É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Arte e Ambiente
15/12/2021 (Nº 77) LEITURA DE/N UM MUNDO COMPLEXO
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LEITURA DE/N UM MUNDO COMPLEXO



Cláudia Mariza Mattos Brandãoi



Resumo: Neste texto eu desenvolvo uma reflexão acerca da experiência da leitura como leitura de mundo, abordando questões pertinentes ao pensamento complexo, como propõe Edgar Morin. Parto da observação de postagens nas redes sociais para refletir sobre prováveis repercussões das novas tecnologias no ato de ler, e possíveis consequências sobre as relações das pessoas entre si e com a natureza.



No bojo do redemoinho pandêmico, o qual repentinamente paralisou nossos corpos em frente às telas dos equipamentos eletrônicos, algumas questões que já me inquietavam adquiriram novos contornos. Entendo que para qualquer profissional da educação é fundamental manter um permanente exercício de autorreflexão, analisando a coerência entre as práticas e conceitos defendidos. Por isso, considero importante mais uma vez focar a discussão desta coluna no pensamento complexo.

O meu contato com as ideias de Edgar Morin se deu durante o Mestrado em Educação Ambiental (FURG, 1999 - 2002), percebidas como uma grande teia conceitual que estrutura o pensamento ambientalista, inclusive, na perspectiva da ecosofia, proposta por Félix Guattari (1990). Entretanto, identifico inúmeras discussões que não ultrapassam as questões teóricas sobre o tema para efetivamente se transformarem em práticas corriqueiras, o que me parece uma contradição. E isso me preocupa sobremaneira, pois entendo que para a análise de temas contemporâneos mais prementes, como a mediação tecnológica das relações humanas e as questões ambientais, por exemplo, é fundamental a identificação da complexa rede que subjaz os comportamentos.

A partir de tal compreensão, eu dou início à problematização, retomando resumidamente o pensamento de Morin. Espero que, mais do que reavivar ou reforçar a emergência do tema, a escrita estimule movimentos reflexivos e críticos sobre as próprias ações cotidianas.

Ao propor um entendimento complexo do mundo, Morin (2002) reconhece a imbricação entre sujeito e objeto em seus estudos, considerando a unidade e a diversidade humanas de todas as dimensões da realidade, seja física, biológica, psicológica, social, mitológica, econômica, sociológica ou histórica. Reunindo questões aparentemente separadas e excludentes, ele alia as dimensões científica e filosófica em prol da valorização de demandas cognitivas no âmbito das ciências. Em síntese, o autor propõe que “o conhecimento do humano deve ser, ao mesmo tempo, muito mais científico, muito mais filosófico e, enfim, muito mais poético do que é” (MORIN, 2002, p. 18).

A imersão numa realidade pautada pela virtualidade das relações, inclusive as educativas, nos coloca em estado de alerta, não somente pelas condições precárias de muitos estudantes, professores e instituições, mas, principalmente, em função de como lidamos com tais recursos. E em recente entrevista ao site El País Brasil, Pierre Lévy, escritor, professor e filósofo, se manifestou sobre o assunto.

Desde o início dos anos 1990, Lévy discute sobre uma superestrutura universal de comunicação e troca de dados. O autor, que tem várias obras publicadas sobre o tema, fez uma declaração que considero capital sobre a nossa relação com as novas tecnologias: “A natureza humana não se transformou, continua sendo a mesma. Assim, no fundo, essas possibilidades tecnológicas são como um espelho que nos faz nos refletirmos nele, e ver o melhor que há em nós… e também o pior” (HERMOSO, 2021, s/p).

O reconhecimento de que a comunicação através das redes reflete o que somos - o que pode parecer óbvio para alguns – é fundamental para pensamos sobre os materiais que circulam nas redes, sobre opiniões instituídas como verdades, muitas vezes consumidas acriticamente. Lévy fala também sobre a inadequação dos sistemas educacionais às novas tecnologias, destacando o déficit de atenção nas atuais sociedades digitais:

Sim, é preciso trabalhar a atenção das pessoas, e isso começa por ensinar a atenção na escola. Sem ela, não há nada a fazer. Você pode receber uma avalanche de dados e informações, mas se não tiver cultivado sua capacidade de atenção não tem nada a fazer com tudo isso. Mas não só. Além disso é necessário reforçar nossa capacidade de estabelecer prioridades. A única forma de utilizar e aproveitar essa avalanche de informação de forma positiva é ordenando-a, analisando-a e decidindo o que é importante ou não. Em suma, a chave é: ter capacidade de atenção, estabelecer prioridades e fixar objetivos. Algo assim como administrarmos a nós mesmos, digamos. Ser autônomos. (HERMOSO, 2021, s/p).

Ao argumentar em prol da ativação da capacidade de atenção e do senso de prioridade, como uma necessidade primordial para lidarmos com tal realidade, Lévy ressalta que: “Para nós, que nos sentimos humanistas, apenas o ser humano conta, o fator humano e a experiência humana”. Sendo assim, se a capacidade humana de discernimento e análise crítica da realidade é relevante, comprova-se a necessidade do entendimento dos fatos cotidianos a partir de um ponto de vista complexo.

