É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Entrevistas
ENTREVISTA COM FABIANO LOURENÇO CRESPILHO PARA A 89ª EDIÇÃO DA REVISTA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO Por Bere Adams
Fabiano L. Crespilho – Foto / Arquivo pessoal Apresentação – Fabiano Crespilho é o entrevistado da 89ª edição da revista. Sua trajetória iniciou na eletrônica. Na faculdade, estudou Ciências Sociais, Economia e formou-se em mestre em economia financeira internacional, o que lhe proporcionou uma base holística para compreender a complexidade humana e os desafios do desenvolvimento econômico sustentável. Atualmente, dedica-se à criação de um telhado verde aquapônico e produtivo, um microcosmo autossustentável com o objetivo de aplicar tudo o que tem aprendido, desde eletrônica à economia, passando pelas ciências humanas à biologia, permacultura e ecologia. Foi quando fundou o HumaHorta, que, segundo ele, “vai além de um mero empreendimento econômico: ele materializa uma vida dedicada ao estudo da ocupação humana na Terra”. Na sequência, pretende experimentar e colaborar com pesquisa acadêmica sobre o tema da eficiência energética de residências e a reintegrar as pessoas a um ecossistema orgânico, em harmonia com funções biológicas. Bere – Prezado Fabiano, é um imenso prazer tê-lo como nosso entrevistado, muito obrigada por aceitar a este convite de compartilhar, a partir desta entrevista, um pouco da tua jornada e teus conhecimentos. Normalmente inicio minhas entrevistas perguntando: Quando e por que você começou a se dedicar às questões ambientais? Fabiano – O prazer é todo meu, Bere. Agradeço a oportunidade de repensar minha jornada pessoal e compartilhar o projeto HumaHorta. Essa pergunta me faz refletir bastante. Geralmente, não me considero exatamente alguém “dedicado às questões ambientais”. No entanto, após recentemente ter lido alguns livros de Edward O. Wilson, um dos maiores biólogos, naturalistas e defensores da biodiversidade do século XX, compreendi que a busca por uma maior conexão com a natureza e a preservação da biodiversidade são causas maiores que nos norteiam a todos, queiramos ou não, devido à nossa tendência inata à biofilia. Inicialmente, minha motivação consciente para construir uma horta vertical eficiente no telhado da minha casa tinha pouco a ver com uma luta ambiental. O objetivo principal era aproveitar a imensa quantidade de energia e recursos desperdiçados e explorar até que ponto é possível maximizar a produção de alimentos em um espaço limitado, utilizando tecnologias e valores voltados ao desafio dos limites da autossuficiência e as fronteiras da divisão tradicional do trabalho. Eu queria entender quanta produção e independência seria possível em um espaço restrito, gerando não apenas valor econômico, mas também saúde e bem-estar com o movimento do corpo. Mas, foi durante o trabalho de construção do HumaHorta que comecei a ler e compreender que há mais uma vantagem nesse projeto.
Fotos de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal Há uma força invisível que me inspira inconscientemente, é real e tem sido recentemente estudada: Edward O. Wilson a chama de biofilia. Trata-se de uma tendência inata e universal impressa nos cérebros dos seres humanos — presente no nosso DNA, nas nossas emoções e no nosso comportamento, assim como em todos os seres — de buscar harmonia e conexão com toda a vida no planeta, ou seja, com o ambiente natural no qual evoluímos. Essa ligação intrínseca reflete o fato de que somos parte integrante de um planeta vivo e necessitamos de toda a sua biodiversidade para uma existência completa. Com a construção do HumaHorta, percebo cada vez mais que também desfruto da satisfação associada ao esforço próprio por reestabelecer esse elo na teia da vida. Descobri que, ao recriar um microcosmo natural, estou também reconstruindo um elo perdido entre o humano e a natureza. É uma busca por equilíbrio, não apenas ambiental, mas também emocional e existencial. Hoje entendo que o ambientalismo, para mim, é menos uma bandeira e mais uma prática diária de conexão e responsabilidade. O que começou como um projeto pragmático se transformou em uma jornada de reconexão com a diversidade do planeta, orientada por uma admiração crescente pela vida em todas as suas formas.
