Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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26/01/2018 (Nº 62) BREJAL E ECOPEDAGOGIA DAS ATIVIDADES HUMANAS – O CASO DA AGRICULTURA ORGÂNICA EM PETRÓPOLIS – RJ
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BREJAL E ECOPEDAGOGIA DAS ATIVIDADES HUMANAS – O CASO DA AGRICULTURA ORGÂNICA EM PETRÓPOLIS – RJ



Sebastião Josué Votre1;

Rosana da Silva Berg2;

Bruno Matos de Farias3;

Helena Portes Sava de Farias4;

Hugo de Almeida Satiro5

Professor do Mestrado em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Rio de Janeiro, RJ, Brasil, svotre@gmail.com;

2 Mestre em Desenvolvimento Local, Professora do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Licenciada em Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, rosanaberg14@gmail.com;

3 Mestre em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Arquiteto e Urbanista, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, bmfarias@gmail.com;

4 Mestre em Desenvolvimento Local, Professora do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Enfermeira, Licenciada em Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, helenasava@gmail.com;

5 Mestrando em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM), Professor do Senac/RJ, Turismólogo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, hugosatiro@gmail.com.

Resumo

O tema geral deste estudo compreende representações e imaginários de uma família de agricultores orgânicos da microbacia do Brejal, Petrópolis, sobre sua migração da agricultura convencional para a orgânica. O problema de pesquisa que orientou o trabalho focaliza dificuldades de adaptação e ajustamento ao espírito da agricultura orgânica. Os objetivos do estudo são identificar e analisar o imaginário da família sobre sustentabilidade, saúde, retorno financeiro e bem estar, na atividade orgânica. O método combinou etnografia na região, com seis visitas à família, com entrevistas informais. As conclusões são que há um sentimento de satisfação pessoal e profissional, com a melhorias em seu modo de produzir, valorização da terra, utilização dos recursos locais para a arquitetura rural e busca do bem viver.

Palavras-chave: produção orgânica, ecopedagogia, paisagem, sustentabilidade.

Introdução

Este trabalho é um estudo de caso, com eleição de Levi Gonçalves e sua família de agricultores orgânicos, que contribui para a consolidação do imaginário orgânico na microbacia do Brejal e lidera iniciativas e experimentos em prol da agricultura orgânica neste território, com mais de quarenta produtores certificados.

A prosperidade e a melhoria da qualidade de vida dos pequenos produtores orgânicos de áreas rurais do Rio de Janeiro resultam, em parte, da organização de cadeias de produção, de distribuição e venda de produtos alimentícios, aromáticos e medicinais. Neste contexto de mobilidade socioeconômica, inovação e convivialismo, há várias temáticas que merecem estudos, como: a) o funcionamento dessas cadeias nas áreas produtivas do Brejal e em feiras orgânicas nos municípios serranos e na Cidade do Rio de Janeiro; b) o perfil dos consumidores desses produtos orgânicos; c) as relações dos produtores com sua paisagem, natural ou reconstruída; d) os padrões de edificação da área; e) o imaginário dos produtores orgânicos em relação a sua contribuição para a alimentação saudável, a recuperação do solo, do meio ambiente e o bem viver. A análise preliminar dos primeiros itens, bem como a identificação e a interpretação dos dois últimos nos ocupam no presente trabalho.

O trabalho contribui para os estudos sobre presente e futuro da agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro, com base nas vozes de seus protagonistas: financiamento, orientação técnica, subsídios para implementação de novos produtos e cultivo de novas glebas.

Inicialmente, apresentamos breve estado da arte do Brejal como pólo agropecuário que, além de berço da iniciativa orgânica, é um dos mais desenvolvidos do Estado do Rio de Janeiro. Incorporamos dados da observação participante, com atenção para a microetnografia crítica e as conversas informais com técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro (EMATER) e produtores orgânicos, sobretudo a família de Levi Gonçalves. O objetivo da etnografia e das conversas informais é identificar e analisar o imaginário dos agricultores sobre seu fazer agrícola.