Recentemente foi lançado o livro 100 things we’ve lost to the internet, da jornalista estadunidense Pamela Paul, ainda sem tradução no Brasil. Nele, Pamela problematiza a dependência gerada pelas redes sociais, o quanto elas podem influenciar o comportamento dos jovens e esgotar o raciocínio:

Muitas vezes eu percebo que esqueci completamente que o tio de tal pessoa tinha morrido porque aconteceu há seis horas e depois disso 30 outras coisas ocorreram. É uma chicotada constante de atenção emocional. É esgotador. Temos tantas reações emocionais porque há tanto a que reagir que é difícil a gente se recuperar no final do dia. (COLOMÉ, 2021, s/p).

A abordagem da autora sobre uma situação presente, agravada pela realidade pandêmica, demonstra que, mesmo sem parâmetros claros para avaliações, é possível analisar alguns possíveis impactos sobre as pessoas. Em especial, eu quero focar nas crianças, que desde a mais tenra idade já estão utilizando tais equipamentos, sujeitas aos impactos negativos sobre a formação crítica das consciências.

Dentre as inúmeras postagens que circularam em minhas redes sociais nos últimos dias, uma em especial chamou a minha atenção. Parece-me que a imagem (Figura 1) é quase como uma ilustração das discussões desenvolvidas por Michel Serres, no livro “Polegarzinha” (2013), no qual discute o poder de sedução e a centralidade das mídias no desenvolvimento das crianças e a repercussão disso sobre os corpos ... cujos polegares são acionados para a escrita nos novos equipamentos: “A originalidade de nossa jovem se refugia nesse vazio translúcido, sob a agradável brisa. Conhecimento de custo quase zero e, no entanto, difícil de agarrar” (SERRES, 2013, p. 38).

Figura 1: Imagem postada no Facebook, anônima.

Fonte: Acervo da pesquisadora.

O acesso facilitado às telas coloca as pessoas prostradas a sua frente, com os corpos parados, sem troca de energia com o meio, sem deslocamento geográfico real, sem a realização de experiências concretas, domesticados pelo encantamento da “agradável brisa”. Nesse momento, de imposição do afastamento social, estamos impossibilitados de vivenciar corporalmente experiências (trans)formadoras, entretanto, sabemos bem que isso já acontecia antes da chegada da pandemia.

Lembro que no final do século passado, eu já observava o contato precoce de algumas crianças com os novos aparatos. E pensava sobre o exemplo que nós, adultos, damos às crianças:

Nesse ponto preciso, a Polegarzinha reclama dos pais: criticam meu egoísmo, mas quem me mostrou o caminho? Criticam meu individualismo, mas quem o ensinou? E vocês mesmos, souberam estar juntos? (SERRES, 2013, p. 70).

Michel Serres exemplifica através de sua personagem as inquietações advindas da excessiva convivência com os novos aparatos eletrônicos. São crianças acostumadas a (co)viver num espaço onde “Todo mundo quer falar, todo mundo comunica com todo mundo, por redes inumeráveis” (id.). E tal realidade se configura como um tecido etéreo formado através do automatismo dos gestos, das palavras abreviadas e do espaço limitado pelo número de toques.

Não tenho a intenção de elaborar uma crítica ferrenha contra as novas tecnologias, principalmente, por serem elas que agora me permitem “encontrar” inúmeras/os leitoras/es: seria uma atitude hipócrita da minha parte. Ao contrário, através deste texto busco estimular o pensamento complexo e convidar a um “pensar juntas/os”, visando delinear possibilidades futuras que possam contribuir para uma vida em sociedade afetuosa.

Voltando à Figura 1 ... quando essa imagem fortuita surgiu na minha timeline, logo lembrei de outra, essa oriunda da história da arte.

Figura 2: Jean-Honoré Fragonard, A Jovem Leitora, óleo sobre tela, 81.1 x 64.8 cm, 1772, National Gallery of Art, Washington, DC, USA.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Leitora

Refiro-me ao quadro “A Jovem Leitora” (La Jeune Fille lisant), do pintor francês Jean-Honoré Fragonard (Figura 2). E a comparação entre essas duas imagens me levou a pensar na experiência da leitura e nas diferenças proporcionadas pelos dois meios: o computador e o livro.

Nesse sentido, eu assumo o espelhamento das imagens como símbolo de experiências de leitura opostas. A primeira (Figura 1), corporalmente distanciada, focada numa tela e no rolamento de um texto uniforme, a partir de repetidos clicks, e caracterizada pelo suporte bidimensional que não aciona a interatividade corporal. A outra (Figura 2), impondo o contato corporal com o objeto livro, tridimensional, que implica o ato de folhear as páginas, sentir a sua textura e o cheiro do papel, a interação do corpo com o objeto, não somente o encontro entre a visão e o texto.

É interessante notar que tais diferenças reúnem um conjunto de fatores peculiares, afetando a percepção das pessoas, inclusive, acerca do mundo ao redor.

