Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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27/11/2016 (Nº 58) SEMIÁRIDO, SEMIÁRIDOS- A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO SUBSÍDIO PARA AÇÕES QUE ESTIMULEM PRESERVAÇÃO E RESPEITO
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SEMIÁRIDO, SEMIÁRIDOS- A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO COMO SUBSÍDIO PARA AÇÕES QUE ESTIMULEM PRESERVAÇÃO E RESPEITO

 

Rozeane Albuquerque Lima - UFPE

Doutoranda em História- PPGH-UFPE

rozeanelima@hotmail.com

 

Cristian José Simões Costa – IFAL

Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA- UFPB. Professor Efetivo do Instituto Federal de Alagoas- IFAL

cristiancosta@hotmail.com

André Vasconcelos – MDR

Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

andrevasconcelos.triunfo@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo reflete como o semiárido foi historicamente nomeado e as intencionalidades que cada nome/discurso escondiam. Nos aportamos em Saussure (reflexões sobre linguística) e Korselleck (historicização dos conceitos). A diversidade e história deste espaço podem gerar conscientização, respeito e preservação.

PALAVRAS-CHAVE: Semiárido, Sertão, Caatinga, Nordeste.  

 

Para pensar historicamente o espaço que hoje se reconhece como semiárido brasileiro, percorreremos um caminho histórico que reflete sobre conceitos que se aproximam entre si: Sertão, Nordeste, Polígono das Secas e Caatinga. A intenção é compreender a construção deste espaço. Para tal, vejamos os sentidos que a estes conceitos são atribuídos ao longo da história.

 As reflexões que se seguem são fundamentadas nas análises de Saussure (1995), que decompôs o signo em significante e significado, sendo o primeiro, a palavra, algo mais estável e o segundo, o significado algo móvel, mutável. Também são influenciadas por Koselleck (2006) que alerta para a possibilidade de historicizar os conceitos e para os deslocamentos que os significados das palavras sofrem ao longo do tempo-espaço.

Com elas esperamos fornecer subsídios para um trabalho que possa contribuir nos debates sobre identidade regional e local e valorização do espaço ocupado pelos indivíduos e comunidades do que hoje se nomeia Semiárido brasileiro. 

            Este artigo se propõe a um debate interdisciplinar, conectando os campos da História, Geografia, Biologia, Ecologia, entre outros. Visualizamos a construção de um espaço não como algo dado, natural, pré- estabelecido, mas como algo, para além das suas fronteiras geográficas e ambientais, construído cultural, político e economicamente, atendendo a intencionalidades de uma dada época e de uma dada sociedade.

O sertão já era um conceito trabalhado no Brasil colonial. Nesta época ele indicava o lugar do nada, do medo, do desconhecido; o lugar em que o português tinha que sair da sua zona de conforto e conhecimento, localizada no litoral brasileiro de então; o lugar para onde as comunidades indígenas foram expelidas quando tiveram que desocupar a faixa litorânea, hoje conhecida como Mata Atlântica ou Zona da Mata, para dar lugar à monocultura da cana de açúcar; estas comunidades foram, de uma forma geral, invisibilizadas por historiadores até a década de 1980.

Ao longo dos séculos XIX e XX houve um deslocamento no significado do sertão. A literatura, a pintura e várias outras manifestações culturais e também políticas, o constroem como o lugar do “ser tão” especial, de um ser humano que tinha características específicas, uma identidade que perpassava não apenas o fenótipo desenhado para lidar com as adversidades climáticas de uma região com um índice pluviométrico irregular, mas também uma construção psicológica que o dizia um ser forte, bravo, de poucas palavras (até porque não tinha um vocabulário muito extenso), bronco, um ser que já não era mais o indígena expulso do litoral, mas o mulato, fruto de uma miscigenação que contemplava não apenas o português, mas também os negros, no caso do sertão, principalmente os que fugiam das senzalas dos engenhos litorâneos,  alguém que “combinava” e se “integrava” de forma “harmônica” com o meio (um exemplo, dentre os vários, desta construção é o livro de Graciliano Ramos: Vidas secas. No romance o personagem principal, Fabiano, é construído baseado no vaqueiro nordestino alguém que tem um fenótipo miscigenado entre os portugueses que no Brasil chegaram e os grupos indígenas que habitavam o interior do Nordeste, rude, forte e corajoso (características importantes para se adaptar à vida na Caatinga), mas ao mesmo tempo, de poucas palavras, inseguro, que se sente inferior a todos em sua volta(RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 23ª ed. São Paulo: Martins, 1969). Meio que também era construído a partir das imagens do sertão em seu período de estiagem e que unificava a região.

No que se refere ao Nordeste, Albuquerque Júnior, em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes (1999), pontua a década de 1910 como o período em que, pela primeira vez, o termo Nordeste é usado. O antigo Norte é subdividido e a região Nordeste é construída como o outro, como o oposto de São Paulo, em pleno vigor econômico, cultural e político no início do século XX. O Nordeste é gestado como um espaço pobre, espaço da seca, da migração como alternativa para escapar à sede, à fome e à miséria; como o lugar dos açudes secos, da terra esturricada, da Caatinga em período de estiagem, da necessidade de ajuda em forma de recursos públicos destinados a mitigar o problema que a seca causava à população através da criação de frentes de emergência e de outras alternativas apresentadas pela SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste e pelo DNOCS- Departamento Nacional de Obras Contra as Secas.