Fotos de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal Bere – E como a antropologia, a sociologia e a ciência política lhe proporcionaram uma base holística para compreender a complexidade humana e os desafios do desenvolvimento econômico sustentável? Fabiano – Interessante você perguntar isso, também, Bere. Durante um ou dois anos, quando estudei princípios de antropologia, sociologia e ciência política na Unicamp, confesso que me sentia desanimado. É verdade que essas disciplinas me apresentaram algo da complexidade das dinâmicas humanas e também algumas perspectivas do que entendemos como processo civilizatório. Talvez esteja sendo injusto com seus autores, mas eu sentia uma parcialidade pouco científica e os resquícios de uma ética religiosa que almejava transcender os conflitos, as disputas sociais e as guerras, como se fosse possível viver em um “paraíso” onde a dor e o sofrimento pudessem ser eliminados. Creio que conflitos e ajustes fazem parte da natureza dos sistemas vivos e ignorá-los prejudica a compreensão dos ciclos que sustentam a existência. Minha frustração vinha do fato de que os valores dessas ciências estavam contaminados por essa ética reducionista. Quando comecei a estudar economia, essa percepção se aprofundou. A economia parecia tentar simplificar a importância dos ciclos naturais de ascensão e queda, tratando os ciclos econômicos como algo a ser corrigido ou eliminado, em vez de integrá-los aos fluxos naturais da vida. A busca por crescimento sem limites, sem reconhecer os ciclos reais do universo, parecia falha. Muito pouco nas teorias ou abordagens que eu estudava parecia propor a reintegração de valores mais profundos, holísticos e dinâmicos. Encontrei alguma coerência ao me deparar com poucos autores como Ernst F. Schumacher, em “O Negócio é Ser Pequeno”, e com as ideias do decrescimento econômico e decolonialidade que criticam a obsessão pelo crescimento infinito, defendendo uma economia que respeite os limites ecológicos e priorize o bem-estar humano sobre a acumulação material. Concluindo, nunca me alinhei às ideias do chamado “crescimento sustentável”, seja ele verde, amarelo, azul ou de qualquer cor, pois acredito que o conceito em si carrega contradições e limitações ideológicas. Para mim, o verdadeiro desafio é reconhecer os limites de qualquer crescimento, especialmente o da população humana e criar uma ciência que incorpore a capacidade ecológica do planeta. Isso exige mudança de valores e uma revolução metodológica. Quem sabe esteja surgindo agora essa ciência coerente com a complexidade da vida - uma ciência multidisciplinar que nos ajude a lidar com os paradoxos da nossa existência e com a inevitabilidade da mudança, ao invés de tentar negar a dinâmica da vida. Mas não estudei isso nas universidades. Também quero dizer que o HumaHorta não busca "voltar à natureza" ou um paraíso perdido. Ele é uma ponte entre dois mundos. Ele faz sentido em ambientes urbanos densos, como São Paulo, onde o único espaço disponível para uma horta doméstica pode ser o telhado. Acredito que iniciativas como essa continuarão, por muitos anos, sendo pouco difundidas, restritas a um pequeno grupo de pessoas com recursos para investir em um micro ecossistema natural em suas casas. O HumaHorta é, essencialmente, um esforço de pesquisa prática voltado ao fomento dessa reintegração.
