Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
Início Cadastre-se! Procurar Área de autores Contato Apresentação(4) Normas de Publicação(1) Podcast(1) Dicas e Curiosidades(5) Reflexão(6) Para Sensibilizar(1) Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(11) Dúvidas(1) Entrevistas(2) Divulgação de Eventos(1) Sugestões bibliográficas(3) Educação(1) Você sabia que...(2) Reportagem(2) Soluções e Inovações(3) Educação e temas emergentes(6) Ações e projetos inspiradores(24) Cidadania Ambiental(1) O Eco das Vozes(1) Do Linear ao Complexo(1) A Natureza Inspira(1) Relatos de Experiências(1) Notícias(26)   |  Números  
Artigos
12/12/2009 (Nº 30) O DEMOLIDOR: FILMES DE FICÇÃO CIENTÍFICA TRATANDO DE QUESTÕES SOCIOAMBIENTAIS EM SALA DE AULA
Link permanente: http://revistaea.org/artigo.php?idartigo=791 
  
Educação Ambiental em ação 30

O DEMOLIDOR: FILMES DE FICÇÃO CIENTÍFICA TRATANDO DE QUESTÕES SOCIOAMBIENTAIS EM SALA DE AULA

DEMOLITION MAN: SCIENCE FICTION FILMS APPROACHING SOCIO-ENVIRONMENTAL ISSUES IN CLASSROOM

 

Emerson Izidoro dos Santos

Doutorando em Educação para a Ciência da Faculdade de Ciências da UNESP (Bauru-SP)
Especialista do projeto ABC na Educação Científica Mão na Massa – Estação Ciência – USP

Email: mson@usp.br

 

Luís Paulo Piassi

Doutor em Educação

Docente do curso de Licenciatura em Ciências da Natureza para o Ensino Fundamental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e do Programa Interunidades de pós-graduação em Ensino de Ciências da USP

Email: lppiassi@usp.br

 

Rui Manoel de Bastos Vieira

Doutorando do Programa Interunidades de pós-graduação em Ensino de Ciências da USP

Email: rui@usp.br

 

Resumo

O uso de filmes de ficção científica no ensino de ciências tem sido proposto por diversos autores. Particularmente, na discussão de questões sociopolíticas ligadas às relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente os filmes têm a contribuir na medida em que apresentam situações sociais imaginadas em sua relação com possíveis conseqüências de avanços tecnológicos. Neste trabalho, investigamos a possibilidade de usar um filme de ficção científica com estudantes do 9º ano do ensino fundamental como estímulo para discussões em torno das relações entre a tecnologia, seu uso social e os impactos ambientais. Para isso, apresentamos alguns fundamentos teóricos para este tipo de proposta e elaboramos uma atividade como forma de avaliar sua recepção junto aos estudantes e sua viabilidade concreta como recurso em uma escola pública.

Palavras-chave: Ambientes urbanos, ficção científica, ensino fundamental, educação ambiental, CTSA

Abstract

Science teaching using of science fiction movies has been proposed by several authors. Particularly, the discussion of socio-political issues linked to science, technology, society and environment may contribute in the sense they present imagined societal situations in its possible relationships to technological breakthrough consequences. In this paper, we investigate the possibility of using a science fiction film with 9th grade students, as a stimulating strategy to raise discussions about technology, its social use and the environmental impacts. For that, we present some theoretical foundations for this kind of proposal and build up a classroom activity as a way to evaluate its acceptance among the children and its concrete viability as teaching aid in a public school.

