É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
Início
Cadastre-se!
Procurar
Área de autores
Contato
Apresentação(4)
Normas de Publicação(1)
Podcast(1)
Dicas e Curiosidades(7)
Reflexão(6)
Para Sensibilizar(1)
Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(15)
Entrevistas(1)
Culinária(1)
Arte e Ambiente(1)
Divulgação de Eventos(4)
O que fazer para melhorar o meio ambiente(3)
Sugestões bibliográficas(3)
Educação(1)
Você sabia que...(4)
Reportagem(3)
Educação e temas emergentes(11)
Ações e projetos inspiradores(28)
O Eco das Vozes(1)
Do Linear ao Complexo(1)
Notícias(41)
Dúvidas(4)
| Números
|
Arte e Ambiente
PROBLEMATIZANDO COMPORTAMENTOS: DO “BOM GOSTO” ARTÍSTICO AOS GESTOS COTIDIANOS
Vanessa Cristina Diasi Cláudia Mariza Mattos Brandãoii Veronica de Limaiii
Leopoldo Gotuzzo (1887–1983) foi um pintor pelotense cujas obras são caracterizadas pelo estilo academicista, conhecido por sua precisão técnica. Entre documentos estudados encontramos relatos de sua vontade de que Pelotas, sua cidade natal, abrigasse um museu: “é meu desejo que quando a Escola de Bellas Artes tiver local adequado e meios para manter, se instale aí uma pequena coleção Gotuzzo, com alguns quadros que possam caracterizar meu modesto trabalho” (Carta de Leopoldo Gotuzzo, 1955, acervo do MALG). Referindo-se à doação de 1955, Luciana Renck Reis diz que “o Gotuzzo sempre dizia que nós (alunos), para aprendermos, além de termos que desenhar, estudar e tudo o mais, nós tínhamos que ver obras de arte e foi por isto que ele fez a doação das obras dele, mandou a primeira coleção para a Escola”. Aqui fica nítido a intenção do artista de ajudar seus alunos, enquanto professor na EBA, a conhecer e analisar obras. Gotuzzo se destacou por sua técnica notável em vários estilos como realismo, impressionismo, simbolismo, pontilhismo e Art Nouveau. Este artigo resulta da análise dos resultados de atividade de ensino proposta em abril de 2017, na disciplina de Fundamentos do Ensino das Artes Visuais I, integrante do currículo do primeiro semestre do curso de Artes Visuais – Licenciatura (UFPel), relacionados às inter-relações entre o Belo nas Artes e questões referentes ao meio ambiente. Na atividade foi proposta uma visita ao Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG), situado na cidade de Pelotas, no qual estava exposto o acervo do artista Leopoldo Gotuzzo . Foi solicitado que cada aluno escolhesse uma obra como destaque e que esta escolha fosse justificada. Mais do que uma problematização acerca do Belo, buscamos analisar e discutir os resultados da atividade, relacionando-os à teoria classificatória de Housen (ROSSI In: PILLAR, 2003), que avalia o nível de compreensão/leitura de obras de arte, problematizando referências estéticas nas artes visuais e seus reflexos no modo como lidamos com o meio ambiente. Trata-se de uma abordagem que privilegia a Educação dos Sentidos (ALVES, 2005), ou seja, da promoção de um saber sensível que possa colaborar para a formação ampliada do ser humano. Ao longo da história verificamos um gradativo distanciamento entre homem e natureza, devido, principalmente, ao crescente desenvolvimento industrial instaurado após a Revolução Industrial, no século XVIII, sendo que desde então, fica clara uma maior preocupação com a economia do que com o contexto vivencial. Frente a tal situação, acreditamos que através da cultura podemos encontrar soluções que nos ofereçam os referenciais necessários para a problematização de valores identitários que reforcem o sentido de pertencimento comunitário. No desenvolvimento de um pensamento abrangente e integrado, podemos considerar as contribuições da educação do olhar, principalmente do olhar estético, e o quanto isso pode nos auxiliar na reflexão sobre o meio ambiente. Sendo assim, consideramos a importância de promover o desenvolvimento cultural dos indivíduos para que entendam, desde os primeiros anos de vida, a necessidade de respeitar os espaços coletivos assim como o seu próprio. A arte pode ser um instrumento de conhecimento desses valores, pois ela é indissociável de outros temas que circundam o ser humano, como Dora Maria Dutra Bay (2006, p. 4) nos confirma:
No entanto ainda persiste certa dificuldade no tocante a integração da arte nas ciências sociais - o que pode ser potencializado como um ganho, ao possibilitar abordagens transdisciplinares - porque as diferentes proposições existentes tendem a privilegiar um determinado enfoque, como o histórico, o psicológico, o filosófico ou o estético, descuidando da interação e articulação entre eles.
