É dentro do coração do homem que o espetáculo da natureza existe; para vê-lo, é preciso senti-lo. Jean-Jacques Rousseau
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 89 · Dezembro-Fevereiro 2024/2025
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Arte e Ambiente
14/12/2022 (Nº 81) AS ESCRITAS URBANAS NOS CENÁRIOS COMUNITÁRIOS PÓS-PANDÊMICOS
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AS ESCRITAS URBANAS NOS CENÁRIOS COMUNITÁRIOS PÓS-PANDÊMICOS



Cláudia Mariza Mattos Brandãoi

Wesley Padilha Blankeii



Resumo: O artigo versa sobre a reflexão acerca dos espaços urbanos como écrans para as escritas urbanas. A discussão propõe repensarmos a nossa relação com o espaço urbano, entendendo-o como uma casa coletiva, que necessita ser redescoberto no momento pós-pandêmico.

A potência estética de sentir, embora igual em direito às outras – potências de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente – talvez esteja em vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentosiii coletivos de enunciação de nossa época. (GUATTARI, 1992, p. 130).

Com a recente experiência pandêmica e o consequente afastamento social, algumas pessoas – privilegiadas – recolheram-se a suas casas, seus receptáculos protetores, como diria Walter Benjamin; outras, ficaram expostas ao perigo eminente da doença, que rondava os espaços urbanos. Fomos temporariamente afastadas da dos agenciamentos estéticos que as escritas urbanas produzem.

Entendendo escritas urbanas como o conjunto das manifestações da arte urbana, assim como: o graffiti, o pixo, os lambes, os stencils, dentre outras, buscamos neste texto resgatar algumas discussões anteriormente abordadas nesta coluna. Na consideração do atual momento social e político em nosso país, ativar as percepções para tais manifestações, “uma dimensão de criação em estado nascente, perpetuamente acima de si mesma, potência de emergência” (id.) dos corpos e suas circunstâncias, é fundamental.

No que se refere ao graffiti, uma “estética marginal” (MORIYAMA; LOPEZ, 2009), temos “uma complexa rede de expressões plásticas, cuja individualidade e autenticidade são marcadas por um conjunto de fatores” (id., p. 12), pela poética de cada artista. E na retomada pós-pandêmica do transitar urbano, novamente tais escritas voltam a quebrar o ritmo dos deslocamentos, incitando olhares curiosos a dialogar com a vida comunitária.

Quando pensamos sobre a relação da arte urbana com os espaços públicos, provavelmente identificaremos um esvaziamento do real sentido da inserção de tais expressões criativas nas ruas. Os debates acerca do graffiti e do pixo, principalmente, muitas vezes assumem pautas éticas e/ou morais. Tratadas como “sujeira” e criminalizadas, são ignoradas como práticas comunicativas de vozes silenciadas, indicativas das relações sociais e políticas estabelecidas. Como diz o grafiteiro Nove (Figura 1): “Graffiti é um protesto, independentemente de ser considerado arte ou não” (id., p. 60). “Nove não crê na desassociação do graffiti de sua ilegalidade. Para ele, independentemente de sua estética ser abstrata, figurativa ou artística, sua ideologia ainda reflete a rebeldia e o protesto” (id., p. 69).

Figura 1: Nove, grafitagem em banca de revista, 2010.

Fonte: http://rickkubota.blogspot.com/2010/06/nove.html

Entretanto, à luz da ecosofia (GUATTARI, 1990), estruturada na associação entre a ecologia ambiental, a social e a mental, é possível refletir acerca da cidade como um écran para as escritas urbanas, não-verbais, e seus trânsitos entre a ética e a estética. Nesse sentido, emergem questões sobre a marginalização de populações que encontram em tais práticas a sua marca identitária, de presença no mundo, as quais se apropriam dos espaços através da arte.

A redefinição das relações entre o espaço construído, os territórios existenciais da humanidade (mas também da animalidade, das espécies vegetais, dos valores incorporais e dos sistemas maquínicos) tornar-se-á uma das principais questões da re-polarização política, que sucederá o desmoronamento do eixo esquerda-direita entre conservadores e progressistas. (GUATTARI, 1992, p. 164).

Considerando a pertinência das palavras de Guattari, acreditamos que a importância dessas “vozes dissonantes” independe de se gostar ou não do que se vê no muro da esquina, ou na mensagem estampada numa parede qualquer. A discussão abrange camadas mais profundas, intrínsecas à vida comunitária, à realidade social e política do país, aos “territórios existenciais da humanidade”.

Com o desenvolvimento das áreas urbanas, seus prédios e construções grandiosas demandando grandes investimentos, o trânsito caótico e seus engarrafamentos, o real sentido de pertencimento de quem habita a periferia das grandes e médias cidades não se efetiva. A importância histórica dos lugares, com o tempo se esvazia. A história vai sendo tragada pelos pilares das novíssimas edificações, “máquinas de sentido, de sensação” (GUATTARI, 1992, p. 158).

Neste sentido, as escritas urbanas dão visibilidade a uma parcela considerável da população, intervindo no processo de apagamento histórico. Elas afirmam a ocupação artística do espaço urbano como meio de (re)existência. Tais apropriações do écran urbano se aliam à democratização da arte, uma vez que, despidas de elitismo artístico, são processos de inclusão, aproximando a comunidade local das práticas artísticas.

Os muros e as paredes marcadas pelas escritas urbanas, nas suas diferentes técnicas, formas e mensagens políticas e sociais, integram os lugares às movimentações socioculturais das populações. A voz de qualquer pessoa é manifestada nas paredes, fruto de práticas “produtoras de heterogeneidade e de complexidade” (GUATTARI, 1992, p. 139) na apreensão do fenômeno urbano, o que geralmente incomoda o poder público.