 

Keywords: Urban environments, science fiction, K-9 education, environmental education, STSE

Introdução

A ficção científica tem sido usada por muitos professores como recurso no ensino de ciências (SOUTHWORTH, 1987; MARTIN-DIAZ et al, 1992; DUBECK et al., 1990, 1993, 1998;  FREUDENRICH, 2000; DARK, 2005). Diversos autores consideram-na particularmente útil na discussão de temas sociais ligados à ciência e tecnologia (NAUMAN e SHAW, 1994; SHAW e DYBDAHL, 2000; BRAKE, e THORNTON, 2003; ROSE, 2003; PIASSI e PIETROCOLA, 2008). Nauman e Shaw (1994) trabalham com a leitura de estórias de ficção científica no (correspondente ao) ensino fundamental para despertar o interesse dos estudantes não só para os conceitos, mas também nos problemas sociais envolvendo a ciência e a tecnologia. Para eles, “O gênero pode fornecer (...) uma janela para o futuro, um meio de prever como a vida poderia ser em alguma data no futuro; (...) nos dá uma ideia de como as decisões que fazemos agora, pode afetar nossas vidas no futuro” (op. cit., 1994, p 18).

Também na linha CTS, Shaw e Dybdahl (2000) propõem o uso de filmes, desenhos animados, propaganda e outros produtos de mídia que, segundo as autoras, constituem uma inevitável fonte de aprendizado informal sobre temas de ciência, às vezes auxiliando, às vezes conflitando com aquilo que é veiculado em sala de aula. De acordo com elas, “como as crianças irão travar contato com a ciência por ambas as fontes, se os professores puderem deliberadamente planejar o entrelaçamento das duas, serão capazes de melhorar a qualidade do aprendizado de seus alunos” (op. cit., 2000, p. 22). Para Brake e Thornton (2001), que desenvolvem um curso sobre ciência e ficção científica com destaque para a relação entre ciência, cultura e sociedade:

(...) visto que para muitas pessoas a principal exposição à ciência se dá através da ficção científica, tanto as visões sobre os cientistas quanto as relativas à natureza da atividade científica são de crucial importância para questões relacionadas às atitudes públicas perante a ciência (BRAKE e THORNTON, 2001, p. 32).

Assim, o uso da ficção científica em sala de aula pode propiciar oportunidades de questionamento a respeito de fenômenos e leis científicas e também da natureza da atividade científica e de sua relação com a sociedade. Nossa pesquisa consiste em desenvolver atividades com filmes de ficção científica no ciclo II do Ensino Fundamental e verificar sua efetividade para estimular o debate e a reflexão em torno de temas socioambientais. O trabalho aqui relatado consiste em uma sondagem em relação às seguintes questões:

1)     Como o filme escolhido responde às questões culturais presentes na prática social dos alunos.

a)     Há aceitação positiva do filme como obra de expressão artística (eles gostam do filme)?

b)     As situações apresentadas no filme estimulam atitude analítica em relação à obra (eles analisam o filme)?

c)      A discussão em torno do filme induz o estabelecimento de relações com a vida social (eles relacionam o filme com sua vida)?

2)     Como é a recepção dos alunos em relação à atividade?

a)     Os estudantes mostram interesse e participam da atividade de forma ativa e espontânea (eles gostam da atividade)?

b)     A atividade é reconhecida como recurso de aprendizado e não de lazer?

3)     Que aspectos da temática socioambiental chamam a atenção dos estudantes no contexto do filme.

a)     Há o reconhecimento de que aspectos sociais?

b)     Há o reconhecimento de que aspectos científicos e tecnológicos?

c)      Há o reconhecimento de que aspectos ambientais?

d)     Os estudantes relacionam estes aspectos?

Estamos adotando como hipótese de trabalho que a resposta a estas questões é um passo fundamental para uma efetiva implementação deste tipo de atividade em sala de aula. A atividade aqui descrita foi desenvolvida com uma turma de oitava série (nono ano) numa escola pública estadual situada no extremo leste do município de São Paulo, inserida numa comunidade bastante carente. Estavam presentes 21 alunos.

