Representações do meio ambiente através do desenho
infantil:
refletindo sobre os procedimentos interpretativos
Davi Gutierrez Antonio
Solange T. de Lima Guimarães
Nosso
objetivo nesta breve reflexão é tecer algumas considerações sobre o estudo da
percepção, interpretação e representação do meio ambiente de modo a compreender
diferentes realidades ambientais e deste modo intervir nas construções das
mesmas mediante uma ação consciente através da Educação Ambiental. Partimos do
pressuposto que os grupos sociais, principalmente os envolvidos de alguma forma
com o meio ambiente, tem a contribuir com seus conhecimentos à compreensão das
distintas realidades ambientais experienciadas, a partir do savoir-faire
desses grupos e sua experiências com e a partir do lugar.
A falta de aproximação, de uma atitude de ouvir o
outro, de auscultarmos as comunidades, de considerarmos, enfim, as múltiplas
relações de alteridade envolvidas, parece explicar em grande parte muitos dos
equívocos e dissonâncias das ações que envolvem a conservação/preservação do
meio ambiente, gerando conflitos motivados por iniciativas paternalistas na
gestão dos recursos ambientais que, por mais bem intencionadas que sejam, ao
procurarem agir “em nome da comunidade”, não permitem a ela o direito à
participação efetiva nas iniciativas.
Entendemos
que a realidade ambiental e, conseqüentemente, o modo de vida são apreendidos
no cotidiano, através da experiência (em seus múltiplos sentidos), sendo que
sua concretização se dá na representação, ponto para o qual podemos inferir
análises simultaneamente objetivas e subjetivas. Privilegiamos para esta
reflexão, a representação do meio ambiente em forma de desenho,
restringindo-nos somente ao desenho infantil. É neste sentido que, dentro das
limitações desta breve reflexão, procuraremos levantar alguns pontos com o
propósito de contribuir para a discussão sobre o tema.
Consideramos
o desenho infantil mais do que uma simples imagem, pois vai além de uma análise
objetiva, visto que é a materialização do inconsciente na forma de imagens,
obras de arte de crianças, que com inocente simplicidade registram na folha de
papel elementos de suas vidas, do cotidiano, dando ao desenho uma vida própria.
Nas palavras de Bachelard (1978, p. 185):
A imagem, em sua simplicidade, não precisa de um
‘saber’. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua, Em sua expressão, é uma
linguagem jovem. O poeta na novidade de suas imagens é sempre origem de
linguagem.
Em razão de
selecionar o desenho infantil como instrumento de análise das representações
ambientais em nosso estudo, temos obrigatoriamente que caracterizar o perfil
dos artistas. Assim, as crianças que contribuíram para o estudo, na modalidade
de participantes da pesquisa, da
qual se originou este trabalho, habitam a Unidade de Conservação Parque
Estadual “Ilha do Cardoso”, Cananéia (SP), pertencendo a um grupo social
determinado, o das comunidades tradicionais insulares, e pelo seu histórico e
origem, são denominadas caiçaras. Deste modo,
o conhecimento que se encontra expresso nos desenhos é bem caracterizado como
saber tradicional.
Desenhar
para a criança é como uma brincadeira, um jogo, que é ligado a sua realidade
ambiental numa associação de elementos tangíveis ou não e presentes em suas
vivências, representando algo das dimensões concretas ou imaginárias do meio
ambiente. Desta forma, o desenho é realista, mas não só representa o real
imediato do pensamento racional, mas representa também as influências culturais
e o pensamento simbólico, partes integrantes de suas tradições, principalmente
no caso de sociedades tradicionais. A respeito dos conteúdos subjetivos e
objetivos abarcados pelo desenho, Merleau-Ponty (1990, p.220) elucida-nos a
diferença entre o desenho da criança e do adulto:
Seu desenho é ao mesmo tempo mais subjetivo e mais
objetivo que o do adulto. Mais subjetivo porque ele libera-se da aparência; e
mais objetivo porque tenta reproduzir a coisa como ela é realmente, enquanto
que o adulto só a representa um único ponto de vista, o seu.
Essa forma
de representação é uma expressão do mundo vivido e não uma simples imitação,
ela se expressa ao ser registrado na folha de papel todo o seu imaginário, suas
representações oriundas da percepção do seu entorno. A potencialidade do
desenho infantil vai ainda mais longe, como nos mostra Merleau-Ponty (1990, p.
223), ao afirmar que “o desenho infantil prolonga a percepção infantil”.
Tratamos,
deste modo, o desenho infantil, como “representação simbólica”, pois o símbolo
comporta uma relação de identidade com o que simboliza, suscitando a sua
presença concreta (MORIN, 1999, p. 173), tecendo uma teia de significados do
pensamento objetivo e subjetivo. A importância do desenho como símbolo,
realiza-se por ser materialização de uma cultura, e Durand (1988, p. 110),
instiga-nos a essa afirmação, quando se refere ao símbolo da seguinte forma:
(...) A simbólica se confunde com o desenvolvimento de
toda a cultura humana. Na irremediável ruptura entre a fugacidade da imagem e a
perenidade do sentido que o símbolo constituí, precipita-se a totalidade da
cultura humana, como uma mediação perpétua entre a Esperança dos homens e sua
condição cultural.
