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O QUE É A
VIDA? Rubem Alves O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um
ser humano? O que e quem a define? Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que
sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: “Morrer, que me
importa? (…) O diabo é deixar de viver”. A vida é tão boa! Não quero ir embora…
Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta
que eu nunca imaginara: “Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?”.
Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: “Não chore,
que eu vou te abraçar…” Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora
a saudade. Cecília Meireles sentia algo parecido: “E eu fico a
imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega… O que será,
talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas
companhias… Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que
pena a vida ser só isto”. Tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir
acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo,
contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais
dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas
comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom
seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores,
longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza. Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o
possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A
literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer
que a “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é
vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a
define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão
os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas
cerebrais? Confesso que, na minha experiência de ser humano,
nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas
cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos
enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a
possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa
casca de cigarra vazia. Muitos dos chamados “recursos heroicos”
para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao
princípio da “reverência pela vida”. Porque, se os médicos dessem ouvidos ao
pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer:
“Liberta-me”. Dizem as escrituras sagradas: “Para tudo há o seu
tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer”. A morte e a vida não são
contrárias. São irmãs. A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios para
permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova
especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a “morienterapia”,
o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia
seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja
mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs.
Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a “Pietà”
de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o
morrer deixa de causar medo. Trecho de “O que é a vida” – Crônica de Rubem Alves –
publicada originalmente no jornal “Folha de São Paulo”, Caderno “Sinapse” do
dia 12/10/03. fls 3. Fonte: https://www.portalraizes.com/rubem-alves-o-que-e-a-vida/ |