Ambientes urbanos e ficção científica

Aponta Podeschi (2002) que a questão ambiental aparece implicitamente em quase todos os filmes de ficção científica, sempre associada ao uso da tecnologia e suas perspectivas futuras. Defensor do desenvolvimento sustentável em seus limites mais extremos, este autor analisa o discurso ambiental em diversos filmes de ficção científica produzidos entre 1950 e 1999 a partir de duas modalidades de discursos denominadas “discurso reprodutivo” e “discurso resistente”, este último defendido por ele. Exemplifica, através de alguns enunciados, as formas dos dois discursos, dos quais mostramos dois itens, na Tabela 1. Embora não compartilhemos a posição extrema de Podeschi, a análise de posições político-ideológicas expressas no discurso ambiental dos filmes é um bom ponto de partida para seu aproveitamento como recurso didático.

TABELA 1 – Discursos reprodutivo e resistente (PODESCHI, 2002, p.265)

Discurso reprodutivo

Discurso resistente

A renda e o consumo devem ser maximizados para melhorar os padrões de vida. Os bens devem ser produzidos em massa para serem o mais barato possível e descartáveis; a sociedade deve operar em uma escala “de massa”. Mais e maior significa melhor, e o capitalismo é a forma econômica adequada para atingir estes objetivos.

Os imperativos do mercado forçam o consumo a crescer; isso é prejudicial para a natureza. A renda e o consumo devem ser limitados para melhorar a qualidade de vida de todos. Os bens devem ser simples, únicos, feitos à mão, duráveis e de alta qualidade.

A tecnologia tem melhorado a vida, irá possivelmente resolver a maior parte dos problemas humanos, pode se tornar virtualmente sem riscos, deve ser continuamente aperfeiçoada, expandida e utilizada e a alta e/ou intensa tecnologia é mais desejável.

 A tecnologia cria tantos problemas quanto resolve; ela sempre terá riscos; deve ser sempre avaliada. Tecnologias simples, leves e “adequadas” são mais desejáveis.

 

Uma temática comum nos filmes são os retratos imaginados de ambientes urbanos do futuro, dos quais o clássico Metropolis de Fritz Lang (1927) é um célebre precursor. Normalmente, o ambiente urbano futuro é um pano de fundo para se retratar as relações imaginadas do ser humano com o ambiente. Em Blade Runner (1975) de Ridley Scott, como em muitos outros, as cidades são sombrias e opressivas e a despreocupação com as questões ambientais leva à separação de ambientes sujos e poluídos para os oprimidos e limpos e sofisticados para os opressores. Em filmes como Jornada nas Estrelas, por outro lado, a humanidade atinge um grau de desenvolvimento no qual os ambientes limpos e sofisticados são generalizados.

Para Hantke (2003, p.521), “a ficção científica desenvolve espaços tecnológicos como metáforas” ligados aos significados que estes espaços possuem em relação a nossas práticas sociais. Esta ideia segue a linha de Jameson (2005, p. 345), para quem embora a ficção científica seja geralmente entendida como uma antecipação do futuro, “seu assunto mais profundo pode ser de fato nosso próprio presente histórico”. Assim, há duas dimensões a considerar na interpretação de uma obra: a de alegoria, na qual interpretamos a obra como um retrato da sociedade de hoje e a de conjectura, na qual a obra é tomada como uma extrapolação válida de um futuro possível a partir das condições presentes.

De acordo com Hantke (idem, ibidem) a relação com o espaço nos filmes de ficção científica é a expressão de práticas sociais e da forma como interpretamos nossa relação com o mundo natural em função destas práticas. Baseado em Lefebvre, o autor defende que ao longo da estória a ecosfera é permeada ou substituída pela tecnosfera através de redes complexas e estratificadas, às quais significados sociais vão sendo gradualmente atribuídos (idem, ibidem). Do nosso ponto de vista, esta atribuição de significados aos espaços tecnológicos retratados na ficção científica é uma das possibilidades de exploração didática para a percepção das relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio Ambiente por parte dos estudantes. Resta, a partir disso, a seleção de uma obra a ser utilizada e o planejamento de uma atividade piloto para verificar se tais questões podem surgir em um ambiente escolar real.