No livro “Comprensión
del Arte Infantil”, Stern (1962, p.14), refere-se à criança como
aquele que é dotado de capacidade de expressão total - ela sente,
experimenta e se expressa: “De una aventura vivida en común, el niño retiene
detalles que el adulto, captando la relación de causa a afecto, dejará
escapar.” . E na Psicologia, Di Leo (1985), mostra-nos a importância e o
valor da expressão na forma de desenho com relação a outras formas de
expressão:
Ao escrever, como ao falar, se é limitado pela
inabilidade de apresentar o todo simultaneamente. Apenas as artes visuais podem
oferecer o todo de uma só vez.” (DI
LEO, op.cit, p. 43). “Melhor que a fala os desenhos podem expressar
sutilezas do intelecto e afetividade, que estão além do poder ou liberdade de
expressão verbal. (DI LEO, op.cit, p. 13)
A
interpretação do Desenho Infantil não pode de forma alguma fugir da realidade e
do contexto da criança, o desenho como símbolo depende da cultura em que o
artista (criança) está inserido como também de sua própria história pessoal:
Assim como o conteúdo manifesto em um sonho torna-se
significativo, quando relacionado com as associações pessoais de quem sonha,
assim também os símbolos, conscientes ou inconscientemente desenhados,
encontram significado apenas quando vistos no contexto da história pessoal do
desenhista. (DI LEO, 1985, p. 18)
A seguir,
na Tabela 1, demonstramos a relação do desenho com o estágio de desenvolvimento
cognitivo da criança, partindo dos pressupostos da teoria piagetiana. Separar
em classes de acordo com a maturidade intelectual é fundamental para uma
análise que leve em conta a compreensão que a criança tem de sua realidade
ambiental, e, conseqüentemente, refletida em suas representações e percepções
espaciais. No exemplo, encontramos além da maturidade cognitiva, a própria
questão do desenho levada em conta, sendo que a criança que se encontra na fase
do Realismo Intelectual tem mais opções para desenhar suas representações, como
o Expressionismo e o Subjetivismo. Já as crianças na fase do Realismo Visual
têm uma grande capacidade de representar suas percepções oriundas do sentido da
visão, sendo que suas representações são repletas de símbolos inconscientes
pertencentes ao universo de suas tradições. A maturidade vai trazendo à criança
preconceitos adultos que vão diminuindo sua capacidade de representar o real a
partir do seu imaginário, que é constituído por suas percepções e
interpretações.
Tabela 1 – Desenvolvimento do
desenho em relação aos estágios do desenvolvimento cognitivo da criança.
Idade aproximada (anos)
|
Desenho
|
Cognição
|
4
– 7
|
Realismo
Intelectual
Desenha
um modelo interno e não como é visto realmente. Desenha o que sabe que
deveria estar ali. Mostra pessoas através de paredes e cascos de barcos.
Transparência, Expressionismo. Subjetivismo.
|
Estágio pré-operacional
(fase intuitiva)
Egocentrismo.
Visão subjetiva do mundo. Vívida imaginação. Fantasia. Curiosidade.
Criatividade. Focalizando em apenas uma característica do tempo. Funciona
intuitivamente e não logicamente.
|
7
- 12
|
Realismo Visual
A
subjetividade diminui. Desenha o que é realmente visível. Não há mais a
técnica do raio-X (transparência). As figuras humanas são mais realistas,
proporcionais. As cores são mais convencionais. Distingue o direito do
esquerdo na figura desenhada.
|
Estágio das operações concretas
Pensa
logicamente sobre as coisas. Não mais dominado por percepções imediatas.
Conceito de reversibilidade: coisas que eram o mesmo permanecem o mesmo, até
quando sua aparência possa ter mudado.
|
Fonte: Di Leo, 1985, p. 42
(modificado por Davi Gutierrez Antonio, maio de 2005).
Para a análise do desenho infantil com relação ao
espaço e suas múltiplas variáveis, a formulação de Categorias de Análise se
torna interessante como referência na descrição e interpretação do meio
ambiente, sendo um caminho a seguir. Elas têm obrigatoriamente que estar ligada
a realidade em estudo, através do arcabouço teórico, dos procedimentos
metodológicos e estudos aplicados. É através delas que o pesquisador pode
alcançar seus objetivos. Torna-se importante salientar que as Categorias de
Análise devem permitir flexibilidade, tanto nos seus pressupostos como nos seus
objetivos iniciais, pois ela própria torna-se um instrumento de aproximação da
realidade ambiental estudada através dos desenhos, revelando assim, novos
caminhos a percorrer, novas possibilidades de interpretação. Utilizamos como
exemplo para este artigo, as categorias de análise listadas na tabela (2), da
seguinte forma:
Tabela 2 – Categorias de
Análise
Localidade
X
Categorias de Análise
|
Mar de Fora
Oceano Atlântico
|
Rio de Dentro
Canal do Ararapira
|
Encontro das Águas
Representação conjunta do Oceano e do Canal
|
Outras Locais de Representação
|
Lugar
|
A1
|
A2
|
A3
|
A4
|
Paisagem
|
B1
|
B2
|
B3
|
B4
|
Insularidade
|
C1
|
C2
|
C3
|
C4
|
Maritimidade
|
D1
|
D2
|
D3
|
D4
|
Fonte: Davi Gutierrez Antonio, maio
de 2005.