Em 2017, a famosa parede de grafite, que existia na cidade de São Paulo, formada por obras de diversos artistas ao longo de vários anos, foi apagada e substituída por tinta cinza, sob ordens da prefeitura. A ação fez parte de um projeto chamado “Cidade Linda”. João Dória, o prefeito na época, chegou a declarar que “pichador não é artista, é agressor”. Posteriormente, a Justiça condenou Dória e a prefeitura pela remoção dos grafites. Fonte: VEJA e G1, 2017.

Fonte: Veja e G1, 2017.

Tal fato, capitaneado pelo então prefeito de São Paulo, João Dória, demonstra claramente atitudes de silenciamento higienistas. Quando nos referimos às escritas urbanas, não se trata de somente “transmitir mensagens, de investir imagens como suporte de identificação ou padrões formais como esteio de procedimento de modelização, mas de catalisar operadores existenciais suscetíveis de adquirir consistência e persistência” (GUATTARI, 1992, p. 31).

Os lugares não-privados têm histórias de pertencimento comunitário, têm raízes e abrigam devaneios. As ruas são extensão de nossas casas, e assim constituem a casa coletiva. É nessas ruas, asfaltadas ou de terra batida, que nossos pensamentos voam livres. Mas para que possamos sentir que essas ruas nos pertencem, que ali é um lugar para abrigar a potência dos nossos imaginários, é necessário respeitarmos essas intervenções artísticas, buscando estabelecer conexões com elas.

Consideramos ser possível interpretar a “casa” metaforizada por Gaston Bachelard como extensiva ao urbano:

[...] se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. Somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele desfruta diretamente do seu ser. É justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperceptíveis. Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. [...] A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa. (BACHELARD, 1993, p. 201).

O conjunto de nossos lares se unem às ruas perfazendo o espaço da coletividade, e suas manifestações expressivas não podem ser retirados de nós ou apagados por tinta cinza. Com as cidades tomadas por informações e imagens, as intervenções artísticas surgem para que possamos continuar nos (re)conectando com esses campos praticamente dominados, despertando sentimentos e aguçando nosso senso crítico. Ao sair para uma simples caminhada, um devaneio despretensioso, as ruas cumprem o papel de nos nutrir esteticamente.

A deslegitimação da arte urbana também traz debates acerca da desvalorização cultural dos meios artísticos. Apenas graffiti com fins decorativos são, minimamente, valorizados. Compreendemos que as autoridades deveriam incentivar toda e qualquer forma de expressão cultural pública, apostando em uma maior visibilidade para práticas artísticas sensibilizadoras dos olhares.

Com o retorno das dinâmicas da vida comunitária pós pandemia, a relação entre as comunidades locais com tais escritas necessita ser estimulada. Isso, não somente por suas questões estéticas, artísticas, mas, principalmente, pelas questões éticas que as constituem.

No excelente livro publicado em 2021, “Cartas ao Morcego”, de Nurit Bensusan, na contracapa Fernando Scarano afirma: “Não é um livro sobre o ser humano ou sobre o morcego, mas é um livro sobre a tentativa, ou talvez a necessidade, de ser um com o outro”. Trata-se, portanto, de uma discussão quase poética acerca de nos conectarmos com outros territórios existenciais não humanos, entendendo que somos integrantes complementares da teia da vida:

A interpretação de mundos, principalmente com a habilidade de vocês, morcegos, de viverem nas cidades ou nas áreas naturais, compartilhando muitos espaços conosco, talvez faça de vocês os melhores interlocutores para começar esse crochê. Mas permanece a questão de como dar início a esse processo. Se uma pandemia global dessas proporções não foi gatilho suficiente, o que poderá ser? Como transformar esse pensamento que se instila na cabeça de alguns humanos em algo que modifique nossas relações com o mundo e com os seres que o compartilham conosco? (BENSUSAN, 2021, p. 45).

E nós acrescentaríamos às indagações de Bensusan: Se nós, seres humanos, não somos capazes de respeitar e entender as nossas próprias manifestações artísticas e culturais, como interpretaremos outros mundos? Como compartilharemos o espaço/casa coletivo?



Referências:

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BENSUSAN, Nurit. Cartas ao Morcego. Brasília, DF: Mil Folhas, 2021.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.

_______. CAOSMOSE: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

Sob Dória, grafites são apagados por tinta cinza em avenida de SP. VEJA, 2017. Disponível em:

https://veja.abril.com.br/politica/sob-doria-grafites-sao-apagados-por-tinta-cinza-em-avenida-de-sp/ [Acesso em 08 de dezembro de 2022]

Justiça de SP condena Dória e prefeitura por remoção de grafites na 23 de maio. G1, 2019. Disponível em:

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/02/26/justica-de-sp-condena-doria-e-a-prefeitura-por-remocao-de-grafites-na-23-de-maio.ghtml [Acesso em 08 de dezembro de 2022]

i Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), Mestre em Educação Ambiental, é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Artes Visuais. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

http://www.photographein-pesquisa.com.br/

attos@vetorial.net

ii Acadêmico do curso Artes Visuais – Licenciatura, Centro de Artes/UFPel, pesquisador do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). Bolsista PIBIC/UFPEL, no projeto de pesquisa “DO PINCEL AO PIXEL: sobre as (re)presentações de sujeitos/mundo em imagens”.

iii Na obra de Deleuze e Guattari, o conceito filosófico de “agenciamentos” se refere a conjuntos de manifestações materiais que podem produzir sujeitos, organizando seus desejos e efetivando suas subjetividades.

Ilustrações: Silvana Santos