 Para a produção de atividades envolvendo produtos de mídia em sala de aula, acreditamos ser possível articular três referenciais teóricos da educação. Snyders (1985) nos fala da importância de levar em conta a cultura primeira dos estudantes e adverte sobre como esta é influenciada pelos bens culturais a que eles têm acesso. Para atingir a cultura elaborada, é preciso que os estudantes percebam os limites da cultura primeira em termos de satisfação cultural, para em um processo de continuidade-ruptura, perceberem a apreciarem as possibilidades mais elaboradas. Paulo Freire (1987) defende a problematização das situações de vida dos educandos através de temas geradores, concretizados por situações codificadas a partir das quais surgem diálogos problematizadores incentivados pelo professor. Freire alerta para a “invasão cultural [que] é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão de mundo” (op. cit, p. 149).  Finalmente, é preciso não perder de vista que o acesso a bens culturais sofisticados é a meta do trabalho educativo, o que configura, para Antonio Candido (1985) um direito humano.

Dessa forma, não escolhemos de imediato filmes que não respondem a expectativas culturais presentes dos estudantes, como seria o caso de um clássico como Metropolis ou mesmo de Blade Runner com suas sutilezas de significados, mas sem perder de vista que é fundamental, ao longo do processo, que os estudantes possam conhecer e apreciar as obras mais sofisticadas. Procuramos um filme que tivesse a temática dos ambientes urbanos e, ao mesmo tempo, apelo cultural entre os adolescentes. O filme escolhido foi “O Demolidor” (BRAMBILLA, 1993), por possuir muita ação, atores conhecidos e de grande apelo popular e enredo de fácil compreensão. Nesta atividade piloto, a qualidade artística da obra não estava entre os critérios de escolha. O importante é que o filme retrata, à sua maneira, a sociedade de um futuro não tão distante fazendo referências comparativas com o nosso presente.

O Demolidor

Na Los Angeles de 1996, decadente e deteriorada pelo domínio da criminalidade e pela falta de controle do poder público, John Spartan (Sylvester Stallone) é o policial destacado para prender Simon Phoenix (Wesley Snipes), um bandido que controla parte da cidade e um prédio com vários reféns. Usando recursos violentos, o herói invade sozinho o prédio, prende Phoenix e sai do local, que explode logo em seguida. Como os reféns continuavam no prédio, Spartman, acusado de excesso de violência, foi preso com Phoenix em uma prisão criogênica. Ali, seus corpos seriam congelados por 70 anos, enquanto suas mentes seriam reabilitadas para a vida em sociedade, através de um sistema informatizado que verificaria qual a profissão adequada ao perfil de cada preso e se encarregaria de fornecer a ele as habilidades e a vontade de exercer tal profissão.

Em 2032, temos uma cidade muito diferente: vigorava um sistema idealizado e instituído pelo Dr. Raymond Cocteau. A criminalidade havia sido erradicada e a população era pacífica e satisfeita. Os espaços da cidade eram amplos, bem iluminados, a densidade populacional era baixa e as vestimentas dos habitantes eram novas e limpas. Os automóveis eram inteligentes e dispensavam motorista. Dispositivos acionados por voz ou leitura biométrica eram generalizados. Os hábitos e costumes, porém, eram bem delimitados: proibia-se qualquer ofensa verbal, o consumo de álcool e de certos tipos de alimentos, entre outras coisas. A obediência era garantida com recursos tecnológicos, como o monitoramento e localização através chips implantados no corpo, sistema pelo qual a pessoa poderia ser punida com multas caso infringisse alguma norma. Para se evitar a proliferação de doenças, a reprodução era feita em laboratório. As relações sexuais eram feitas sem contato físico, através de um sistema de “transmissão de ondas cerebrais”.