Segundo a Associação dos Produtores Orgânicos (APO), a bacia do Brejal congrega 44 produtores da vertente orgânica. Localizado a 1.000 metros de altitude, o Brejal é um planalto fértil, com algumas manchas de mata atlântica virgem e outras de mata secundária; é bem servido de águas; seus vales foram alterados, com intervenção humana, que resultou na reorganização dos acessos, no corte das encostas e no aterramento dos cânions. É nessas pequenas várzeas que se desenvolvem a agricultura orgânica, com predomínio de hortaliças e legumes, e a convencional.

O status da agricultura é do pequeno produtor, no espírito do convivialismo, com estratégias de mutirão, o que favorece o convívio harmônico, permite a pequenas famílias dar conta de suas atividades agrícolas, contribui para a fixação dos agricultores e de suas famílias na lavoura, e assegura prosperidade.

A origem do movimento orgânico no Brejal está associada à família de Levi Gonçalves de Oliveira, localizada em Albertos, no Sítio Cachoeira do Rio Bonito; a sua irmã Eunice de Oliveira Machado e sua filha, Varcelene de Oliveira Machado. Há várias outras lideranças expressivas, como a da família Katsumoto, em área de maior altitude, especialista em bonzais, e que produz e distribui a maioria das mudas orgânicas aos produtores.

Na organização dos mutirões para preparo dos canteiros, plantio e colheita, as mulheres articulam as jornadas de trabalho no espírito do convivialismo, e cozinham para os vizinhos que participam dos mutirões. Essas boas práticas atestam que a agricultura familiar no Brejal tem suporte decisivo das mulheres, a exemplo do que se passa nos empreendimentos rurais em diversas regiões do Brasil. Quando nos perdemos nas veredas dos Albertos, em procura da roça de Levi, entramos numa propriedade relativamente grande, para pedir orientação. Lá encontramos um grupo de pessoas que praticam agricultura orgânica, e que estavam em plena atividade no plantio: a mãe e três filhos, todos descalços, aterrando as mudas de couve. O pai tinha ido levar produtos para feiras orgânicas na região serrana, ou na zona sul do Rio. Portanto verificamos, no Brejal, o que Siliprandi (2009) atesta, sobre o avanço das práticas agroecológicas, em que as mulheres cuidam do plantio, do desenvolvimento e da colheita, enquanto os homens se encarregam do transporte e da comercialização dos produtos.

Quando Levi nos introduziu no contexto orgânico, optou por passear conosco no quintal, que se espraia nos arredores da casa de moradia, mostrou frutíferas e outros cultivares, altamente consorciados. Ele descreveu os arranjos em que se entremeiam hortaliças, plantas aromáticas e medicinais, que contribuem para o equilíbrio biológico em relação a insetos, e que se consideram modelares em termos de sustentabilidade, regeneração do solo, aproveitamento das águas marrons, estética e qualidade da vida no quintal. Ao percorrer os cultivares, e comentar o efeito de cada arranjo, Levi nos deu um atestado eloquente do papel das mulheres, e de seu protagonismo, nos projetos de desenvolvimento da agricultura orgânica.

Este estudo se justifica com base nos argumentos de Leff (2016) sobre a relevância dos imaginários que codificam saberes populares, e da racionalidade contingente, no sentido de Rorty (2005); com efeito, as análises das representações e imaginários dos agricultores e da trajetória do movimento orgânico, na perspectiva de seus atores sociais, são raras e com pouca visibilidade.

Etnografia crítica da agricultura orgânica

No espírito de Magnani (2009), de “etnografia como experiência, como prática e com base numa certa noção de totalidade”, caminhamos pela região de Albertos e visitamos algumas lavouras orgânicas, com atenção particular para as cultivadas pela família Gonçalves, procurando registrar a maioria dos elementos que conseguimos alcançar, no cotidiano de cada lavoura: tipos de produtos, natureza dos adubos, origem das mudas, formato dos canteiros, tipos de animais, tamanho das glebas, construções rurais, residências dos agricultores e seus imaginários sobre o fazer orgânico.