Partindo deste princípio, sabemos que a educação em artes deve primar pelo estímulo ao senso crítico, e quanto a isso Rubem Alves já questionava se era mais importante saber as respostas ou saber fazer as perguntas. A arte tem um papel inquietante, ela questiona tudo a sua volta, porém, em sala de aula, observando as práticas escolares em artes visuais, ainda percebemos que muitos professores priorizam a técnica nos seus ensinamentos cotidianos. Tal realidade demanda a necessidade da formação de docentes comprometidos com o estabelecimento de relações entre Arte e Vida, pois se a arte dá sentido à vida, o papel das artes na escola está ultrapassado, basta para tanto considerarmos a desagregação das relações interpessoais que se manifestam nas escolas como reflexo da realidade contemporânea.
Figura 1: Leopoldo Gotuzzo, O Velho Galé, 1905, óleo sobre tela, 53x45,5cm; Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Pelotas.
Na pesquisa realizada foram analisadas 55 respostas, que registram a escolha de 30 obras dentre as expostas, sendo que as duas mais citadas foram “O Velho Galé” (1905) (Figura 1) e “Baiana” (1942) (Figura 2), com 5 escolhas cada uma.
Figura 2: Leopoldo Gotuzzo, Baiana, 1942, óleo sobre tela, 92x72cm; Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Pelotas.
Utilizamos para as análises as ideias de Maria Helena Wagner Rossi a respeito da compreensão do desenvolvimento estético proposta por Abigail Housen em seu estudo The eye of the Beholder. Após observar duzentas pessoas, Housen concluiu em seus estudos que existem cinco tipos possíveis de leitores: Accountive, Constructive, Classifying, Interpretative e Re-Criative. E como resultado, nós identificamos leitores que se enquadram nos dois primeiros dos cinco estágios por ela classificados: Accountive relativo aos leitores com pouco contato com as artes, que geralmente são impactados pelo tema da obra, manifestando interesse pelas formas, cores e detalhes; e Constructive, cujos leitores relacionam as partes da imagem com o todo, identificando uma hierarquia entre os elementos, e relacionando a obra de arte com suas experiências vivenciais anteriores. As escolhas das obras privilegiaram as figuras humanas, variando entre retratos e nus. Predominantemente, encontramos leitores descritivos, correspondendo ao estágio Accountive. Suas justificativas se mantiveram basicamente na destreza técnica do artista, na escolha de cores, materiais, no jogo de luz e sombra. Dentro desse primeiro estágio de leitura, ainda encontramos leitores que apontam para a obra praticamente ter “vida”. ”A pergunta freqüentemente feita pelo leitor do 1º estágio é o que é isto? Suas respostas tendem a satisfazer essa pergunta de forma concreta: é isto, é aquilo, etc.” (ROSSI, 2006). A acadêmica Veronica de Lima assim justificou a escolha da obra “O Velho Galé” dizendo: “O uso da tinta a óleo, deixando a obra com um aspecto bem realista, o uso de luz e sombra deixando a obra dramática e com volume”. Já a acadêmica Jéssica Oliveira, afirmou: “Nota-se um velho com muitos sinais de velhice, que o artista teve uma dedicação em demonstrar tais sinais que fica realista a obra”. Identificamos também justificativas pautadas em lugares, fazendo o(a) aluno(a) relacionar a obra a algum lugar de seu conhecimento, ou momento vivido. E, aparece ainda uma relação com cultura específica de algum povo. Essas justificativas pertencem ao segundo estágio de classificação, o