Ocorre que Phoenix é descongelado para uma audiência judicial e consegue escapar, obtém armas em um museu a começa a aterrorizar a cidade. Sem defesa contra um bandido armado, a polícia decide descongelar Spartan, o único capaz de capturá-lo. A policial Lenina Huxley (Sandra Bullock) é incumbida de acompanhar Spartan e explica a ele como funciona a nova sociedade, conforme vão surgindo diversos choques, conflitos e estranhamentos. Paralelamente, descobrimos que nem todas as pessoas vivem naquele mundo perfeito. Havia um ambiente inferior subterrâneo onde as pessoas vestiam roupas velhas, aparentavam pouca higiene, consumiam bebidas alcoólicas e sanduíches de carne de rato. Ali estavam segregadas as pessoas que não aceitavam o sistema que vigorava no ambiente superior. Vivia-se basicamente de furtos realizados na cidade e havia um descontentamento com o sistema.  Estava em curso um movimento de libertação desta população liderado por Edgar Friendly. Descobre-se, no final, que o descongelamento de Phoenix era uma manobra do Dr. Cocteau para eliminar Friendly. Como se poderia imaginar, no final o herói vence e os vilões Phoenix e Cocteau morrem.

Um breve exame no enredo do filme permite identificar alguns elementos da realidade atual. O domínio da criminalidade nos meios urbanos, a fraqueza do poder público e os debates em torno da solução para o problema talvez sejam questões até mais prementes no contexto brasileiro do que no norte-americano. Phoenix poderia ser facilmente associado a um chefe do tráfico de drogas e John Spartan a um policial que se imagina heróico e acima da lei. O controle tecnológico da conduta das pessoas, se era uma previsão em 1993, agora é uma realidade cada vez mais presente com câmeras, chips e radares proliferando por todos os lugares.

A referência clara a “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, explicitada no nome da personagem Lenina Huxley (Lenina Crowne é uma das personagens principais no romance de Huxley) e a caracterização do vilão Dr. Cocteau como cientista nos permite identificar um discurso que atribui à ciência um papel de transformar a sociedade em uma direção indesejada, a despeito das conquistas tecnológicas que ela possa prover.

Metodologia

A aplicação da atividade e a coleta de dados foram realizadas em seis aulas, de um mesmo dia, contando com a colaboração de três professores que cederam suas aulas para o desenvolvimento da atividade, incluindo a professora de ciências, que acompanhou parte do trabalho. Escolhemos como instrumentos de coleta de dados um questionário (tabela 2) e anotações escritas das discussões, realizadas por uma estudante de graduação, para que influência nos resultados fosse a menor possível. Equipamentos de gravação de vídeo e áudio, embora tenham influência reduzida quando os estudantes se acostumam com sua presença, influem na espontaneidade em um primeiro contato, como seria o caso nessa classe.

TABELA 2 – Questionário aplicado

1) Como você relaciona cada uma das ideias abaixo presentes no filme com a nossa “vida real?”

a) O povo “de cima” e o povo “de baixo”

b) O ambiente “de cima” e o “de baixo”

c) O acesso à tecnologia “em cima” e “embaixo”

2) Você acha que o futuro vai ser assim? Você vai gostar?

3) Se você puder,  o que fará para mudar ou manter esse futuro?

 

Antes da exibição, pedimos aos alunos que observassem, no filme,  os ambientes sociais, os cenários, o vestuário, o comportamento dos personagens, e assim por diante, para compará-los à nossa sociedade. Esta breve discussão e a organização da sala tomaram 15 minutos e, somadas com a exibição do filme, ocuparam três aulas de cinqüenta minutos cada.  Utilizamos mais uma aula para que os alunos recontassem a estória (momento importante para resgatar os pontos principais da trama), outra para que eles comentassem e discutissem os aspectos que mais lhes chamaram a atenção e uma sexta aula para que respondessem ao questionário.

Resultados

Durante a exibição, alguns alunos fizeram anotações, outros se dispersaram, mas grande parte se concentrou no entendimento da estória, o que pode ser comprovado pela grande participação na etapa em solicitamos que os alunos recontassem a estória do filme. Nesta etapa surgiram as primeiras discussões, orientadas por perguntas do professor, principalmente sobre o encadeamento dos fatos. Acreditamos na importância desta etapa não só para retomar o enredo como para esclarecer dúvidas pontuais que poderiam comprometer o entendimento do filme. Chamou a atenção o fato dos alunos se referirem aos personagens pelo nome dos intérpretes Stallone, Snypes e Sandra Bullock, o que é revelador da familiaridade que eles possuem de tais atores.