Fizemos etnografia crítica, no sentido avaliativo do qualificativo, pois procurávamos ver, em cada afirmação dos membros da família, um esforço consciente para legitimar e justificar suas práticas de manejo do solo e dos insetos predadores ou negativos aos plantios.

Levantamos representações e imaginários da família de Levi sobre os tópicos que os envolvem e preocupam, sobre saúde e descanso, na linha de Serge Moscovici (1978), interpretando suas falas como síntese de saberes empíricos de que se apropriaram.

Nas conversas informais com os membros da família, que abordamos como sujeito coletivo (cf Votre, Alves & Melillo, 2010), consideramos a família Gonçalves como grupo focal. A proposta analítica que utilizamos, que nos permite caminhar em direção à raiz das representações e dos imaginários, nos permitem incursões no mundo das crenças, valores, ideologias, saberes, percepções, representações, imaginários e mundividências. Nessa perspectiva, procuramos coletar informações sobre os efeitos da opção pela cultura orgânica, com atenção para os benefícios financeiros e sociais do manejo do solo e do escoamento da produção, com um sistema viário razoável e distribuição de energia elétrica relativamente estável, e de telefonia e internet imprevisíveis. O sistema viário, com estradas construídas por patrolas que rasgaram as encostas do sistema de colinas, é sensível ao impacto das chuvas, que provocam erosão e quedas de árvores plantadas na beira das estradas, além de interrupção de energia, com prejuízos inevitáveis ao frágil sistema de comunicação telefônica e via internet.

As fontes de informação sobre potencialidades e problemas agroecológicos da microbacia são escassas. Na internet, repete-se a referência ao caráter pioneiro da agricultura orgânica da região, mas em vários sites nos deparamos com dados desatualizados, que privilegiam os ambientes locais passíveis de apropriação pelo turismo. O Google acadêmico ilustra bem essa raridade. Ao delimitarmos os últimos três anos, nesta ferramenta de pesquisa, utilizando o descritor Brejal, encontramos três estudos, a partir de 2013, dois dos quais são variações sobre a temática da origem e evolução da agricultura orgânica e das tentativas de implantação de cadeias produtivas entre os produtores e os consumidores: Bloise & Loureiro (2011), Valença (2014) e Silbermann, Pacheco & Fonseca (2016).

Na Secretaria Municipal de Agricultura de Petrópolis e na EMATER, encontramos dados sobre as pessoas envolvidas nas cadeias da agricultura orgânica no Município e, sobretudo, no Brejal. Essas cadeias compreendem produção, distribuição e venda de produtos alimentícios, aromáticos e medicinais com orientação orgânica. As pontas dessas cadeias se localizam nas áreas produtivas do Brejal e em feiras orgânicas que vendem verduras, frutas, legumes, plantas medicinais e aromáticas, sobretudo na região serrana e na zona sul e oeste do município do Rio de Janeiro.

O perfil dos consumidores desses produtos orgânicos é bem marcado: gente que se considera esclarecida, detentora de informações básicas sobre segurança alimentar e sobre o papel dos alimentos na saúde física e espiritual. Os grupos de consumidores incluem participantes de organizações voltadas para a alimentação saudável, como os veganos, os membros de Organizações Não Governamentais (ONGS) e a Fundação Mokiti Okada. Praticantes assíduos de atividades físicas também buscam consumir produtos orgânicos, a fim de melhorar seu desempenho nos exercícios. Há exemplos de atletas de alto nível de competitividade, como o de Henrique Avancini, representante do Brasil nas competições de mountain bike dos Jogos Olímpicos 2016, que adota dieta com produtos orgânicos.

O posicionamento das pessoas que consomem produtos orgânicos, a respeito das razões por que o fazem, revela que há uma sensação de comprometimento com a qualidade da própria saúde, e de compromisso com a qualidade da vida natural e da beleza do planeta. Além disso, importam-se também com a funcionalidade do alimento orgânico que ecoa na funcionalidade do corpo.

