É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
Início Cadastre-se! Procurar Área de autores Contato Apresentação(4) Normas de Publicação(1) Podcast(1) Dicas e Curiosidades(7) Reflexão(6) Para Sensibilizar(1) Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(15) Entrevistas(1) Culinária(1) Arte e Ambiente(1) Divulgação de Eventos(4) O que fazer para melhorar o meio ambiente(3) Sugestões bibliográficas(3) Educação(1) Você sabia que...(4) Reportagem(3) Educação e temas emergentes(11) Ações e projetos inspiradores(28) O Eco das Vozes(1) Do Linear ao Complexo(1) Notícias(41) Dúvidas(4)   |  Números  
Reflexão
12/12/2024 (Nº 89) CUIDADOS E LIÇÕES DE VIDA NA NATUREZA
Link permanente: http://revistaea.org/artigo.php?idartigo=5044 
  

CUIDADOS E LIÇÕES DE VIDA NA NATUREZA

Descubra como o cajueiro de Rubem Braga e nossas memórias de infância nos ensinam a cuidar da natureza e valorizar a conexão com as árvores.

As árvores necessitam de atenção e cuidados

Ensaio de Rosângela Trajano

Quem ama um cajueiro nunca deixa de ser caju e ser caju é a melhor coisa, porque a gente vem depois da castanha que conheceu o mundo antes e veio nos dizer como ele é para termos a sorte de escolhermos ou não se queremos ser caju de verdade.

Inicio este texto com uma frase do poema “O cajueiro” do nosso querido escritor Rubem Braga que diz “O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.” Assim como o cajueiro de Braga eu também tive um, lindo e amigo no quintal da minha casa, na infância.

O meu cajueiro foi o meu melhor amigo nos tempos de criança. Eu cuidava dele e ele cuidava de mim. Éramos únicos no mundo. A gente não precisava de mais ninguém e mais nada para ser feliz. Nos completávamos. Fiz a minha festa de aniversário de dez anos de idade embaixo das suas sombras com suco de caju e bolo de ovos servido à meninada da rua que veio me parabenizar naquela tarde linda de inverno.

A gente aprende a amar uma coisa quando ela é única no mundo e nos trata bem, nos dar atenção e nos admira sem criticar o nosso jeito de ser. Eu era uma menina calada e buchuda. Cheia de coisas estranhas, mas o meu cajueiro nunca me criticou. Só uma vez quando comecei a cantar para ele, ouvi vindo das profundezas das suas raízes um pedido para eu parar porque a minha voz gasguita estava doendo nos seus ouvidos sensíveis.

A gente precisa aprender a dar atenção às pessoas e as coisas que gostamos porque não sabemos nunca quando elas partirão. Foi assim com o meu cajueiro a vida inteira. Eu sempre ouvi as suas mais bobinhas histórias e anedotas que nem traziam graça, mas eu sorria só para não o desencorajar a não mais contar nada para mim. Precisamos saber cuidar das coisas que amamos. Uma palavrinha dita ao acaso pode machucar um coração que nos admira. Um gesto brusco e todo o amor se acaba ali.

Foi sempre assim com o meu cajueiro, respeito e cuidado nunca deixou de existir e acredito que deve ser assim com todas as árvores porque elas nos fazem muito bem e nunca pedem nada de volta. São delas as sombras nos dias de quentes, os frutos que comemos para aliviar a nossa fome, a madeira da qual fazemos o papel e as folhas e raízes que têm fins medicinais.

Devemos cuidar das árvores com todo o nosso carinho sempre perguntando se estão precisando da gente, contando as nossas mais loucas histórias para elas, limpando-as, podando-as e nunca riscá-las com canivetes ou facas. Também não devemos xingar as árvores porque deixam caírem folhas secas no chão sujando a nossa e a calçada do vizinho. Se não cuidarmos delas vão adoecer e até são capazes de morrerem só para nos deixarem com uma sensação de culpa e irresponsabilidade.

Eu mesma já experimentei dessa culpa quando o meu lindo cajueiro foi tomado por cupins. Mas, eu era apenas uma menina de dez anos de idade e nem sabia que os cupins davam em árvores. Apesar da pouca idade já tinha vivido a experiência com os cupins dentro da minha casa, porque eles comeram o nosso telhado que quase veio abaixo numa noite de muita chuva. Os cupins destruíram tudo o que havia de madeira dentro da nossa casa. Isso foi uma coisa horrível para mim. Eles foram os meus únicos inimigos a minha vida inteira. Era preciso ter raiva dos cupins. Era necessário desgostar deles.