Na seqüência, levantamos os pontos que mais haviam chamado atenção dos estudantes, incentivando-os a relacionar seus comentários com a temática socioambiental e com questões atuais. Isso gerou muitas discussões e observações críticas sobre os aspectos levantados, com alto nível de interação entre os alunos. No final, aplicamos o questionário individual que sugeria que os alunos relacionassem os diferentes ambientes do filme entre si e com seus próprios ambientes sociais cotidianos. Esse nosso objetivo foi apenas parcialmente alcançado, já que em muitas questões os estudantes restringiram-se a descrever os diferentes ambientes sem fazer confrontações ou comparações entre eles.

A questão 1 propunha que os alunos relacionassem as situações do filme às suas vidas cotidianas.  Talvez a questão tenha sido algo complexa, pois a maioria (14) deles limitou-se a descrever cada um dos dois povos, sem relacioná-los às condições de vida presentes. Alguns fragmentos destas descrições estão na tabela 3.

TABELA 3 – QUESTÃO 1 a) Os alunos descrevem os povos retratados no filme

Aluno

Povo de cima

Povo de baixo

1

-        Medíocre, besta, folgado, metido, chique

-        Racistas

-        Muito selvagem

-        Pelo menos eles são humildes

-        Mortos de fome

5

-        Tinha muita tecnologia diferente

-        Muito mal educados

-        Falava muito palavrão

-        Comia muita carne de rato

8

-        Eram todos rigorosos

-        Não podiam fazer varias coisas

-        Eram liberados para tudo. Para falar palavrões, tomar bebidas alcoólicas e fazer o que quiser

9

-        Imensa tecnologia

-        Muito avançados

-        Eram muito simples

-        Não conheciam tanto a tecnologia

 

Alguns, porém conseguiram estabelecer relações, como pode ser visto na tabela 4.

TABELA 4 – QUESTÃO 1 a) Os alunos relacionam com sua vida presente

Aluno

Povo de cima

Povo de baixo

2

Ricão. Tudo que quer tem

Nem tudo que quer tem

3

Ricos, famosos, pessoas bem de vida

Pobres, que ajudam as pessoas ricas, dão ibope para famosos

4

Tem mais segurança que embaixo

Não tem segurança porque que faz segurança são eles próprios

5

Parecido com os ricos porque eles não falam palavrões, entre aspas e sabem se comportar

Parecido com pobres

 

Em alguns casos percebemos uma clara identificação dos alunos com a população dos subterrâneos:

Eu mesmo me comunico muito com o povo de baixo por que eles podem fazer as coisas tranqüilamente, mas por outro lado as pessoas que vivem em baixo não têm segurança. O povo de cima são pessoas muito diferentes, mas tem algumas coisas que eu faço e que eles também costumam fazer, mas o ruim é que lá tem muitas regras muitas coisas são proibidas, mas as tecnologias deles são coisas que ajudam muito e isso é a única coisa boa lá de cima (Estudante 10).

Em relação aos itens (b) e (c) praticamente todos se limitaram a fazer descrições, sem estabelecer relações. Acreditamos que este é um problema da redação da questão, uma vez que na etapa da discussão os estudantes estabeleceram espontaneamente diversas relações.

Em relação à questão 2, cerca da metade dos alunos não conseguiu desenvolver uma resposta satisfatória para a possibilidade do ambiente futurístico do filme se tornar realidade. A outra metade dividiu-se entre aqueles que acreditavam que isto ocorreria e os que não. Os que acreditavam, normalmente elegiam a tecnologia, entre todos os fatores abordados, como o elemento possível de existir, justificando que a atual forneceria possibilidades para isso.