Não cabe neste artigo a discussão sobre outros
aspectos dos itens das Categorias de Análise aqui indicadas, por motivo da
abrangência da reflexão, sendo especificidades da realidade trabalhada,
distinguindo-se de outras realidades concretas. Cabe salientar que foram propostas
a partir da realidade ilhéu, em que focamos o estudo original.
Para avaliar o uso das categorias de análise e como
subsídio prático a esta reflexão, realizamos um estudo de caso, a partir de
exemplos de Desenho Infantil, de uma mesma criança da comunidade caiçara
participante da pesquisa maior, de onde este trabalho se originou. Iniciaremos
com o próprio Desenho:
Desenho I: Barcos Pescando no Oceano
Autor: Altair, 10
anos – (08/2003).
Tomando como referências as indicações apresentadas
na Tabela 2, a presença do Mar (D1) é visivelmente forte, representada através
da ilhota oceânica à direita do desenho, pelas ondulações demonstradas pelos
traços mais fortes, e pelos próprios barcos de pesca (A1). Estes barcos têm
grande importância, pois é o lugar que as crianças almejam estar, seguindo as
tradições insulares (B1). A fauna demonstrada no desenho (peixes e aves),
demonstra seu conhecimento a respeito da biodiversidade encontrada no oceano, e
conseqüentemente a criança apropria-se do meio ambiente marinho através dos
barcos e dos pescadores (seu sonho futuro).
Desenho II – Vida no Mar
Autor: Altair, 11 anos (01/2005)
Este desenho referente à representação da vida no
ambiente marinho traz a tona o conhecimento empírico acumulado mostrando-nos
mais uma vez com destaque a diversidade da vida no mar, sendo que a criança não
traz em seu referencial nenhum tipo de conhecimento ou informação de níveis
acadêmicos, científicos. O oceano mais uma vez é representado (B1), sendo que o
elemento caracterizador da paisagem aqui é a água, e mesmo não aparecendo no
desenho, está representada na medida em que é necessária à vida da fauna
expressa. Podemos considerar que este conhecimento é ocasionado também pela
insularidade (isolamento físico), que leva as crianças desta ilha a explorar o
seu espaço vivido, no caso, as águas (C1).
Desenho III – Canal do Ararapira - PEIC
Autor: Altair, 10 anos (08/2003).
Esta representação do canal do Ararapira (C2),
situado na faixa oeste da ilha, mostra a importância deste para a vida da
comunidade, ao abarcar o sentido da interação com o resto do mundo, além de
ligar a comunidade vizinha (casas à esquerda), é também a ligação com o continente
(aproximadamente quatro horas de barco). Na comunidade Pontal do Leste as
trilhas convergem para um mesmo ponto, o porto (A4). Ressalta-se assim a
importância do rio enquanto lugar (A2), e como paisagem (B2), estes
intensamente apropriados pelas crianças em suas representações. Outros itens do
desenho como a igreja, o posto telefônico, a bomba d’água e a escola (B4),
fazem parte da paisagem do cotidiano.
Deste modo, através do encaminhamento que as
categorias de análise permitem, podemos através do desenho analisar e
interpretar faces da realidade ambiental de diferentes grupos sociais, neste
caso, as crianças de uma comunidade tradicional caiçara, e conseqüentemente, o
conhecimento das diferentes relações que estas tem com o meio ambiente, que podem
levar a propostas de ações conscientes na gestão dos recursos naturais. Assim,
a utilização das categorias de análise, mostra-se adequada do ponto de vista de
direcionar a descrição e conseqüentemente a interpretação do desenho, dando
subsídio à análise da paisagem, sendo mais um meio de participar (através das
crianças) das iniciativas que tem por objetivo um planejamento integrado e
participativo relacionado à gestão ambiental.
Esta constatação leva-nos a considerar os diversos
meios que os pesquisadores tem de trazer a comunidade à discussão e a
participação, e apontamos como uma delas a representação da realidade ambiental
concreta através dos desenhos [forma de representação escolhida], devendo
existir um conjunto de ações que leve as vozes dos principais interessados da
comunidade sobre o meio ambiente.
Finalmente, procuramos nesta breve reflexão, trazer à
tona aspectos da discussão sobre meios e possibilidades de uma aproximação com
a realidade ilhéu percebida e interpretada pelo olhar das crianças, trazendo
aspectos essenciais à compreensão de diferentes realidades ambientais através
do conhecimento gerado por seus grupos sociais e fundamentais à reflexão
científica, fazendo desta associação de níveis distintos do conhecimento da
realidade ambiental, um meio para garantir ações conservacionistas que levem em
conta o ser humano e seu espaço vivido.
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