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal Bere — E como essa reconexão ocorre no HumaHorta? Fabiano — Aquaponia é um sistema sustentável que combina a criação de peixes com o cultivo de plantas em um ciclo fechado, onde os resíduos dos peixes são convertidos por bactérias em nutrientes para as plantas, que, por sua vez, ajudam a purificar a água para os peixes. Nosso papel é limitado, como ao verificar se o circuito está equilibrado, mas não temos controle total sobre os nutrientes ou os fluxos, o que traz para dentro de casa — ou melhor, para nosso telhado — a oscilação, a diversidade e a transformação que são características essenciais da vida e do universo. Nesse sistema semi-fechado, celebro os ciclos e movimentos — a interação dinâmica entre plantas, animais e elementos naturais, os fluxos de água, energia e nutrientes. É uma tentativa de resgatar a essência cíclica da vida, integrando-a ao nosso cotidiano e questionando visões limitantes nas ciências e práticas contemporâneas, contribuindo para a construção de um novo paradigma. Bere – Importante esta reflexão, Fabiano, que mexe com muitas ideias rasas e com certos conceitos que fragmentam e minimizam a importância de se construir um novo paradigma, paradigma este que abrace, que integra, que acolhe a essência da vida em seu amplo contexto. Muito boas, também, as referências trazidas! E como foi o processo, desde as primeiras ideias, para você chegar à criação de um telhado verde? Fabiano – Grande parte da ciência econômica opera sob a pretensão de otimizar as condições para o bem-estar humano. No entanto, essa premissa é limitada, pois confunde bem-estar material ou econômico com o "verdadeiro" bem-estar humano, ainda tão complexo e misterioso. Com frequência, a maximização da produção e do consumo de bens materiais e serviços, que enriquece alguns, ocorre às custas da dignidade e satisfação dos demais seres, especialmente dos seres humanos. Meu mestrado, no México, foi sobre o Banco do Sul, uma proposta de banco de desenvolvimento regional voltado para a América do Sul, e parte de um esforço para reduzir a dependência da região aos fluxos de financiamento externo, particularmente dos mercados de capitais internacionais – que também foi tema de minha iniciação científica e monografia de conclusão de curso na graduação. A ideia do Banco do Sul é criar uma instituição internacional que possa financiar projetos regionais de infraestrutura, com o objetivo de estimular o desenvolvimento sul americano. No entanto, o projeto, quando examinado mais de perto, está diretamente associado a iniciativas que priorizam o desenvolvimento de infraestrutura na Amazônia e outras regiões ainda pouco exploradas, que envolvem projetos de grande escala na área de transporte, energia e recursos naturais, o que finalmente despertou minha preocupação sobre a preservação ambiental e os impactos no ecossistema regional. Foi nesse ponto que senti mais fortemente a aversão geral à ciência que descrevi logo acima e decidi deixar a academia, ao menos por enquanto. Comprei uma Kombi e a transformei em uma MotorHome com cozinha, cama confortável, energia solar, e espaço para bastante matéria prima para voltar do México ao Brasil por terra, fabricando e vendendo artesanato como meio para perambular e conhecer o maior número de pessoas e formas de vida no caminho. Vivi quase 4 anos assim.
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal Bere – Que virada incrível, Fabiano! Então a preocupação sobre a preservação ambiental e os impactos das ações e projetos, que emergiu deste seu trabalho de mestrado na UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) sobre o Banco do Sul, foi o que fez você “virar a chave” para adentrar em outro universo... Fabiano – Eu sou meio míope, Bere. Não consigo ver muito longe. Nessa viagem, não fazia ideia de que iria acabar em São Paulo construindo um projeto ambiental. Mas aprendi muita coisa relacionada a isso. Em especial, tive experiências em comunidades Maias, no México e Guatemala, que ainda preservam seus estilos tradicionais de convívio com a natureza e pude sentir na pele o bem-estar, em especial mental, que essa conexão era capaz de proporcionar a eles e a mim enquanto