Junto com o Nordeste moldou-se o nordestino, que em muito se assemelha ao sertanejo: o cabra macho, rude em seu jeito de vestir, de andar, de falar, sem acesso à educação formal, rural, tradicional, arcaico, “adaptado” ao meio em que vivia. Esta identidade regional foi analisada por Albuquerque Júnior e muitos outros autores, dentre eles Maura Penna (1992) em seu livro O que faz ser nordestino: identidades sociais, interesses e o “escândalo” Erundina. Tanto quanto na construção da identidade sertaneja, a fabricação da identidade nordestina priorizou o discurso da miscigenação como algo que homogeneizaria o “povo nordestino” como uma forma de se distanciar  da fragmentação que o respeito às várias comunidades étnicas que habitam o espaço poderia causar . Nesta construção, fabricada principalmente para angariar recursos e promover políticas públicas que beneficiassem a elite regional, não se levou em consideração os múltiplos espaços que compõem o Nordeste, tais como a faixa litorânea e o Cerrado. Uma das consequências da identidade que ao nordestino foi atribuída foi o preconceito contra a origem geográfica e de lugar, também objeto de análise de Albuquerque Júnior (2007), que acompanha o nordestino até os dias atuais.

Pesquisas da década de 1970 apontavam para essa biodiversidade “nordestina” propondo o estudo do espaço hoje conhecido como semiárido não como um todo homogeneizado, mas a partir de suas microrregiões geográficas, entre elas os Brejos de Altitude, o Agreste, o Carrasco, o Cariri, o Seridó e o Curimataú, pensados em seus diferentes contextos e em alternativas de convivência diferentes considerando as condições naturais (variações climáticas e pluviométricas, vegetação, tipo de solo, entre outros) de cada microrregião (VASCONCELOS SOBRINHO, 1970, p.74).

O mapa abaixo se refere à delimitação geográfica do polígono das secas, instituído pela Lei 175 em 1936 (revisada em 1951 pela Lei 1.348) que “reconheceu o Polígono das Secas como a área do Nordeste brasileiro composta de diferentes zonas geográficas com distintos índices de aridez e sujeita a repetidas crises de prolongamento das estiagens” (http://www.lfg.com.br .Acesso em 03/01/2016).

“Nessas áreas ocorrem, periodicamente, secas que representam, na maioria das vezes, grandes calamidades, ocasionando sérios danos à agropecuária nordestina e graves problemas sociais, razão pela qual são áreas objeto de especiais providências do Poder Público” (http://www.lfg.com.br .Acesso em 03/01/2016).

fonte:http://educacao.uol.com.br/geografia/seca-no-nordeste-desmatamento-e-politcas-ineficazes-sao-agravantes.jhtm. Acesso em 05/02/2016.

 

Abaixo temos um mapa produzido pelo IBGE que faz um recorte do Brasil a partir de seus biomas. Pensar o Brasil a partir de suas variações de fauna, flora, clima etc., foi uma proposta levantada pelos alemães Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Phillipp von Martius, viajantes naturalistas que chegaram ao país na segunda década do século XIX. Martius elaborou um mapa fitogeográfico do Brasil, o dividindo cinco províncias, considerando a vegetação: Flora Amazônica, Região das Caatingas, Mata Atlântica, Cerrado e Região das Matas de Araucária e dos Campos do Sul. As percepções dos dois naturalistas sobre as paisagens da viagem feita pelo país estão relatadas no livro Viagem Pelo Brasil: 1817-1820 (SPIX, J. B. E MARTIUS, C. F. Ph). Atualmente, com o acúmulo de informações, principalmente imagens geradas pelos satélites e pesquisas sistematizadas nas academias e institutos de pesquisa, este mapa tem contornos mais específicos e mais explicáveis pelo discurso científico.

Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=169 Acesso em 05/02/2016.

 

Por fim, logo abaixo, temos o mapa da nova delimitação do semiárido brasileiro instituída em 2005 após estudo feito por um Grupo de Trabalho Interministerial e que considerou para a demarcação da área os seguintes critérios:

I. Precipitação pluviométrica média anual inferior a 800 milímetros;

II. Índice de aridez de até 0,5 calculado pelo balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial, no período entre 1961 e 1990;

III. Risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990.

A partir de 2005, portanto, pode se caracterizar o semiárido brasileiro como sendo uma região de baixo índice pluviométrico, com má distribuição de chuvas, temperaturas altas, e alto grau de insolação. Sua vegetação predominante é a da Caatinga.

