Rico é aquele que sabe ter o suficiente. Lao Tze
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 90 · Março-Maio/2025
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Reportagem
14/03/2025 (Nº 90) HORTAS URBANAS ESTIMULAM CONEXÃO COM NATUREZA E VIDA SAUDÁVEL
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HORTAS URBANAS ESTIMULAM CONEXÃO COM NATUREZA E VIDA SAUDÁVEL

Plantios comunitários nas cidades também fortalecem vínculos sociais, diminuem o impacto ambiental e contribuem para a redução da insegurança alimentar

PORAlessandro Fernandes *

Hortas urbanas estimulam conexão com natureza e vida saudável

Lúcia Maria dos Santos é uma das participantes do projeto Horta Social, no Conjunto Ceará, bairro periférico de Fortaleza (Foto: Alessandro Fernandes/Vida Simples)



Dos territórios de cultivo à mesa, o alimento percorre diferentes caminhos até chegar ao consumidor. Nesse processo, quanto maior o número de intermediadores, mais encarecido se torna o produto. Uma alternativa a essa cadeia de valor, muitas vezes injusta com o produtor rural, são as hortas urbanas comunitárias, que diminuem a distância entre produção e consumo e estimulam um estilo de vida mais saudável.

O plantio comunitário ganha potencial educativo ao ser feito nas escolas. Também há oportunidades de cultivo de hortas urbanas nas próprias residências, em ambientes corporativos, hospitalares – com as hortas terapêuticas –, ou ainda em terrenos baldios.Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que, em 2022, mais de 800 milhões de pessoas cultivavam alimentos nas cidades, o que representa entre 15% e 20% da produção global.

Mais saudáveis e com menor impacto ambiental, já que reduzem a emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, as hortaliças produzidas em hortas comunitárias também aproximam as pessoas da natureza.

Hortas urbanas fortalecem vínculos comunitários

A prática de cultivo do próprio alimento é uma atividade humana há pelo menos 12 mil anos. Por um lado, a seleção humana reduziu a variedade de alimentos. Por outro, o manejo de espécies e plantas, além do desenvolvimento da agricultura, fortaleceram o cultivo.

Apesar de ser uma prática antiga, os debates sobre a agricultura urbana só tomaram força em meados da década de 1980. Em 1999, a agricultura urbana e periurbana foi oficialmente reconhecida como uma estratégia para reduzir a insegurança alimentar nas cidades.

O reconhecimento foi feito na 15ª sessão do Comitê de Agricultura em Roma, e seguido pela Cúpula Mundial da Alimentação, em 2002, e, em 2008, pela Força Tarefa de Alto Nível da ONU para a Crise Global de Alimentos.

As hortas urbanas exercem um papel fundamental em territórios onde há vulnerabilidade social e econômica. É o que dizem dizem as autoras Mariana Garcia e Jéssica Franco no capítulo “Os ambientes alimentares e as hortas urbanas”, no livro Hortas Comunitárias Urbanas: promovendo a saúde e a segurança alimentar e nutricional nas cidades (Instituto da Saúde, 2024). De acordo com elas,

Ambientes alimentares de regiões socioeconomicamente desfavorecidas são menos saudáveis em relação à disponibilidade de frutas e hortaliças, qualidade dos alimentos, tipos de estabelecimentos, preços dos alimentos, falta de estabelecimentos com infraestrutura para estocar certos tipos de alimentos, entre outros”.

O estilo de vida dos vizinhos das hortas urbanas

Ainda segundo as autoras, as hortas urbanas coletivas têm potencial em serem espaços pedagógicos de aprendizagem sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), sustentabilidade ambiental, resiliência comunitária, justiça social e identidade cultural.

Oferecem uma alternativa ideológica ao senso comum dominante dos sistemas alimentares industriais, propriedade privada e desenvolvimento imobiliário urbano.”

Um estudo publicado em 2018, que investigou resultados relacionados à alimentação e nutrição em decorrência da participação em hortas urbanas, concluiu que há saldos positivos.

Entre eles, aumentos do consumo de frutas e hortaliças, melhor acesso a alimentos saudáveis, partilha da colheita com familiares e amigos, além de valorização da produção orgânica, da culinária e da alimentação saudável.

Os autores concluem que a participação em hortas urbanas revelou um impacto positivo em importantes práticas alimentares saudáveis, acesso, crenças, conhecimentos e atitudes”, escrevem as autoras.

Hortas urbanas no Brasil reduzem a insegurança alimentar

Sendo assim, além de diminuir a distância entre o campo e a cidade, as hortas urbanas são espaços de aprendizagem e experimentação. “A implementação do projeto de horta comunitária promove diversas atividades resilientes e reflexões que geram benefícios socioambientais amplos e permanentes”, explica Daniel Garcia, engenheiro agrônomo e doutor em horticultura pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Entre os benefícios, estão redução da insegurança alimentar e nutricional, inclusão social, regeneração ambiental, redução dos gastos com energia e alimentos, fortalecimento comunitário e valorização cultural.