estive por lá. Quando finalmente cheguei a São Paulo, subindo no telhado da minha casa e olhando para a vastidão da cidade, a primeira coisa que pensei foi em termos de eficiência. Aquela imensa área sem uso parecia um desperdício de potencial, um espaço inexplorado. O economista em mim viu ali uma oportunidade para transformar algo aparentemente inútil (e ambientalmente contraditório) em um ativo. A racionalidade econômica se manifestou e comecei a refletir sobre como poderia aplicar minhas experiências recentes para criar algo que fosse ao mesmo tempo sustentável e útil. Foi então que surgiu a ideia do telhado verde. A ideia de que o telhado poderia ser um microecossistema funcional, capaz de beneficiar tanto o meio ambiente quanto a vida de seus moradores, me fascinava. Bere – Eu também tenho miopia, Fabiano, e é interessante você falar disso, pois eu costumo associar a falta de foco da educação, em geral, para a vida como um todo, e já disse várias vezes que a educação que temos, da forma como está, é uma educação “míope”. Fiquei imaginando você, olhando para os tetos da cidade de SP, de cima do telhado da sua casa... Então, quais as plantas que são mais apropriadas para a composição de telhados verdes? Como você as seleciona? Você prioriza plantas nativas da região? Fabiano – O calor num telhado é muito intenso. Após algumas horas, a energia acumulada nas coberturas é tanta que as telhas ultrapassam facilmente os 60°C. O calor não vem só de cima. Vem de todos os lados. Não tem como imaginar essa sensação, mas eu posso mostrar uma foto feita por uma câmera térmica que mostra o calor irradiado pelos telhados dos meus vizinhos. Nela, vermelho indica mais quente e verde escuro, mais frio:
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal Essa foto também é interessante por evidenciar que um painel fotovoltaico (1), um telhado metálico (2) e uma árvore (3), apesar de receberem a mesma irradiação, estão bem mais frios, pois, no primeiro e terceiro casos, parte da energia é absorvida, realizando trabalho como gerar eletricidade ou realizar fotossíntese. Mas no segundo, a superfície metálica reflete o calor imediatamente para a atmosfera e, mesmo sem esquentar essa casa, acaba afetando mais ainda o ambiente. A ideia do teto verde é aproveitar essa energia, junto com a água das chuvas, resíduos orgânicos da cozinha e o gás carbônico atmosférico para produzir bem-estar. No mínimo e com poucas modificações, podemos transformar telhados e lajes em espaços para reduzir eficientemente a temperatura no interior e exterior da edificação. Podemos, também, criar espaços novos para convivência ou mesmo hortas e fazendas urbanas completamente eficientes e automatizadas para a produção de alimentos muito mais próximos aos consumidores. Mas o peso, a exposição aos fortes ventos e necessidades de manutenção são fatores importantes lá em cima. Há basicamente dois tipos de Teto Verde: extensivos e intensivos e a vegetação depende do tipo.
Os tetos verdes extensivos são leves, versáteis e amplamente utilizados em diferentes coberturas. Eles transformam telhados e lajes comuns em superfícies verdes, onde plantas rasteiras se espalham como um tapete natural, trazendo vida a estruturas antes áridas. Esse tipo de teto verde utiliza plantas de baixa manutenção, como suculentas (Sedums e Sempre-vivas), que armazenam água nas folhas, caules e raízes e possuem cutícula espessa, perdendo pouca água por evaporação, requerendo, assim, pouco substrato (entre 5 e 15 cm), pouca água e cuidados mínimos. Graças ao uso de substratos e sistemas de armazenamento e drenagem eficientes, a necessidade de irrigação é eliminada, tornando-os ideais para projetos sustentáveis. E é comum, que os passarinhos e ventos semeiem as variedades nativas da região e elas mesmas vão competir para encontrar o melhor equilíbrio no espaço. Mas é importante notar que nem todas as plantas são compatíveis com todos os tetos verdes. Uma árvore semeada por um passarinho que tente crescer em um telhado despreparado irá comprometer a estrutura e no mínimo prejudicar a impermeabilização da cobertura com suas raízes poderosas. Além disso, contrariando uma prática bastante comum, gramíneas não são ideais para telhados