Constructive ou construtivo, no qual o(a) leitor(a) reflete acerca de sua própria vida e tenta relacionar a obra de arte com sua experiência de mundo anterior, buscando o significado da obra em acordo com certos padrões aceitáveis em seu meio. Franciele Martins, acadêmica que identificamos no segundo estágio, justifica sua escolha para a obra “Baiana” assim: “A obra foi escolhida por representar uma parte da cultura do meu povo. A pintura mostra a beleza do corpo, cor e pele da mulher, o esquema de cores e luz e sombra são aplicadas perfeitamente”. Outra acadêmica, Vitória Alves Nunes justificou também no âmbito da cultura, explanando: “bem detalhado os traços da mulher negra da época e de alguma forma me lembra também a cultura afro da época”. Além dessas escolhas, encontramos apenas duas justificativas que se aproximam do terceiro estágio, o Classifaying. Elas buscaram um diagnóstico da obra, mas ainda presas à consciência da intencionalidade do artista. Vanessa Cristina Dias escolheu a “Boneca” (1925), pois segundo ela:
Mostra algo diferente de todas as outras, onde ele brinca com a simetria dos objetos e enfatiza de modo delicado e sombrio o objeto principal da obra. Este paralelo torna esta obra, apesar de pequena perto de outras, muito interessante, questionando o espectador sobre o sentimento do autor da obra ao produzi-la.
A acadêmica Tabita Priese Saueressig, também fez uma escolha diferenciada, mas neste caso, em função do título da obra, “As uvas dos meus 80 anos” (1967) que para ela “Parece uma pintura comum, mas o título atribuído fez a diferença. Podemos imaginar dezenas de supostos motivos que o levaram a elaborá-la, e é isso que mais instiga, provoca curiosidade”. A partir das respostas dos(as) alunos(as), na época da atividade, recém ingressados no curso de Artes Visuais, entendemos que todos demonstraram estar mais ou menos no mesmo nível de leitura estética, indicando pouco contato com obras de arte, o que podemos atribuir a um ensino de artes escolar nos moldes tradicionais. Ou seja, pautado em conhecimentos lógico-matemáticos deixando a educação sensível em segundo plano e como mencionado, os próprios docentes de artes, em sua maioria, primam pelo aprendizado técnico. Sendo assim, a falta de curiosidade e questionamentos, por exemplo, não repercute em ações importantes como reflexões, estudos e cuidados com o que se propõe. Entendemos ainda, que não há certo ou errado nas respostas analisadas, porém, fica claro o pouco embasamento em arte e a falta de leituras interpretativas acerca das obras, o que nos leva a refletir sobre a questão do meio ambiente. A cidade de Pelotas tem visíveis problemas de poluição ambiental pelo lixo. Além de não ter aterros sanitários, e assim estar fora dos parâmetros da legislação federal, segundo o SANEP é coletado diariamente em média de 154.804kg/dia de resíduos sólidos, sendo que essa coleta atende a 65% da população do município (informação disponível em http://server.pelotas.com.br/sanep/lixo/coleta/). Percorrendo a cidade podemos encontrar situações de descarte incorreto de materiais que deveriam ser reciclados ou passar por tratamento adequado. Na região central de Pelotas, próximo ao Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, pudemos encontrar lâmpadas fluorescentes descartadas nos contêineres da prefeitura de forma totalmente inadequada (Figura 3).
Figura 3: Acervo pessoal de Verônica de Lima, novembro de 2017, Pelotas.