A importância da leitura para a formação humana se vincula à necessidade de ficção e fantasia, de acionamento da imaginação e da criatividade. Seu papel educativo fica claro quando pensamos que tal experiência não se encerra nos preceitos da adaptação social. Ao contrário, a leitura forma não porque limita, mas sim porque amplia, tornando a vida possível através da cultura.

No artigo “O Vício Solitário: contra a leitura”, a professora e pesquisadora mexicana Gabriela Warkentin de la Mora (2019, s/p) afirma:

O livro que lemos não permanece unido para sempre apenas ao que havia em torno de nós, continua fielmente unido também ao que éramos então. E só pode ser sentido de novo concebido através da sensibilidade, através do pensamento pela pessoa que éramos então.

O amor aos livros faz parte de quem eu sou, e transmiti esse sentimento a minha filha. Reconheço que a literatura é um produto cultural, sei que a “experiência de leitura” depende tanto do livro como da leitora, entretanto, independente de tais questões - que podem gerar outras problematizações –, gostaria de salientar outro enfoque, com base na afirmativa de Warkentin.

Qualquer leitura deixa “rastros” em quem lê, superficiais ou mais profundos. E é exatamente o somatório deles, advindos da concretização da experiência da leitura, acrescido de outros conhecimentos, das mais variadas naturezas, que nos permitem acessar o pensamento complexo. Lembro que a experiência proporcionada pela leitura não pode ser confundida com a decodificação das letras, dos códigos unitários da linguagem verbal. Refiro-me a algo mais amplo, a vivências que estimulam a percepção, que permitem o estabelecimento de relações e o envolvimento com questões concretas relativas à realidade imediata.

Destaco, portanto, que assumir a complexidade do mundo implica também o reconhecimento do nosso lugar na teia da vida, unidos a todas as demais espécies em igualdade de condições. E analisar criticamente o tempo presente, sempre fugidio, pode ser valioso, pois “embora o futuro seja invisível e que se deve esperar o inesperado, podemos examinar o sentido dos processos atuais” (MORIN, 2002, p. 24,4)

Como já disse, reconheço as vantagens das novas tecnologias, porém, fico pensando cá com meus botões: será que outras pessoas ao verem a referida fotografia também lembraram do quadro de Fragonard, que conheci folheando livros de história da arte? Talvez muitas delas tenham sido capturadas somente pela beleza da criança.

Desta experiência, fruto de um evento banal, retirei algumas lições. Por exemplo, eu tenho certeza de que sem o contato anterior com os livros eu nem saberia da existência do quadro “A Jovem Leitora”. Consequentemente, eu também não seria capaz de estabelecer tal relação através de clicks, visto que qualquer pesquisa na internet exige uma palavra-chave, ou seja, um conhecimento prévio.

Esses são devaneios particulares, que espero reverberem e inquietem. Eles estimularam a escrita e provocaram indagações, mas, para o meu deleite, também promoveram o encontro com as palavras do poeta:



No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a

criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona

para a cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele

delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer

nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio.

(BARROS, 2015, p. 83).



E Manoel de Barros trouxe mais agitação para o meu pensamento, acrescentando algumas pílulas poéticas ao turbilhão mental:

Serão nossas crianças ainda capazes de escutar a cor dos pássaros? Será que a leitura bidimensional proporciona a elas o delírio do verbo?

Sinceramente, não sei. Gostaria de ter uma resposta, uma “verdade” para defender, mas não tenho. Ao contrário, fico pensando sobre o possível comprometimento no desenvolvimento de corporeidades ativas na elaboração do conhecimento.

No momento as dúvidas são muitas, assim como a angústia provocada por um porvir incerto, frente às graves questões ambientais e aos corpos imobilizados. Porém, para não deixar os leitores no “vácuo”, digo o que sei, com a certeza de quem (com)vive nesta contemporaneidade tecnológica: em muitos lugares ouvir o canto dos pássaros já não é possível, pois suas casas/árvores foram destruídas.

Mas o que temos a dizer sobre escutar suas cores?



Referências:



BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

COLOMÉ, Jordi Pérez. Como era a vida antes da internet? O catálogo das 100 coisas que perdemos. Artigo. El País Brasil, 27/11/2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/tecnologia/2021-11-27/como-era-a-vida-antes-da-internet-o-catalogo-das-100-coisas-que-perdemos.html. Acesso em 02/12/2021

GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.

HERMOSO, Borja. Pierre Lévy: “Muitos não acreditam, mas já éramos muito maus antes da internet”. Artigo. El País Brasil, 01/07/2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/eps/2021-07-01/pierre-levy-muitos-nao-acreditam-mas-ja-eramos-muito-maus-antes-da-internet.html?rel=mas_sumario. Acesso em 02/12/2021.

MORA, Gabriela Warkentin de la. Ese vicio solitario que fomenta el Estado. Artigo. El País Brasil, 29/01/2019. Disponível em: https://elpais.com/internacional/2019/01/29/mexico/1548787651_608386.html Acesso em 02/12/2021.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002.

SERRES, Michel. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

i Doutora em Educação, com pós-doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, do curso Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq) http://www.photographein-pesquisa.com.br/

attos@vetorial.net

Ilustrações: Silvana Santos