verdes. O desejo por gramados é originário dos jardins medievais e renascentistas, remetendo à extravagância e à improdutividade, já que a manutenção de um gramado exige grandes esforços e recursos. A prática de criar espaços verdes dispendiosos meramente estéticos e que não geram alimento ou utilidade está intimamente ligada a uma noção de ostentação, em última instância, incompatível com a lógica de um telhado verde, que se baseia na eficiência ecológica e na funcionalidade. Por outro lado, os tetos verdes intensivos vão além da eficiência energética e do isolamento térmico, transformando telhados em autênticos jardins suspensos. Imagine um telhado convertido em uma área verde repleta de vegetação, como um parque que parece flutuar sobre a cidade. Esses ambientes permitem a criação de espaços deslumbrantes, com plantas variadas, arbustos e agora sim, até pequenas árvores, mas exigem uma estrutura reforçada para suportar seu peso e tolerância às intempéries. Com camadas de substrato de 20 a 50 cm ou mais, os tetos verdes intensivos podem sustentar microclimas diversos, incluindo tanques de peixes e piscinas biológicas que utilizam plantas aquáticas e microrganismos para filtrar e reusar a água de forma natural. Além de criar áreas para convivência e produção de alimentos, esses espaços proporcionam habitats para a biodiversidade, enriquecendo o ambiente urbano. Os tetos verdes que estou construindo no projeto HumaHorta serão aquapônicos, ou seja, combinam a vida aquática com o cultivo de plantas para criar um sistema produtivo e sustentável. O foco será a produção de alimentos variados, como batata-doce, inhame, feijões, amendoim, abóboras, quiabo, alfaces, rúcula, cebolinha, coentro, manjericão, berinjela, chuchu, pimentas, maracujá, tomates, ervas aromáticas, medicinais, entre outros. Também pretendo explorar o cultivo de PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais), como taioba, ora-pro-nóbis, feijão-guandu e bertalha, além de alimentos de alto valor econômico, como morangos, mirtilos, aspargos, açafrão e cogumelos, que são nutritivos e podem agregar valor ao sistema. Em vasos bem manejados, pretendo cultivar jabuticabeiras, amoreiras, acerolas, limoeiros e até mesmo mangueiras anãs. Esses espaços verdes trarão uma colheita fresca e saborosa diretamente para a cozinha. Bere – Quais são os principais benefícios dos telhados verdes? Fabiano – De acordo com a Secretaria de Energia do Governo do Estado de São Paulo, a capital paulista recebe em média 4,6KWh/m² x dia de energia solar. Um pequeno telhado de 130m² acolhe e irradia, aquecendo o restante da cidade com essa energia, o equivalente a 17.897,1kWh x mês. Pare, calcule e pense o que isso significa. Essa quantia é em torno de 100 a 170 vezes mais do que minha família e vizinhos consome de energia elétrica no mesmo período. O primeiro benefício de qualquer teto verde é a absorção de parte da energia solar, incidente sobre o telhado, reduzindo a temperatura da casa e vizinhança. A vegetação não reflete essa energia para a vizinhança, mas sim, a usa na fotossíntese, um processo onde as plantas convertem dióxido de carbono (CO2) e água (H2O) em glicose e oxigênio, utilizando a luz solar como fonte de energia. Esse processo também ajuda a reduzir a concentração de CO2 na atmosfera, mitigando o aquecimento global. Ou seja, tetos verdes restauram, ao menos em parte, a vegetação que havia no lugar onde construímos nossas casas para que cumpram seu papel de conduzir o planeta de volta a seus níveis de equilíbrio anteriores. Além disso, a glicose produzida é alimento para o ser humano, permitindo que cultivemos em casa o que normalmente compraríamos nos supermercados. A produção local oferece inúmeras vantagens em relação ao modelo tradicional de produção centralizada e distribuição de alimentos. Primeiramente, ela reduz a necessidade de transporte de produtos por grandes distâncias, o que diminui o consumo de combustíveis fósseis, além de reduzir o impacto da logística complexa, evitando os desperdícios frequentes nas cadeias de suprimento tradicionais, como perdas durante o transporte e armazenamento. Além disso, elevamos a dignidade humana com o rompimento das cadeias de dependência iniciadas