Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Reflexão
18/08/2021 (Nº 76) DESMATAMENTO E CRISE HÍDRICA
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DESMATAMENTO E CRISE HÍDRICA

A crise hídrica e o desmatamento têm sido temas recorrentes na pauta ambiental. Em geral quando tratados conjuntamente a falta de chuvas histórica, que ocorre nos últimos dois anos, é apontada como decorrente das mudanças climáticas que, por sua vez têm entre as suas muitas causas a liberação de CO2 por queimadas depois do desflorestamento.

Mas a pauta da crise hídrica nem sempre tem relacionado outro aspecto do desmatamento que está acerbando a redução do volume de água nos reservatórios: a perda da permeabilidade do solo.

Em geral o debate na mídia aponta que o risco de crise de abastecimento energético decorre de um déficit hídrico intenso. O maior em muitas décadas de observação meteorológica. Esse fato é real. Mas a diminuição da vazão dos rios e barragens também é decorrência de menos infiltração de água no solo.

Essa água no solo alimenta os lençóis freáticos que mantêm a vazão dos cursos d’água nos períodos sem chuva. Um metro cúbico de solo com vegetação natural é capaz de reter até 500 litros de água. Esta capacidade decorre da matéria orgânica e do trabalho de raízes e organismos que vivem no solo. A matéria orgânica em si é uma esponja. Mas ela, ao se degradar, forma uma série de ácidos que funcionam como uma cola agregando a porção mineral. Esta mistura forma os grumos. Partículas semelhantes a grãos de cereais. Quando justapostos criam um espaço aéreo entre eles. Espaço que é aumentado pelo trabalho das raízes e dos demais seres vivos que vivem no solo. Formam algo semelhante a uma pilha de trigo. Quando jogamos água numa pilha de trigo ela é capaz de absorve muita água antes desta escorrer na superfície. Se fizermos o mesmo sobre a farinha, desse trigo, boa parte da água logo escorre sem penetrar na massa. Quem já fez pão conhece isso muito bem.

Algo semelhante ocorre no solo sem aporte da matéria orgânica morta. Sua falta acaba com a formação de “cola” que forma os grumos. A porção mineral se pulveriza e começa a entupir o espaço aéreo do solo eliminando sua capacidade de absorver e reter água. Num solo degradado a chuva escorre sem infiltrar e reabastecer o lençol freático. O resultado é uma menor reserva de água para manter a vazão dos rios.

Um local com floresta possui solo sadio capaz de reter mais de 70% da chuva que cai fazendo-a ser armazenada nos lençóis subterrâneos. Num hectare de terreno, a cada metro de profundidade, é possível guardar um volume de 5000 m3. Cerca de duas piscinas olímpicas. Um volume muito grande que lentamente alimenta as nascentes. O que regulariza a vazão do sistema hídrico e prolonga seu fluxo mesmo numa grande seca. Além disto, o solo da floresta tem menos erosão que é a principal causa da perda da capacidade de acumulo de água nas barragens.

O Desmatamento, além de contribuir em escala macro com as mudanças climáticas, em escala local é importante fator da diminuição da retenção de água no solo que é uma das grandes causas do déficit hídrico numa região. Déficit que pode levar a muitos problemas como menos água para irrigação, abastecimento humano, uso industrial, diluição de poluente e geração de energia.

Não é só a falta de chuva a causa dos riscos de desabastecimento de energia. A falta de permeabilidade do solo, decorrente da perda de florestas e outras formações vegetais nativas também esta na base desse problema. Mesmo com a volta da chuva a recuperação de reservas de água pode levar muito tempo.

Por isso é urgente recuperarmos as florestas e preservarmos o que está intacto se não quisermos agravar o efeito das mudanças climáticas. Em especial a vegetação ao longo dos cursos de água e a vegetação das encostas e nascentes. Eles são a porta de entrada na grande caixa de água natural. Quando se recuperar a vegetação destruída um dos primeiros efeitos relatados é justamente o reaparecimento de nascentes e maior volume e perenidade de cursos de água.

Além destes há muitos outros benefícios para todas as atividades humanas e para a vida silvestre. A vegetação é à base de toda cadeia da vida. Ela também tem efeitos microclimáticos importantes, pois fornece umidade por evaporação regularizando as chuvas de uma região.

Por isso o alerta de um risco de desabastecimento elétrico não deve ser somente encarado como um apelo à economia de energia. Deve ser encarado como mais um alerta para iniciarmos um programa de recuperação e preservação da vegetação natural. Precisamos dela para recuperar a capacidade de reter água no solo amenizando os efeitos das secas e das inundações catastróficas.

Ela também é uma forma de reverter o excesso de CO2 que está na base das mudanças climáticas. E também uma melhora geral no meio com reflexos na qualidade de vida humana e um incremento da biodiversidade.

Permanecer somente com a estratégia de poupar água e luz é fugir de ir à raiz dos problemas que estão se agravando. É postergar umas das soluções de longo prazo para lidar com esses problemas. E transmitir para os consumidores em geral um problema que decorre do modelo agrícola de ocupação do solo que hoje destrói a vegetação natural nos privando de todos os serviços ambientais que ela nos proporciona. Em especial, nesse caso, de garantir água para todos os usos.

Essa omissão é mais um exemplo de como a falta de uma visão mais crítica da situação global nos leva a construir uma estratégia incorreta de remediar os danos que nosso modo de vida tem gerado para nós e os demais seres do planeta.

Arno Kayser

Agrônomo, ecologista e escritor

Fonte: https://arnokayser.wordpress.com/2021/07/13/desmatamento-e-crise-hidrica/



Ilustrações: Silvana Santos