Eu acho que o mundo vai ser assim, e até melhor que no filme. Porque nós estamos em 2008 e já temos muita tecnologia. Exemplo: Celular 3G 3ª Geração (Estudante 9)

Enquanto que, para aqueles que não acreditavam, a degradação ambiental atual seria um fator que comprometeria a existência do próprio futuro.

Eu não acho que o futuro vai ser assim porque o aquecimento global está aumentando com uma freqüência rápida, mas se o futuro fosse assim eu não ia gostar porque ia ser muito diferente, eu não ia me adaptar com esse estilo de vida (Estudante 10).

Quando questionados sobre se gostariam do futuro retratado no filme, metade dos alunos mostrou-se descontente utilizando como principal argumento o problema da desigualdade social, seguido do rígido controle da conduta social.

Se o mundo não se acabar com o desmatamento pode ser possível, os pobres contra os bens de vida. Mas eu não vou gostar porque eu acho uma discriminação. (Estudante 20).

Não vou gostar porque vai ser muito chato, não poder fazer nada que é multado.  (Estudante 7)

Na questão 3, a maioria somente retratou suas ansiedade, sem identificar qual recurso utilizaria para a mudança do futuro. Aqueles que o fizeram mencionaram que a possível mudança seria promovida por uma ação de convencimento realizada com “palavras, incentivo ou influência”. E apenas uma pequena parcela dos estudantes se considera impotente de executar qualquer ação de mudança. Apesar de não identificarem qual recurso utilizariam grande parte dos alunos apontam as desigualdades sociais e a violência como um dos principais problemas presentes no futuro, e expressa o desejo de minimizá-los ou erradicá-los. Alguns alunos consideram que o controle das condutas sociais é excessivo e seria necessário reduzi-lo. A tecnologia é reconhecida como um dos grandes benefícios do futuro, um quarto dos alunos manteria ou melhoraria o acesso a tecnologia.

Eu deixaria as pessoas ingerirem bebidas alcoólicas, mas só as pessoas acima de 21 anos. As pessoas poderiam falar algum palavrão, tipo merda, caramba, porcaria e etc. Eu deixaria as pessoas fazerem sexo por contato físico. Eu faria com que o aborto fosse crime, que as pessoas tivessem quantos filhos quisessem, faria carros voadores, tudo em casa a base de voz, que nenhuma árvore fosse cortada sem precisão [necessidade], que toda pessoa ganhasse no mínimo três salários mínimos. Que cada pessoa morasse em uma casa e nenhuma pessoa pagasse aluguel, que todas as pessoas que trabalhassem, seria das 7:00h às 19:00h e que todo final de semana e feriado ninguém trabalhasse, todas as pessoas teriam carteira assinada e esse tipo de coisa que todo mundo quer (Estudante 1)

Pelas respostas, pudemos concluir que o aspecto que mais desagrada os estudantes é a desigualdade social. Eles expressam o desejo de alterá-la, mas sem saber exatamente como.

Se eu pudesse mudar esse futuro eu daria casa em cima para os debaixo morarem. O mundo é grande, tem lugar pra todos. Para que se apertar em lugares pequenos? (Estudante 17).

Conclusões

Nossa preocupação neste trabalho foi a de verificar a possibilidade de estimular o debate e a reflexão em torno de temas socioambientais no contexto de sala de aula do ensino fundamental. Para tanto, procuramos produzir uma situação de aprendizagem que perpassasse os conteúdos da grade do ensino fundamental e especialmente a disciplina de Ciências, com vistas ao trabalho com os temas transversais propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo (BRASIL, 1998). No nosso entendimento tais temáticas aparecem de forma articulada e indissociável no contexto sociocultural dos estudantes e é dessa forma que devem ser abordadas, embora possamos focalizar nossa atenção em um ou outro aspecto.

O uso de uma obra cinematográfica popular mostrou-se como uma ferramenta importante no fornecimento de questões para discussão porque conseguiu prender a atenção e despertar a curiosidade dos alunos para conceitos socioambientais. A vida urbana no presente e suas perspectivas futuras, por exemplo, é um assunto no qual as questões ambientais assumem um papel central, mas ao mesmo tempo, para o qual concorrem todos os outros temas transversais propostos nos PCN.