com a divisão do trabalho. Outro ponto importante é que a produção local diminui a concentração de agroquímicos nos alimentos, já que o cultivo em menor escala pode ser feito de forma mais controlada e com menos necessidade de pesticidas e fertilizantes artificiais. Isso resulta em alimentos mais saudáveis e com menos risco de contaminação, promovendo a segurança alimentar. Além disso, a produção local em telhados verdes também contribui significativamente para a saúde mental e física. O simples ato de cultivar alimentos ou de dedicar atenção a plantas e outros seres vivos, como peixes ou pequenos animais, atende às nossas necessidades biofílicas, ou seja, satisfaz nossos impulsos naturais de nos conectarmos com outros elementos vivos e complexos do planeta. Esse contato direto com a natureza e o processo de cuidar das plantas e dos seres vivos ajuda a reduzir o estresse, promove sensação de bem-estar e até melhora a qualidade do sono. Além disso, o cultivo de um pequeno jardim urbano pode proporcionar uma sensação de realização e conexão com o ciclo da vida, elementos que são frequentemente negligenciados no ambiente urbano acelerado. Bere – E como é a manutenção de um telhado verde e quais são os cuidados necessários? Fabiano – Tudo depende do projeto e do investimento inicial. Para qualquer telhado verde, é essencial fazer uma análise da capacidade de carga da edificação, ou seja, verificar se a fundação, estrutura e o telhado ou laje suportam o peso das plantas, substrato e água para que não haja desgaste prematuro da edificação. Um projeto bem realizado, por outro lado, prolonga a vida útil dos elementos de impermeabilização da edificação, causando uma economia no longo prazo. Em um projeto mais simples, como em um telhado de telhas de barro bem inclinado e resistente em uma região úmida como aqui em São Paulo, é possível criar um telhado verde com a simples adição de uma tela ou rede que mantenha um substrato fibroso como fibra de coco em logo em seguida se somará à sujeira do ar e sementes trazidas pelos passarinhos. Com o tempo, uma vegetação compatível com o clima e a umidade locais crescerá naturalmente no substrato. Esse modelo exige que alguém suba no telhado periodicamente para remover as plantas resistentes com as maiores raízes que possam prejudicar a estrutura, como danificar a impermeabilização das telhas. Já um telhado verde mais elaborado, que inclui camadas de retenção de água, uma impermeabilização com aditivos antiraiz, substrato fibroso, camada drenante e até sistema de irrigação artificial para períodos de seca, requer manutenção mínima. O maior trabalho é feito no início, na escolha dos elementos construtivos e das plantas, preferencialmente suculentas, e no ajuste da estrutura, mas, após isso, a manutenção se resume principalmente ao controle de plantas invasoras, com ajustes ocasionais para garantir a saúde do ecossistema do telhado verde. Por outro lado, se estamos falando de um projeto como o HumaHorta, uma visitação quase diária é recomendada, não apenas para o cultivo, mas porque ele se torna um novo espaço de convivência, aprendizado e experimentação. Máquinas e sensores podem ser integrados para monitorar fatores como níveis de nutrientes, pH, ferro, oxigênio, umidade, condutividade e muito mais, enquanto sistemas de irrigação automatizados e notificações enviadas ao celular facilitam o gerenciamento do espaço. Apesar da tecnologia, ao menos por enquanto, as pessoas continuam indispensáveis para atividades como o plantio, poda, controle de pragas, colheita e acompanhamento geral. Bere – Quais são os principais desafios para a implantação de um telhado verde? Fabiano – Os desafios variam dependendo do tipo de projeto, mas alguns aspectos são universais. O primeiro é garantir que a estrutura da edificação suporte o peso adicional de plantas, substrato e água acumulada, especialmente em períodos de chuva. Isso exige uma análise técnica detalhada e, muitas vezes, o reforço estrutural do imóvel. Ou seja, quebrar e reforçar paredes, lajes e fundações. Outro desafio comum é a impermeabilização do telhado ou laje. É fundamental usar materiais adequados e técnicas confiáveis para evitar infiltrações, em especial, aquelas