O território e a paisagem do Brejal são característicos das microbacias da região. A paisagem local se transformou, recuperou-se e melhorou, com a ação humana. Os agricultores se apropriaram dos lugares e os transformaram, desintoxicaram o solo e as águas, baniram agrotóxicos (pesticidas, fungicidas, nematicidas e herbicidas), desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento, aceleradores de maturação. Num certo sentido, os agricultores voltaram ao ritmo e ao ciclo da natureza.

As áreas abertas das encostas foram reflorestadas, enquanto parte substancial das várzeas descansou da produção convencional e está sendo regenerada, progressivamente, com os cultivos sem agrotóxicos.

A orografia das áreas cultivadas é relativamente homogênea: constitui-se de montanhas de pequena elevação, e vales com brejo, que foram aterrados e transformados em pequenas várzeas, em que se mantêm pequenos canais e represas em formato de açudes, que fornecem água para as plantações e os animais.

Ambiente construído

O ambiente construído da microbacia não se distingue das demais áreas rurais dos municípios da serra verde. No Brejal, é possível conviver com realidades socioeconômicas diversas dividindo o mesmo espaço, visto que na mesma região convivem famílias de agricultoras e donos de grandes áreas cultivadas.

Predominam as edificações informais. Continuam a existir residências de pau a pique, nas propriedades com famílias com menor renda, devido à facilidade da construção com recursos naturais de fácil acesso. Esse tipo de construção, com terra crua, usa madeira, ou bambu, sisal, ou cipó para a trama, e barro. A trama é feita com sarrafos de madeira, com espaços vazios, que são preenchidos com barro. A técnica não requer mão-de-obra especializada. O barro recomendado para preparar a massa de preenchimento das paredes pode ser encontrado na própria região, cerca de 30 centímetros abaixo da superfície.

O piso consiste de chão batido, sendo sua base feita de pedra. A cobertura ou telhado é feita com vegetações densas como folhas de palmeira fênix e/ou palmeira real/seafortia e/ou palmeira triangular. A casa também pode ser coberta com folhas de sapê que são de várias espécies de gramíneas naturais das encostas e dos solos com alto nível de acidez; ambos não permitem a passagem de água. Outra opção é a telha de barro ou telha cerâmica francesa. O fechamento dos vãos de janelas e portas é realizado com madeira de eucalipto, cultivado para fornecer postes, caibros e tábuas. O pau-a-pique vem sendo substituído pela alvenaria, com o passar dos anos. A integração com a zona urbana salientou novas alternativas de processos construtivos. Os moradores da zona rural, com a prosperidade decorrente dos plantios orgânicos, vêm melhorando as condições de vida e de moradia.

O eucalipto é encontrado em toda a microbacia, plantado à beira de estradas e em pequenos bosques, e é utilizado de diversas formas, na construção de casas, em móveis, em galpões e em cercas para a propriedade. Os galpões para guardar os implementos agrícolas, no geral, são cobertos de telha de amianto e alguns destes locais estão depreciados pela ação do tempo.

Os fertilizantes cumprem papel decisivo na repaginação da realidade agrícola do Brejal. Predomina a adubação com matéria orgânica, resultante da compostagem, em que além de estercos entram folhas, galhos e troncos em decomposição. Também se usa cama de aviário e urina de vaca. Há presença expressiva de variantes de bokashi, fertilizante orgânico produzido e distribuído pela Fundação Mokiti Okada, através do qual o Brejal estreita relação com a agricultura natural. Verificamos isso na nossa última visita à região, quando conversávamos com Levi sobre a qualidade e o tamanho das folhas de couve que estavam sendo colhidas. Um membro de nossa equipe perguntou se ele estava usando algum tipo de bokashi. A resposta foi “sim”, um adubo muito bom, de preço baixo, que vem da Igreja Messiânica. Fundada em 1935 por Mokiti Okada, a Igreja tem como objetivo construir uma civilização alicerçada na boa saúde, na prosperidade e na paz. A Fundação Mokiti Okada dedica-se o desenvolvimento da agricultura natural e visa à produção e o consumo de alimentos naturais, favorecendo o bem-estar físico e psicológico dos que adotam este modo de vida.