Em relação às nossas questões de pesquisa, acreditamos ser possível concluir que houve aceitação do filme pelos estudantes e que eles conseguiram adotar uma postura analítica diante da obra. Na discussão oral, o estabelecimento de relações foi mais intenso do que o observado no questionário, o que pode ter sido causado por problemas na redação da questão, pelo cansaço após tantas atividades ou mesmo pela maior dificuldade na expressão escrita. A recepção à atividade em si foi bastante positiva e os alunos reconheceram-na como atividade didática e não recreativa. Em relação às temáticas, a atenção pareceu voltar-se principalmente para questões sociais, com destaque também para os aparatos tecnológicos. A temática ambiental surgiu de forma não sistemática em algumas respostas.

Assim, nesta etapa da pesquisa pudemos identificar e analisar algumas das dificuldades e particularidades do uso dessa metodologia o que nos permitirá aperfeiçoá-la para novas aplicações tanto com alunos como com professores de ciências.

Referências

BRAKE, Mark et al. Science fiction in the Classroom. Physics Education 38(1) Jan. 2003. 31-34.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros curriculares nacionais: Ciências Naturais. Brasília: Secretaria da Educação Fundamental, 1998. 138p.

CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

DARK, Marta. Using Science Fiction Movies in Introductory Physics. Phys. Teach. 43. Oct (2005). 463-465.

BRAMBILLA, Marco (dir). O Demolidor. Título original: Demolition Man. Baseado em estória de Peter M. Lenkov e Robert Reneau. Com: Sylvester Stallone, Wesley Snipes, Sandra Bullock e outros. EUA: Warner Bros. / Silver Pictures, 1993. (115 min.): DVD, NTSC, som, inglês. Ficção Científica. 1993.

DUBECK, Leroy W. et.al. Science Fiction Aids Science Teaching. Phys. Teach. May 1990. 316- 319.

___________. Finding Facts in Science Fiction Films. Sci. Teach., Apr. 1993 48-48.

___________ .Sci-Fi in the Classroom: Making a “Deep Impact” on Young People´s Interest in Science. Mercury, Nov/Dec. 1998, 24-28.

FRAKNOI, Andrew. Teaching Astronomy with Science Fiction: A Resource Guide. Astronomy Education Review. Jul 2002 / Jan 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Coleção O Mundo de Hoje. 17ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREUDENRICH, Craig. C. Sci-Fi Science: Using Science Fiction to set Context for Learning Science. The Science Teacher v. 67 no. 8, Nov. 2000. 42-45

HANTKE, Steffen. In the belly of the mechanical beast: Technological environments in the Alien films. Journal of Popular Culture 2003, vol. 36, no3, pp. 518-546

JAMESON, Fredric. Archaelogies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. Londres: Verso, 2005.

MARTIN-DIAZ, M .J. et al. Science Fiction comes into the Clasroom: Maelstrom II. Phys. Educ. 27, 1992. 18-23.

NAUMAN, Ann K. et al. Sparking Science Interest through Literature: Sci-Fi Science. Science Activities. Vol 31, No. 3. Fall, 1994. 18-20.

PIASSI, Luís P. e PIETROCOLA, Maurício. De olho no futuro: ficção científica para debater questões sócio-políticas de ciência e tecnologia em sala de aula. Ciência & Ensino, 2008. No prelo.

PODESCHI, Christopher W. The nature of future myths: environmental discourse in science fiction film, 1950-1999. Sociological Spectrum, 22, 251-297, 2002.

SHAW, Donna et al. Science and the Popular Media. Science Activities. Vol 37. No. 2. Summer 2000. 22-31.

SNYDERS, Georges. A alegria na escola. São Paulo, Manole, 1988.

SOUTHWORTH, Tom. Modern Physics and Science Fiction: a Mini-Unit for High School Physics. The Physics Teacher, Feb. 1987. 90-91.
Ilustrações: Silvana Santos