causadas pelas ações das raízes e fungos, o que pode causar danos graves à estrutura da edificação. Em projetos que visam à produção de alimentos, como o HumaHorta, esses desafios se ampliam, exigindo o controle cuidadoso de fatores como irrigação, nutrientes e possíveis pragas. Em outras palavras, o custo inicial é o principal desafio, especialmente para sistemas mais sofisticados que incluem automação, irrigação inteligente e sensores. Embora o investimento possa ser diluído ou compensado ao longo do tempo com a produção de alimentos, eficiência energética e benefícios ambientais, ele ainda é uma barreira significativa para muitas pessoas. Por fim, a manutenção contínua exige compromisso, já que é necessário monitorar e ajustar o sistema para garantir sua funcionalidade, além de educar e engajar os moradores sobre seu uso e cuidado. Bere – Como você se sente realizando um projeto tão importante e, de certa forma, inovador? Fabiano – Eu encontrei minha “causa maior”, Bere. Mas o que realmente me anima é a satisfação no ato de trabalhar com a construção e a criação. No HumaHorta, vejo a oportunidade de me engajar em problemas novos, questões ainda com poucas soluções claras, onde posso aplicar meu raciocínio e minhas habilidades para experimentar e inovar. É um espaço para estar em ação, enfrentando desafios que, ao mesmo tempo, são complexos e significativos. Isso me mantém motivado e conectado com o que considero essencial: a ideia de fazer algo concreto que tenha impacto real e duradouro. Bere – Seria interessante que esta ideia fosse trabalhada, de alguma forma, com crianças. Você teria alguma sugestão? Fabiano – Com certeza! Assim que concluir os protótipos, planejo criar propostas de construção de sistemas aquapônicos adaptados para escolas. Isso pode ser integrado ao currículo, permitindo que as crianças aprendam sobre biologia, sustentabilidade e alimentação saudável de forma prática e vivencial. Além disso, penso em organizar visitas ao HumaHorta em funcionamento, onde os pequenos poderão ver de perto como um ecossistema sustentável opera no dia a dia. Minha ideia é que essas experiências não sejam apenas educativas, mas que criem memórias positivas associadas ao contato com a natureza em ambientes urbanos. Percebe a constância dessa conexão entre urbano e natural no meu discurso? Pretendo colaborar para o desenvolvimento dessa nova geração de arquitetos, designers e cidadãos conscientes dos valores biofílicos. Afinal, criar essa conexão desde cedo ajuda a cultivar uma mentalidade de cuidado e inovação voltada para o futuro do planeta. Bere – Que legal, Fabiano! Poder proporcionar visitação das crianças ao HumaHorta seria uma experiência incrível! Aliás, quase ia me esquecendo de te perguntar sobre a origem do nome HumaHorta. Como foi a escolha deste nome? Fabiano – A origem do nome HumaHorta tem uma história curiosa. Um dia, eu estava lá no alto da ferragem da laje, trabalhando, quando uma motorista de van escolar parou na rua e perguntou o que eu estava construindo. Assim como ela, muita gente fica curiosa, pois não consegue entender o que é. Eu, lá de cima, gritei: “Uma horta!”. Ela sorriu, mas pareceu ouvir “uma orca” e ficou entusiasmada, achando que eu estava criando algo no formato de uma baleia. Quando esclareci que era uma horta, para obter comida, o entusiasmo dela virou perplexidade. Foi embora decepcionada. Isso me fez refletir: por que uma estrutura gigantesca de enfeite na forma de uma baleia sobre uma casa é mais fascinante do que um espaço para produzir alimentos? Daí decidi que o nome seria “UmaHorta”, simples assim. Mas, em uma visita à prefeitura, uma secretária escreveu com “H” — HumaHorta e eu adorei! O "Huma" traz um toque humano, reforçando a conexão com a terra e com a vida, ao mesmo tempo que mantém a simplicidade. Bere – Bem curiosa mesmo, a história do nome do projeto, Fabiano, e inusitada, pelo fato de ter surgido de um “engano” sonoro e outro gráfico... E para encerrar, qual é, para você, a importância da Educação Ambiental nos tempos atuais? Fabiano – Para responder, eu recorreria ao entusiasmo de Edward O. Wilson, que em A Criação aborda, de forma brilhante, como nossa conexão com a natureza é fundamental para enfrentarmos