E mais raiva tive dos cupins, mais triste fiquei com eles quando soube que o meu cajueiro estava cheio deles. Em todos os seus galhos, no seu tronco e até no chão onde ele vivia. Era o tal cupim de solo, como falou o homenzinho que veio nos visitar certa vez e entendia bem de cupins. Nossa, gente! Eu quis sumir do mundo naquele dia em que descobri que o meu cajueiro estava muito doente e podia morrer a qualquer momento.

Então, fiquei pensando nas dezenas de árvores que sofrem com cupins. Eu fui uma irresponsável! Se tivesse prestado mais atenção ao meu cajueiro talvez tivesse descoberto cedo os cupins. Talvez tivesse dado tempo de salvá-lo. E fiquei me culpando a vida inteira por não ter cuidado dele como deveria. Foram quarenta anos de culpa. Só hoje que resolvi escrever esta história sei que não tive culpa. Eu era uma criança bobinha que só queria saber de brincar e ia à escola com raiva porque não podia levar o meu cajueiro comigo.

A gente tem o hábito de achar que as coisas e pessoas que amamos só nós sabemos cuidar delas, e por isso queremos levá-las conosco para onde formos como forma de cuidado e proteção. Estando conosco saberemos do que elas estão precisando ou se estão se sentindo bem. Eu era assim. Já que não podia levar o meu cajueiro para a escola levava um galhinho dele dentro da minha mochila.

Certo final de manhã quando voltava da escola contente porque tinha tirado um dez na prova de matemática e eu já tinha me contentado em ser ruim nas continhas fiquei toda feliz e louca para contar ao meu cajueiro do resultado da minha prova. Cheguei correndo em casa com a língua saindo pela boca e a respiração ofegante. Queria abraçar o meu cajueiro de tanta felicidade que eu estava.

Vou dar um conselho a vocês necessário que eu aprendi ainda criança: abracem e digam que amam as pessoas enquanto elas estão por aqui porque depois elas não mais poderão ouvir e morrerão sem nunca saberem se você as amava de verdade. O meu cajueiro nunca soube que eu o amava, porque achava que não era necessário dizer isso para ele. Eu era tão tímida na minha pequena idade.

Naquela manhã o meu cajueiro veio abaixo, caiu no chão. A mamãe disse que foi um barulho tremendo. Ele não resistiu aos cupins. Estava oco por dentro. Restou só um pedacinho de nada do seu tronco onde havia muitos cupins e era preciso queimar tudo para não empestar a casa novamente.

Eu fiquei triste por demais com a morte do meu cajueiro. Parecia que tinha sido alguém da minha família que morrera. Mas, ele era o meu melhor amigo e meu quarto irmão dos três que eu tinha, o único que não brigava comigo. Contei esta história para vocês porque já vi outras árvores morrerem devido os cupins. Elas não são bem cuidadas como deveriam, principalmente as árvores dos canteiros da minha cidade. Outro dia, numa praça aqui perto de casa uma árvore secular caiu no chão com a chuva forte, depois foram investigar direitinho e disseram que ela estava oca por dentro, os cupins comeram tudo.

Então, além dos cupins precisamos cuidar também das pragas que dão nas folhas das árvores como das suas raízes. Sempre que você vir uma minhoca, percevejo ou joaninha perto da sua árvore não os mate, pois eles são tipo “engenheiros do solo”, ou seja, aqueles que trabalham para manter o solo nutrido e forte. Eles protegem as raízes das suas árvores, são insetos do bem.

Segundo o site Ana Maria Primavesi, as minhocas são os maiores indicadores de um solo vivo. Estas são onívoras, ou seja, alimentam-se de fontes animais e vegetais (estes últimos em diferentes graus de decomposição), além de organismos decompositores acompanhantes, tais como fungos, bactérias, protozoários e nematoides. Ingerem seus próprios excrementos e fezes de outros organismos.

Podem ser classificadas em categorias ecológicas, dependendo de que camada habitam no solo: epigéicas vivem na superfície (0 a 10 cm), habitando geralmente a serrapilheira, endogénicas habitam os horizontes minerais do solo, onde constroem galerias semi permanentes e permanentes em profundidades de 10 a 40 cm e anécicas podem ultrapassar 40 cm de profundidade.

As minhocas melhoram a estrutura e qualidade do solo através da movimentação de partículas dentro e entre os horizontes, formando agregados que permitem a entrada da água, do ar e a penetração das raízes. As galerias que abrem com seus corpinhos também ajudam a abrigar outros bichinhos. Participam da decomposição de matéria orgânica, da mineralização de nutrientes e da disponibilização destes elementos para as plantas.

