde, educação e segurança.

A terceirização que vem ocorrendo no serviço público de saúde é exemplar para indicar a renúncia do Estado à sua responsabilidade social e, ao mesmo tempo, revelar a promiscuidade das relações público—privado, com a transferência de altas somas de recursos públicos para instituições privadas, sem qualquer avaliação, planejamento, supervisão ou controle de como esse recurso é utilizado e de quais serviços e por quem e em quais condições estão sendo prestados [...] (DRUCK, 20016, p.20).

Além disso, a terceirização dos serviços de saúde impõe a precarização do trabalho traduzido na falta de vínculos permanentes, alta rotatividade pessoal, alta jornada de trabalho, subjornadas, perdas de direitos com contratos temporários e baixos salários, levando à dupla jornada para complementar a renda. Por outro lado, os funcionários públicos são vistos como onerosos e fardos para o governo e contribuintes, sendo desvalorizados e atacados em seus direitos e com perda salarial.

Estudo realizado por SOUZA et al (2017) em hospital universitário no ano de 2013, com a participação de 34 profissionais da enfermagem, evidenciou a escassez quantitativa e qualitativa de trabalhadores, falta de materiais médico-hospitalar, planta física inadequada e falta de equipamentos, comprometendo a segurança do paciente e do profissional, extenso ritmo de trabalho salários, baixos e redução de pessoal, gerando adoecimento e riscos de iatrogenias para o usuário.

Se essa realidade estava presente antes da pandemia do coronavírus, tanto pior se tornou após os primeiros casos da COVID-19 no Brasil. As denúncias de profissionais da enfermagem sobre a falta e atraso de pagamento de salário, da suspensão e falta de contrato empregatício, as péssimas condições de trabalho, a falta de EPI e extensas jornadas de trabalho e, ainda trabalhadores do grupo de risco que não foram afastados. Soma-se cenário as evidências de corrupção e desvio do dinheiro público no seio das OSS, enquanto o profissional tem seu trabalho precarizado e sua vida perdida. Neste sentido, A presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros, Shirley Marshal afirma:

[...] descumprimento de direitos é outra grande reclamação que temos recebido, além de muitos casos de excesso de jornada, algumas instituições têm alterado contratos e reduzido jornada e salários sem diálogo com os sindicatos e impedindo que os profissionais de enfermagem tirem férias e licenças, o que tem levado estes profissionais ao adoecimento (MARSHAL, 2020)

Assim, a pandemia revela o que estava encoberto e traz à tona a desvalorização e a precarização do trabalho em enfermagem, e ao mesmo tempo, evidencia a importância deste trabalho, não só no momento atual, mas em todos os momentos dos ciclos de vida dos sujeitos. A enfermagem cuida das pessoas, antes do nascimento, durante o nascimento, durante toda a vida e cuida no momento da morte.

Considerações finais

A saúde é um bem inalienável e direito de todos independentemente de classe social ou etnia, e, não é mercadoria. Diante do contexto atual, no qual o sistema econômico baseado no neoliberalismo produz profundas mudanças e atinge áreas essenciais como a saúde, segurança, trabalho e educação e aumenta o fosso da desigualdade social. Quando o Estado tira a sua mão de seguimentos essenciais e repassa para a iniciativa privada, a população mais pobre é a mais afetada. Assim, a lógica da produtividade e do lucro não pode ser inserida em áreas tão essenciais como saúde e educação. Essas duas áreas se tornam a base para a condição da cidadania, para que os sujeitos reconheçam seus direitos à uma vida digna, sendo dessa forma primordial a formação de técnicos e enfermeiro para além do modelo biomédico de atenção à saúde, mas que atuem com os demais profissionais de forma integrada a partir dos condicionantes e determinantes de saúde e a participação dos sujeitos.

Desse modo, se torna importante que a formação não privilegie somente a dimensão técnica e científica, mas a dimensão ética que baliza a valorização do trabalho em enfermagem, a dimensão política questionando as bases que mantém e sustentam as péssimas condições de trabalho e não possibilita à transformação social e a defesa do SUS.

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Ilustrações: Silvana Santos