 

Encontram-se oficialmente inseridos no semiárido brasileiro 1.133 municípios, que juntos totalizam uma área de 982.563.30 km², situados quase que em sua totalidade nos estados do Nordeste do país, com exceção de municípios do nordeste do estado de Minas Gerais (região Sudeste do Brasil). Estima-se que vivam hoje nas regiões semiáridas brasileiras mais de vinte milhões de pessoas, o que significa que aproximadamente 47% das pessoas que vivem no Nordeste, estão inseridas nessa região (http://www.dnpm.gov.br/mostra_arquivo.asp?IDBancoArquivoArquivo=3194. Acesso em 03/01/2016).

 

fonte : http://www.asabrasil.org.br . Acesso em 05/02/2016.

           

Apesar de um discurso não ser excludente do outro, pois podemos visualizar, no mesmo espaço, o sertão, o Nordeste, a Caatinga e o semiárido, ao se iniciar um debate em torno do semiárido, o foco em um bioma exclusivamente brasileiro é colocado em segundo plano. Espaços semiáridos existem em vários lugares do mundo e esta perspectiva abriu um debate mais amplo para a região, possibilitou trocas de experiências, captação de recursos, acordos de cooperação técnica, pesquisas e articulações com redes mais amplas.

A possibilidade de convivência com o semiárido emergiu na década de 1980, a princípio com algumas Organizações Não Governamentais. A EMBRAPA- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária foi a primeira instituição a aderir à esta nova perspectiva. Mais adiante foram organizados fóruns e eventos diversos e as ONGs começaram a se organizar em uma articulação. A ASA- Articulação do Semiárido foi oficialmente criada em 1999. Mais adiante, estimulado por esta mesma perspectiva, foi criado o INSA- Instituto Nacional do Semiárido “através da Lei nº 10.860, de 14 de abril de 2004, como Unidade de Pesquisa integrante da estrutura básica do então Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), na forma do disposto no Decreto nº 5.886, de 6 de setembro de 2006” (http://www.insa.gov.br//?page_id=26#.VKhbEHs9Rs8.Acesso em 02/01/2016) .O Instituto tem também uma função articuladora como demonstra a sua própria missão: “Viabilizar soluções interinstitucionais para a realização de ações de pesquisa, formação, difusão e formulação de políticas para a convivência sustentável do Semiárido brasileiro a partir das potencialidades socioeconômicas e ambientais da região” (http://www.insa.gov.br//?page_id=26#.VKhbEHs9Rs8. Acesso em 02/01/2016).

As instituições que se alinham com a perspectiva de convivência com o semiárido são unânimes em reafirmar a existência de vários cenários no espaço e a prioridade para as soluções locais ao invés de grandes obras que prometem resolver de vez as adversidades causadas pela irregularidade pluviométrica.

 Há, neste sentido, uma compreensão de que há vários semiáridos, que cada um tem suas particularidades e cumpre aos que estudam, pesquisam e apresentam alternativas para a melhor convivência com o espaço, respeitar estas diferenças, aprender com as comunidades locais e considerar o saber delas também como alternativas válidas para uma boa convivência.

Ao longo deste texto refletimos sobre a construção de um espaço que é nomeado de várias formas. Os nomes que esta região recebeu são carregados de significados que transbordam a si mesmos, influenciando as políticas públicas destinadas à região e refletindo sobre a forma como seus habitantes se percebem, se relacionam entre si e com o meio no qual estão inseridos.  Estes nomes, mais que identificar uma área, são carregados de simbolismos, de sentimentos de pertença, de construções que os alimentam e dele se alimentam para mantê-los emergentes e, assim, manter toda a teia de relacionamentos e intencionalidades que os sustentam também em vigor. Compreender como, porque e as intencionalidades que tem estes discursos nos ajudam a refletir sobre o nosso lugar nesta teia, a conhecer melhor o espaço no qual estamos inseridos e, conhecendo, a preservar e respeitar o meio ambiente e os seres que nele habitam.

 

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 1999.

 

__________. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar. As fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.

 

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006. 

 

PENNA, Maura. O que faz ser nordestino.Identidades sociais, interesses e o “escândalo” Erundina. São Paulo: Cortez, 1992.

 

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 23ª ed. São Paulo: Martins, 1969.

 

SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral. 2º. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

 

SOBRINHO. Vasconcelos. As regiões naturais do Nordeste, o meio e a civilização. Recife: 1956.

 

SPIX, J. B. E MARTIUS, C. F. Ph. Von. Viagem Pelo Brasil: 1817-1820. São Paulo: Edusp, 1981.

 

SITES CONSULTADOS:

http://www.lfg.com.br .Acesso em 03/01/2016.

 

http://educacao.uol.com.br/geografia/seca-no-nordeste-desmatamento-e-politcas-ineficazes-sao-agravantes.jhtm. Acesso em 05/02/2016.

 

http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=169 Acesso em 05/02/2016.

 

http://www.asabrasil.org.br. Acesso em 05/02/2016.

 

http://www.dnpm.gov.br/mostra_arquivo.asp?IDBancoArquivoArquivo=3194. Acesso em 03/01/2016.

 

http://www.insa.gov.br//?page_id=26#.VKhbEHs9Rs8. Acesso em 02/01/2016.

Ilustrações: Silvana Santos