De acordo com a plataforma Sampa+Rural, há 188 hortas urbanas mapeadas na cidade de São Paulo. O município, que fica em uma área de 1.521 quilômetros quadrados (km²), tem cerca de um terço do território em áreas rurais, especialmente na Zona Sul da cidade.

No Sul do país, em Curitiba, no Paraná, cerca de 170 hortas comunitárias beneficiam a população. O projeto, coordenado pela Secretaria Municipal da Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), apoia o cultivo em vazios urbanos da cidade, realizado por pessoas organizadas por meio de associações de moradores ou entidades sociais.

Engajamento e melhoria na qualidade de vida

Uma iniciativa semelhante acontece em Fortaleza, no Ceará, com o projeto Horta Social. Com início em 2016, tem como objetivo combater a insegurança alimentar da população mais vulnerável, promover a agricultura urbana e fortalecer os vínculos comunitários.

Os alimentos são distribuídos para as pessoas de baixa renda e idosos cadastrados no projeto municipal. A colheita é distribuída por ordem de chegada. O público atendido também participa do plantio e manejo da horta, além de campanhas de incentivo à alimentação saudável e de prevenção de doenças.

A cidade conta hoje com seis hortas sociais e uma produção de seis toneladas por mês de alimentos orgânicos como alface, couve, tomate cereja e coentro.

Até outubro deste ano, o projeto realizou 27 colheitas, com mais de 24 toneladas de alimentos distribuídos. A Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) pretende expandir as atividades da Horta Social no município nos próximos anos.

Além da entrega dos alimentos, o projeto incentiva a agricultura urbana e periurbana por meio dessas atividades. A própria comunidade se inscreve, participa do plantio e acompanha todo o processo, desde o início, passando pelo manejo, até a colheita, tornando-se beneficiária direta”, diz Katiane Bispo, nutricionista e coordenadora de segurança alimentar e nutricional da SDHS.

Além das atividades que envolvem a colheita e distribuição, a população também participa de formações que envolvem aspectos nutricionais e orientações sobre como aproveitar esses alimentos de forma integral.

Educação, autonomia e engajamento social

Uma foto de seis pessoas sorridentes em uma horta comunitária. Todas estão vestindo camisetas verdes com o logo de um projeto agrícola local, em Fortaleza, conforme as identificações. O grupo é composto por quatro mulheres e dois homens, de idades variadas. Uma das mulheres usa chapéu e óculos escuros, e segura folhas de couve. Outra senhora segura um molho grande de couve e uma garrafa de água roxa. Todos parecem felizes e descontraídos, abraçados e posando juntos. Ao fundo, há estufas cobertas com telas para cultivo de plantas, em um espaço organizado e verde.

Laryssa Ellen (à esquerda), e participantes do projeto Horta Social, em Fortaleza (Foto: Alessandro Fernandes/Vida Simples)

Em parceria com o Instituto de Arte e Cidadania do Ceará (IAC), o Horta Social engloba parte das atividades do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, voltadas a idosos.

Entre as ações, estão práticas educativas sobre envelhecimento e bem-estar, participação social, autonomia e protagonismo da pessoa idosa. Também são realizadas trocas de conhecimento sobre horta social e transformação socioambiental, sabedoria popular e ervas medicinais, valorizando memórias, habilidades e potencialidades.

O projeto também envolve as pessoas idosas em programas que vão além das formações na área nutricional e agroecológica. “Algumas ainda não tiveram a oportunidade de conhecer a praia, por exemplo, então queremos levá-las até lá. Muitas também nunca tinham frequentado algum cinema”, explica Laryssa Ellen, educadora social na Horta Social do bairro Conjunto Ceará, na periferia de Fortaleza.

Nosso objetivo é sempre proporcionar atividades que fujam do cotidiano delas, que mostrem algo novo e expandam seus horizontes”, completa.

Como as hortas urbanas impactam as pessoas?

Para Lúcia Maria dos Santos, 63 (na foto em destaque desta matéria), o projeto a interessou a partir do momento em que viu amigas participarem da iniciativa. “Eu cheguei aqui e comecei a conversar com as ‘meninas’, porque estava me sentindo deprimida. Com a ajuda delas, consegui melhorar”, conta a aposentada.

Lúcia, que é moradora do território, explica que viu a rotina mudar depois que passou a frequentar as atividades do projeto. “Minha filha ficou muito alegre. Eu não gostava de legumes, não era muito fã. Aí ela disse: “ô mãe, que bom! A senhora tem que comer isso mesmo, por causa da sua idade.”