É missão da Fundação expandir a agricultura natural e investir na produção de alimentos sem agrotóxicos e livres de adubos químicos. Através de empresas como Korin Orgânicos e Naturais (Korin) e Korin Meio Ambiente (KMA), produzem e comercializam diferentes tipos de bokashi, que incluem farelos de arroz, de mamona e de trigo, e farinha de osso e de peixe. Esses compostos são inoculados com microorganismos eficazes e submetidos à fermentação aeróbica ou anaeróbica. Os inoculantes microbianos podem provir de terra de mata (bosque natural), soja fermentada, microorganismos capturados da natureza por meio de arroz cozido, ou ser inoculantes comerciais, como o Efective Microorganism (EM®)”, segundo Souza & Alcantara (2008). Seu uso contribui para promover o equilíbrio do solo, melhorando suas condições físicas, químicas e biológicas.

É sobretudo na empresa Korin, se desenvolvem diferentes tipos de adubos de origem natural, para múltiplos tipos de cultura. Segundo o portal da empresa: “É um fertilizante natural, saudável para o produtor e consumidor e não agressivo ao meio ambiente”. Ainda segundo o portal, “Não causam impacto ambiental devido a sua formulação ser composta de ingredientes que não contem resíduos tóxicos e trabalham para recuperação de solos degradados, restaurando o equilíbrio que fora perdido pela má exploração do solo”.

A introdução do bokashi e dos adubos de base animal é responsável pela mudança no tamanho e na aparência dos produtos orgânicos que, segundo pudemos comprovar, concorrem em igualdade com os da agricultura convencional. Esta mudança é responsável por maior aceitação dos produtos nos pontos de venda e por atrair novos compradores. Procura-se reverter, assim, a tendência dos consumidores a trocar produtores, em busca de alimentos mais bonitos.

O discurso imaginário da agricultura orgânica

As representações e os imaginários dos agricultores em relação à labuta orgânica merecem destaque: a) predomina nos discursos uma espécie de euforia, a respeito da relevância da agricultura orgânica, em relação a produtividade, sustentabilidade ambiental, retorno financeiro, saúde e bem viver (“plantamos tudo junto; assim, não temos o perigo de uma planta sozinha ser atingida por uma praga”); b) a sensação que Levi e sua família nos passaram é que possuem a verdade sobre o melhor método de cultivo de legumes, hortaliças, temperos e plantas medicinais (“uma planta protege a outra, as pimentas afastam as pragas, a citronela espanta os mosquitos; mas algumas combinações não dão certo; por exemplo, cenoura e batata”); c) a crença de que Deus ajuda quem planta orgânico (“Jesus me deu dois carros, está me dando uma casa nova”); d) a esperança de que a produção orgânica, sozinha, possa alimentar o Brejal, o município de Petrópolis, o país e o mundo (“vamos ter comida para todos, com nosso jeito de trabalhar”).

Parte apreciável do imaginário dos produtores da área dos Albertos tem âncora empírica. Sua saúde melhorou quando migraram da cultura convencional para a orgânica. Passaram a prosperar, em vista da procura dos produtos orgânicos e da melhoria das colheitas, com o domínio das tecnologias de melhora da produtividade do solo, em termos físicos, bioquímicos e biológicos. Aumentou a fertilidade do solo. A sociabilidade emergiu como um valor não trivial, por necessidade e pelo crescimento da solidariedade. Segundo pudemos constatar, a estrutura da agricultura do Brejal é típica do pequeno produtor. Os plantadores dependem da colaboração dos vizinhos para plantar, colher e mesmo para comercializar. O papel dos mutirões fica mais evidente para plantio e colheita. No geral, eles produzem poucos tipos de mudas orgânicas, uma vez que a maioria das mudas cultivadas no Brejal provém de uma família de descendência japonesa, que cultiva e comercializa mudas orgânicas de diferentes tipos de alface, couve, repolho, espinafre, tomate, ervas aromáticas.