os desafios ambientais. Ele argumenta que essa ligação emocional, chamada de biofilia, é essencial, não apenas para a preservação da biodiversidade, mas para o equilíbrio e o bem-estar humano. Penso que a educação ambiental tem a capacidade de reintroduzir essa conexão emocional nas narrativas e histórias compartilhadas construtivas de nossa cultura. Ela vai além do ensino técnico sobre biologia, ecossistemas e mudanças climáticas; ela pode construir um discurso que incorpora esse vínculo afetivo / emocional com a natureza, de forma que pessoas — especialmente crianças — compreendam seu próprio papel no ciclo da vida e, somente assim, se sintam parte do planeta e da preservação da biodiversidade. Isso pode ser feito por meio de experiências práticas que geram sentimentos positivos, como cuidar de hortas, explorar florestas, observar pássaros ou visitar zoológicos. Essas vivências criam memórias duradouras ao estarem associadas a emoções positivas e podem motivar atitudes efetivamente conscientes. Defendo que essas experiências de reconexão sejam as melhores ferramentas para integrar valores de preservação ambiental e convivência sustentável, especialmente em um mundo urbano cada vez mais afastado do natural. Meu próprio sentimento positivo diante da natureza somente pôde ser formado depois do contato físico prolongado com a natureza em diferentes ambientes e interações com comunidades humanas. Por outro lado, estratégias sustentadas no que considero um discurso apocalíptico, que usam o medo da “perda da biodiversidade como consequência da ação humana”, também têm seu mérito, especialmente por serem catalisadas pelos valores religiosos que nos unem há tanto tempo e por prescindirem de experiências prévias com elementos naturais. No entanto, vejo que esse tipo de educação ambiental já está suficientemente assentado e penso que cientistas e educadores poderiam colocar mais energia na promoção de uma conexão positiva, fortalecendo a biofilia inata aos seres humanos. Não é o planeta que precisa de nossa educação, mas nós mesmos. Historicamente, quando civilizações do passado exauriram seus ambientes, foram suas próprias instituições que ruíram, levando consigo grande parte de suas populações. Em seguida, a natureza e o planeta acabaram se recompondo, de uma forma ou de outra. Vi isso de forma elucidativa no México e na Guatemala, ao conhecer relatos sobre como os sobreviventes abandonaram as cidades, deixando para trás apenas ruínas. Não acho que a nossa civilização seja capaz de evitar o mesmo fim que os Maias, os Egípcios, os Sumérios, os habitantes da Ilha de Páscoa, os Anasazi e os Vikings na Groenlândia, civilizações que enfrentaram colapsos, em grande parte, devido à exploração excessiva de seus recursos naturais. No entanto, acredito que uma nova educação ambiental tem a responsabilidade de construir mecanismos que institucionalizem limites naturais à modificação do meio ambiente. Gostaria de ver novos circuitos sociais que incorporem mecanismos oscilatórios, permitindo um “decrescimento sustentável” - não por meio de guerras ou autoaniquilações, mas através de adaptações contínuas e cuidadosas aos limites do planeta. Bere – Fabiano, querido, foi um imenso prazer conversar contigo! Quanto aprendizado me proporcionou a nossa entrevista, e que proporcionará as pessoas que prestigiam esta publicação! Muito obrigada por compartilhar tua experiência, teus estudos, teu projeto, que reforça o quanto precisamos ter uma visão mais integrada com o todo para que possamos melhorar a nossa relação com o que temos de mais importante, que é o meio ambiente. Deixa teus contatos para quem quiser maiores informações, por gentileza? Muito obrigada! Fabiano – O prazer foi todo meu, Bere! Agradeço pela oportunidade de repensar e compartilhar um pouco da minha visão e desse projeto. Espero que inspire reflexões e novas ações. Meu e-mail é flcrespilho@gmail.com e publico atualizações do HumaHorta no Instagram @humahorta. Ah. Tem um vídeo falando sobre as vantagens de tetos verdes no Youtube. Parabéns pela iniciativa de levar esses temas tão importantes ao público!
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
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