Junto com as atividades educativas, há momentos lúdicos e de interação social. “Fui mostrar para algumas delas uma brincadeira comum, mas percebi que muitas nunca tinham tido contato com o jogo da memória. Tive que explicar como funcionava e como jogar, porque, para nós, é algo comum”, diz Laryssa.

Quando crianças, brincávamos com isso, mas elas não. Muitas nem brincavam na infância, pois tiveram que começar a trabalhar muito cedo.”

Hortas urbanas promovem melhor qualidade de vida

Com o objetivo de tornar as cidades mais sustentáveis, diferentes iniciativas governamentais, privadas ou comunitárias somam esforços para unir o concreto com o verde. As hortas urbanas são parte dessa mudança, presentes no Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, instituído em 2018.

Os desafios enfrentados nos espaços urbanos exigem que busquemos medidas inteligentes para mitigá-los ou superá-los, promovendo assim o desenvolvimento sustentável que desejamos alcançar. É neste contexto que eu identifico a horta comunitária como grande aliada no combate aos inúmeros desafios vivenciados em centros urbanos”, diz Daniel Garcia, que gere a Aromatizando Jardins, empresa direcionada para a elaboração e mentoria de projetos de hortas urbanas.

Segundo o especialista, apesar de diferentes exemplos no país, as iniciativas públicas no Brasil são ainda incipientes diante das possibilidades. “Não é lamentável que o Brasil, sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, ainda enfrente insegurança alimentar e nutricional?”, questiona.

Entre outras propostas, Daniel acredita que o Estado precisa incluir as hortas comunitárias no planejamento urbano da cidade. Assim como aprovar uma legislação que possa regulamentar o funcionamento desses lugares, garantir a manutenção e incentivar a expansão.

O engenheiro agrônomo defende a integração de pessoas em situação de vulnerabilidade social em projetos de educação ambiental. Criar fundos municipais para financiar projetos de hortas comunitárias, oferecer cursos de capacitação, apoiar pesquisas e projetos sobre o tema também são soluções. E, por fim, integrar a iniciativa com a merenda escolar.

O primeiro passo é o Estado incluir o projeto de horta comunitária em suas diretrizes como uma estratégia eficaz para mitigar os diversos problemas enfrentados diariamente nas áreas urbanas. Em seguida, é essencial criar programas e legislações que promovam a implementação assertiva dessa iniciativa”, argumenta.

Como fazer uma horta urbana no meu bairro?

De acordo com o pesquisador, é fundamental comunicar à prefeitura, capacitar os interessados sobre agricultura urbana e engajar a população na localidade.

Sem os documentos legais para iniciar o projeto, há grande risco de o terreno se tornar irregular”, afirma Daniel, que visitou e aprimorou conceitos sobre hortas urbanas em estudos realizados no Brasil, assim como nos Estados Unidos (New Jersey University) e na China (Shanghai Jiao Tong University).

Além disso, ONGs, universidades, prefeituras e empresas podem acelerar a implementação e desenvolvimento do projeto, mas não são requisitos. O ideal é que as pessoas também estejam instruídas sobre técnicas de agricultura e manejo das espécies.

O projeto pode ser implementado de maneira autossustentável, utilizando técnicas ecológicas, materiais recicláveis e, sobretudo, o comprometimento das pessoas”, sugere.

Daniel Garcia recomenda também que as hortas urbanas sejam conectadas com elementos complementares, como composteiras, cisternas, minhocários e geradores de energia renovável.

Dessa forma, as hortas urbanas se tornam mais versáteis e aumentam sua capacidade de conscientização de forma permanente sobre os danos que o distanciamento da natureza pode causar na sociedade urbana”.

Para ele, o maior desafio enfrentado hoje é a burocracia para o uso de terrenos baldios subutilizados. Apesar de influenciar significativamente na qualidade de vida dos moradores e impactar o bem-estar em ambientes de trabalho ou escolares, as hortas comunitárias precisam de mobilização e pressão social para que recebam financiamento adequado.

Embora as hortas comunitárias apresentem soluções eficazes para superar vários problemas socioambientais e econômicos, eu entendo que a sociedade não está completamente conscientizada sobre a magnitude do projeto. Além disso, o Estado ainda não reconheceu essa ferramenta socioambiental como prioritária”, conclui.

*ALESSANDRO FERNANDES é repórter freelancer da revista Vida Simples. Natural do Rio Grande do Norte, acredita no Veganismo Popular como uma das ferramentas de transformação da sociedade e no potencial da escrita e do Jornalismo em tocar as pessoas.

Fonte: https://vidasimples.co/sustentabilidade/hortas-urbanas-estimulam-conexao-com-a-natureza-e-promovem-estilo-de-vida-saudavel/

Ilustrações: Silvana Santos