O sistema de adubação do solo, o cuidado com as curvas de nível, os combates às pragas e seu manejo, assim como o cultivo de repelentes vegetais, indicam um imaginário de bem viver, em harmonia com a natureza, com vistas à prosperidade, resultante do escoamento e venda da produção nas feiras orgânicas situadas na região serrana e na região metropolitana do Rio de Janeiro.

O imaginário dos produtores, diz respeito, de forma eloquente, ao que mudou em suas vidas, ao se envolverem com a produção orgânica: como se desintoxicaram ao abrir mão dos agrotóxicos e dos adubos químicos, como se sentem, em relação à saúde, à renda, ao suporte dos consumidores e ao reconhecimento das autoridades do município. Eles recebem prêmios, são cantados em prosa e verso como responsáveis pelo sucesso da agricultura orgânica no Estado, são apresentados como pioneiros do movimento orgânico no Estado e mesmo no Brasil.

A visita aos agricultores cujas famílias trabalham a terra e nela querem permanecer, e a interação com os mesmos atesta o quanto o projeto orgânico influencia na fixação das famílias na área rural. No Brejal, não faz sentido perguntar até que ponto as dificuldades do contexto rural empurram pessoas do campo para a cidade em busca de emprego e renda, com melhor qualidade de vida.

As famílias de agricultores do Brejal além de buscarem um modo de sobrevivência, buscam também uma forma sustentável de produção conforme orienta a Carta da Terra. Os produtores têm a finalidade de promover uma mudança social nos aspectos da alimentação, da educação, do trabalho, e das diferenças sociais.

Há no Brejal a ideia de biorregionalismo, que não divide o trabalho conforme o gênero. Mulheres e homens assumem a gestão da agricultura e do lar, cuidando do ambiente, da hospitalidade e de manter o belo (Boff, 2015). Atestamos em nossa visita essa ideia. Levi, sua irmã e sua sobrinha administram os negócios e a casa juntos.

Ainda no espírito do biorregionalismo notamos a cooperação e a solidariedade entre os produtores que fazem a plantio servindo-se do sistema de mutirão. Aqueles agricultores possuem uma relação de pertencimento com a terra, o que coopera para que o ambiente seja preservado e para que as ideias de mutualismo e solidariedade avancem para que eles conquistem prosperidade.

A prosperidade é vista como recompensa pela dedicação ao trabalho. A irmã de Levi agradece por conseguir, como fruto de seu trabalho, construir uma casa nova e comprar dois carros usados para seu uso e para fazer transporte dos produtos que planta em sua horta.

Levi sempre tem uma indicação de remédios caseiros que utilizam ingredientes da agricultura orgânica para curar diversos tipos de doença. Ele mantém e perpetua o foco na produção de ervas medicinais com orientação orgânica. Nas suas palavras “As pessoas compram orgânicos pensando na saúde”.

Os resultados preliminares da etnografia apontam para melhoria da qualidade de vida das pessoas envolvidas com a causa orgânica: há melhora sensível dos cultivadores orgânicos, que se liberaram dos agrotóxicos e pesticidas e dos adubos químicos; é sensível a melhoria do solo, alvo de cuidados contínuos, como controle de pragas com plantas citronela e algumas variedades de pimenta, opção por adubação com adubo resultante da decomposição vegetal, acolhimento dos adubos da linha bokashi, e dos adubos alternativos, desenvolvidos a partir de variações dessa fórmula. Por fim, há aceitação dos produtos orgânicos e expectativa de melhoria da saúde das pessoas que consomem esses produtos.

No curso das visitas e inúmeras conversas, alguns itens voltaram muitas vezes à baila e eram rediscutidos com Levi. Três deles merecem citação.