As árvores são muito resistentes e revolucionárias mesmo, iguais às mulheres feministas quando se revoltam contra o patriarcado assim são as árvores nas suas lutas pela sobrevivência, pois perto da minha casa tem duas árvores que recebem água de esgotos a céu aberto faz mais de seis meses. Já ligamos para a empresa que trata esgotos na nossa cidade, relatamos o problema e nada. A água suja dos esgotos corre direto para as duas árvores e ficam ao seu redor. Não tem como evitar porque é uma ladeira.

Quanto mais cuidado mantermos para com as nossas árvores ainda assim estaremos fazendo pouco. Elas precisam de carinho e atenção. Nas noites de frio e inverno em que as suas folhas secam rapidamente ninguém as protege. Só queremos ficar embaixo dos nossos cobertores e não nos damos conta de que a nossa árvore do quintal ou da calçada também está sofrendo com a friagem. Neste caso não podemos fazer quase nada a não ser ficamos conversando com a nossa árvore das janelas do quarto de dormir ou da sala enquanto a chuva cai.

O meu sonho era nunca mais ver uma árvore tristonha ou doente, por isso creio que a prevenção também é necessária para a saúde delas. Além dos cupins as árvores se não tiverem atenção das pessoas que passam por elas e fazem de contas que não significam nada podem se sentir abandonadas e sozinhas, logo entrarão em depressão como qualquer ser humano. Isso é sério.

Talvez vocês já tenham visto muitas árvores em depressão pelos canteiros das cidades ou parques florestais. Geralmente elas deixam as suas folhas caírem sem ser no outono, elas murcham e param de balançar os seus galhos. Ficam ali, quietas, silenciosas. Uma árvore em depressão também precisa de terapia. Alguém deve ouvir as reclamações, anseios e medos da árvore. Uma das maiores causas das doenças nas árvores é o medo da morte. Diferente de algumas pessoas elas têm muito medo da morte, mesmo sabendo que podem reencarnar em outro planeta.

As árvores têm medo da morte quando vêm um homem com um machado ou uma serra elétrica se aproximar delas. Esse medo pode fazer com que os seus frutos apodreçam mais rapidamente, suas raízes enfraqueçam e elas tombem no chão de tanto pânico. As suas emoções e sentimentos são parecidos com os dos seres humanos, por isso todas precisam que algum bom profissional na arte da escuta esteja ali um ou duas vezes na semana para ouvir tudo o que elas desejarem falar. Muitas vezes só desejamos desabafar mesmo, falar, falar e falar. Noutras só precisamos de um abraço. São esses cuidados que devemos manter com as nossas árvores.

Os griots e indígenas sabem cuidar bem das suas árvores porque eles acreditam que dentro delas moram deuses. Assim como eles deveríamos aprender a cuidar bem das nossas. Nos contos de fadas os duendes moram dentro dos troncos das árvores e se espalham pelas florestas quando aparece uma criança. Alguns bichos moram dentro dos troncos das árvores. A casa deles deve ser cuidada por nós que temos a razão para diferenciarmos o que é bom ou não, mantê-la limpa e cheirosa.

Do mesmo jeito que você limpa a sua casa todos os dias assim deve fazer com a sua árvore. Limpá-la cuidadosamente. Agora me veio a lembrança da casa de uma amiga onde as galinhas e galos dormem em cima do cajueiro no quintal. São tantas as galinhas nos galhos do cajueiro que mais parecem frutas do que animais. Também tem perto da minha casa um gato que só dorme em árvores. Os animais têm bom gosto.

E para finalizar ficamos com uma frase da nossa poeta maior Cecília Meireles que nos diz “Nunca tive os olhos tão claros e o sorriso em tanta loucura. Sinto-me toda igual às árvores: solitária, perfeita e pura.” Que nenhuma árvore se sinta solitária enquanto houver pessoas sensíveis e amantes da natureza. Não deixemos de cuidar das árvores e de dar-lhes atenção para que elas continuem perfeitas e puras como o olhar de uma criança. Eu sou a tua árvore!

Link de referência do texto: https://anamariaprimavesi.com.br/

Rosângela Trajano, Articulista do EcoDebate, é poetisa, escritora, ilustradora, revisora, diagramadora, programadora de computadores e fotógrafa. Licenciada e bacharel em filosofia pela UFRN e mestra em literatura comparada também pela UFRN. É pesquisadora do CIMEEP – Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos. Com mais de 50 (cinquenta) livros publicados para crianças, ministra aulas de Filosofia para crianças na varanda da sua casa, de forma voluntária. Além disso, mora pertinho de um mangue aonde vai todas as manhãs receber inspiração para poetizar.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394



Ilustrações: Silvana Santos