Frente a uma situação que separa o estético das práticas cotidianas, entendemos a necessidade da intersecção de um olhar estético apurado para o mundo, sensível às questões cotidianas de convivência com o mundo ao redor, pois como Marly Ribeiro Meira explica, é necessário:
Repensar o alcance e o significado da atividade artística e o campo epistemológico e relacional da estética implica considerar o que é necessário, para que a experiência estética seja, ao mesmo tempo, um fator de emoção, sentimento e num nível mais complexo, reflexão, tanto sobre a arte, como sobre a vida (MEIRA, 2003, p. 128)
Concluímos que precisamos buscar um olhar mais crítico e aprofundado, tanto no que tange a arte, quanto ao que tange nosso mundo frágil e efêmero, amadurecendo o nosso olhar estético para com as obras de arte, expandiremos também ao nosso entorno, buscando reflexões mais profundas através de ações como sentir, perceber, discernir, interpretar, e tais reflexões poderão contribuir para a modificação de nossa visão de mundo. As artes visuais têm múltiplas abordagens, porém realçamos a necessidade de encará-las como expressões dos questionamentos humanos, como instrumentos para a exploração sensorial e sensitiva, trazendo à tona questões latentes, como os problemas de natureza ecológica da contemporaneidade. Como futuros docentes, entendemos a necessidade de refletir também acerca do meio em que vivemos, dando mais valor não só a estética e crítica dentro do espaço museu, mas também fora dele. Sendo assim, acreditamos ser preciso buscar o olhar estético do quinto grau de classificação de Housen até o final da graduação, para que a nossa formação contemple o desenvolvimento de um olhar apurado, a fim de passarmos adiante nossos conhecimentos visuais, sem separar este olhar estético de um olhar sensível e vital para cada indivíduo e sua comunidade. Uma obra de arte não é elaborada apenas para ser admirada por sua beleza, mas sim, para despertar os sentidos, como algo que nos faça refletir e criticar as aparências sem desconsiderá-las como resultado de mentalidades. Com esta pesquisa identificamos que isso é algo que necessita ser problematizado com os docentes em formação, pois além deles valorizarem o belo estético como equilíbrio de formas, nenhum relacionou a questão estética com o meio em que vivem, embora saindo do espaço museu, encontremos uma grande quantidade de lixos pela cidade e nenhuma preocupação com o lugar adequado para o descarte deles. Consideramos que isso é algo que deve ser problematizado entre os acadêmicos, visto que serão futuros professores de Artes Visuais, e poderão colaborar para o desenvolvimento de um pensamento mais reflexivo e crítico, não só para as obras de arte, mas também relacionado ao meio ambiente. Refletindo sobre a questão da “bagagem” escolar e a cultura em que temos hoje, notamos a falta de abertura para o novo, demonstrando um pensamento limitado, tanto para as manifestações da arte contemporânea, que rompem com os princípios clássicos, explorados por Leopoldo Gotuzzo, assim como para discutir outros temas relacionados às relações entre Arte e Vida.
BAY, Dora Maria Dutra. Arte & Sociedade: Pinceladas num tema insólito. Cadernos de pesquisa interdisciplinar em ciências humanas, FLOPIS, n.78, p. 1-18, 2006. AGUIAR, João Valente. BASTOS, Nádia. Arte como conceito e como imagem. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 25, n. 2. p. 181-203, 2013. MAGALHÃES, Clarice Rego. Reflexões acerca das relações entre o museu de arte Leopoldo Gotuzzo (MALG) e sociedade pelotense. Revista memória em rede, Pelotas, v.4, n.11, p. 1-12, 2014. ALVES, Rubem. A educação dos sentidos e mais... Campinas, SP. Ed.: Verus, 2005. MEIRA, Marly Ribeiro. Educação estética, arte e cultura do cotidiano. In: Analice Dutra Pillar. Educação do Olhar no Ensino das Artes. 3ª ed.Porto Alegre, RS. Editora Meditação, 2003. ROSSI, Maria Helena Wagner. A compreensão do desenvolvimento estético. In: Analice Dutra Pillar. Educação do Olhar no Ensino das Artes. 3ª ed. Porto Alegre, RS. Editora Meditação, 2003. i Acadêmica do curso de Artes Visuais – Licenciatura, pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). vanessacristinadias_@live.com ii Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação( UFPel/CNPq). attos@vetorial.net iii Acadêmica do curso de Artes Visuais – Licenciatura. veronicadelimamf@hotmail.com
|