  1. A agricultura orgânica é um movimento irreversível, ou uma pequena marola, mesmo no Brejal?

  2. A proposta de plantio e controle da produção sem agrotóxico, com produtos bonitos, não seria superior ao movimento de alimentos magros e feios, marcados como orgânicos?

  3. A agricultura orgânica no Brejal representa alternativa viável para alimentar as pessoas do Brejal? Num município, estado, ou país, seria alternativa viável para alimentar esse país? Há alternativa de alimentar a humanidade com a agricultura orgânica?

As questões se entretecem, bem como as diferentes formulações de resposta. A síntese a que chegamos é que a crença geral dos produtores orgânicos, aqui representados por Levi, é que eles descobriram uma mina inesgotável, que contribui para uma vida mais saudável, melhora as terras, dá retorno financeiro e prestígio social. Seu entusiasmo se justifica, neste momento de crescimento e prestígio crescente dos experimentos de agricultura orgânica, tanto nas áreas rurais, como nos espaços interurbanos e intra-urbanas, a exemplo do que se verifica em cidades como Shangai, Havana e Nova Iorque. A título de ilustração, citamos o projeto Green Box Machine, do Bronx, que recupera terrenos abandonados, transformando-os em hortas orgânicas.

A fase dos produtos sem beleza, de textura desbotada e miúdos ficou para trás, sobretudo com a entrada do bokashi e das novas tecnologias, que eles desenvolveram e daquelas que lhes foram ensinadas pelos técnicos dos órgãos de pesquisa agrícola, com ênfase para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e a EMATER.

Os colonos orgânicos acreditam que podem alimentar, com qualidade superior, a população local, as pessoas que procuram as feiras e, progressivamente, todas as pessoas interessadas, no município de Petrópolis, no Rio e no Brasil.

Cabe ponderar que a expectativa de alimentar a humanidade com orgânicos está fora de cogitação, e que o mundo precisa de ambos os modelos agrícolas, o orgânico e o convencional, e necessita, também, de inovações até agora impensadas, para aumentar a quantidade e a qualidade da alimentação para uma população que não para de crescer.

Esta ponderação deriva de estudos de revisão da literatura, a exemplo do que foi publicado este ano na revista Nature Plants, pelos pesquisadores Reganold & Wachter (2016), após examinarem as tendências de crescimento e estabilização da agricultura orgânica em todos os continentes, confirmam as expectativas de melhoria indiscutível da saúde dos consumidores, melhora progressiva da fertilidade, regeneração do meio ambiente e limpeza das águas, bem como retorno financeiro. Os autores temperam as euforias dos imaginários locais, a exemplo da que registramos acima, com uma reflexão prudente: “embora a agricultura orgânica tenha um potencial inquestionável, na alimentação do mundo e na segurança do ecossistema, nenhum sistema agrícola, sozinho, oferece garantia de alimentar o planeta”.

Considerações finais

O futuro da agricultura orgânica no Brejal, como microbacia de referência no Estado do Rio de Janeiro está atrelado a desempenhos e desafios nada triviais de financiamento, orientação técnica e jurídica, subsídios para implementação de novos produtos e cultivo de novas glebas.

O desempenho mais auspicioso diz respeito à ecopedagogia, no espírito da Lei da educação ambiental no 9795 de 27 de abril de 1999. A análise que apresentamos sobre a agricultura orgânica no Brejal mostra que os agricultores incorporaram o espírito desta lei e desempenham papel relevante na sua difusão, nas atividades de orientação orgânica a quem os procura.

Com efeito, eles cumprem o que se prevê no artigo 3, sobre conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. Estão também enquadrados no que se lê no artigo 5, que propõe como objetivo da educação ambiental: “o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos”.  A convivência dos agricultores com os agrotóxicos, com efeitos danosos em seus organismos, sob a ação tóxica, fortaleceu-lhes a consciência crítica sobre a problemática ambiental e social”.

Entendemos que os organismos de suporte à atividade orgânica cumpriram sua missão prevista no artigo 13, que estabelece que “o poder público incentivará a sensibilização ambiental dos agricultores”. Com efeito, os discursos e as práticas das famílias com quem convivemos durante nossas visitas reverberam os princípios da lei, formulados no parágrafo primeiro do artigo 4: o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo;

Compreendemos que a dimensão pedagógica está perfeitamente bem aquinhoada nos princípios da lei e que cabe estabelecer programas e projetos de educação e reeducação alimentar, como um adendo aos itens que a lei engloba. A primeira ação imediata é a de discutir, em todos os níveis de ensino, os riscos a que estamos sujeitos, no modelo alimentar contemporâneo, sem atenção para a carga de pressão que se faz, no organismo humano, bem como nos ecossistemas que mantêm a vida no planeta. A segunda é levar o resultado das discussões para os diferentes grupos envolvidos com produção de alimentos e a melhoria da vida cotidiana, da prosperidade, da beleza e da paz.

Os resultados preliminares apontam para melhoria da qualidade de vida dos cultivadores orgânicos, para melhoria do solo plantado com orientação orgânica, para melhor aceitação dos produtos orgânicos e para expectativa de melhoria da saúde das pessoas que consomem esses produtos. O resultado final é a garantia de melhoria da performance humana, incluindo-se as atividades de natureza intelectual, espiritual, religiosa e físico-desportivas.

Referências

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Documentos eletrônicos

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BERTOLUCCI, R. Brejal, em Petrópolis, é referência em agricultura orgânica: O lugar recebe turistas que fazem o Circuito rural Caminhos do Brejal. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/rio/bairros/brejal-em-petropolis-referencia-em-agricultura-organica-11465984#ixzz4KRkhVkeh>. Acesso em: 01 agosto 2016.

BOFF, L. A hospitalidade: Direito de todos e dever para todos. 2015. Disponível em: . Acesso em: 01 agosto 2016.

BREJAL. Anuncie aqui e apareça para o Brejal. Disponível em: < http://www.brejal.com/objetivos.asp>. Acesso em: 01 agosto 2016.

CARVALHO, V.; MARTINS, M.; MARTINS, A. P.; FROES, D.; VICTORAZZI, A. Educador cria 100 hortas urbanas para ensinar alunos sobre alimentação saudável. Disponível em: <http://razoesparaacreditar.com/educacao/educador-cria-100-hortas-urbanas-para-ensinar-alunos-sobre-alimentacao-saudavel/.> Acesso em: 16 Setembro 2016.

KMA. Korin Meio Ambiente. Disponível em: . Acesso em: 01 agosto 2016.

KORIN. Korin Orgânicos e Naturais. Disponível em: http://www.korin.com.br/>. Acesso em: 01 agosto 2016.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE – MMA. LEI No 9.795/1999, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 01 agosto 2016.

NETDIÁRIO. Alimentos orgânicos auxiliam desempenho de atleta olímpico: Henrique Avancini é representante do Brasil nas competições de mountain bike dos Jogos Rio 2016. Disponível em: < http://netdiario.com.br/alimentos-organicos-auxiliam-desempenho-de-atleta-olimpico/>. Acesso em: 01 agosto 2016.

SECRETARIA DE AGRICULTURA E PECUÁRIA. Projeto de Fruticultura garante bons resultados e amplia ações na Região Serrana: Petrópolis vai ganhar unidades de observação nas microbacias do Caxambu e Brejal. Disponível em: . Acesso em: 01 agosto 2016.

Secretaria de Estado de Agricultura e Pecuária – SEAPEC. Beneficiários do prosperar e do rio rural são premiados no projeto maravilhas gastronômicas do estado do rio de janeiro: Queijo, cachaça, conserva, geleia e embutido de agroindústrias beneficiárias dos programas, além de Grupo de Produtores Orgânicos do Brejal estão entre os premiados nas 12 categorias. Disponível em: . Acesso em: 01 agosto 2016.


Ilustrações: Silvana Santos